Sentou-se junto a mim na segunda mesa do restaurante napolitano de bairro, de nome Gaetano Genovesi. Era Cayetano de nome, escolhido por sua mãe, a mulher que – segundo ele – deu-lhe o nome e uma mantinha amarela quando pequeno, tendo sido estas duas – segundo ele – as duas únicas coisas que ela lhe deu, por toda a vida.
– Não me dou razão nem de ir atrás e ficar sabendo, por um ou outro, que está em algum cemitério do sul de Napule ou acamada em algum asilo do norte de Milano, não me dou razão. – Disse. Depois de ter dito sorriu um sorriso napolitano de canto de boca – soava como se ainda houvesse algo a resolver e acertar com o assunto, mas reduzi-me a me contentar apenas com o sorriso silencioso de canto de boca. Depois de sorrir trocou de assunto. Cayetano trocava de assunto como ninguém, ou como alguém que havia muito do que falar – alguém que só ele.
Já era homem quando começou a sentar-se junto à segunda mesa do Gaetano Genovesi, dizia. Já era senhor – de cabelos brancos – quando o conheci, junto à segunda mesa do restaurante. Dizia conhecer os cruzamentos da via Alessandro Manzoni como nenhum outro napolitano – era fino, porém. Alto que só Vittorio Gassman, doce que só Enzo Staiola e quieto que só ele. Era gentil e extrovertido por vezes, no entanto – Cayetano foi o quieto mais extrovertido que conheci.
Sentou-se à segunda mesa do Gaetano Genovesi, à última semana do mês de junho do ano de 2015, quando fui à Itália pela última vez – pela primeira e única vez que o vi.
Fazia sol no sul de Napule. Napule, como me ensinou a dizer.
– Diz-se Napule em napolitano.
Bebia Osborne ao mesmo tempo em que comia a pizza marguerita do Gaetano Genovesi. Disse – aos goles do conhaque Osborne – que a sua filha só liga para pedir dinheiro; que seus netos não saem do celular quando os visita; que não se faz mais famílias como antigamente. Depois de dizer, pediu mais conhaque. Depois de pedir mais conhaque, me ofereceu:
– Faça o favor ao velho. – Pediu.
Não havia resposta declinante ao pedido do Cayetano, não havia espaço para dizer qualquer coisa que fosse parecida com algo declinante. Foi tão singelo e genuíno o pedido que me fora feito, que não dava de dizer não ao velho.
– Faça o favor ao velho. – Pediu.
Aos francos goles do conhaque espanhol – que dizia não ser o melhor, mas que certificava ser o que mais encantava o seu paladar – me oferecia o que eu quisesse do singelo bar do Gaetano Genovesi:
– Mando trazer do Domecq, do Dreher ou até do Henessy se quiser. Depois pediu que me sentisse à vontade à sua mesa. Depois disse que o convidado era eu, e que, portanto, ele que deveria pagar a conta.
Era conhecido até pelos desconhecidos que iam ao lugar. À medida que começava o movimento do restaurante, ouvia-se de fundo o cochicho de canto que as pessoas faziam do velho. Todos os cochichos – os de início – eram reduzidos a Cayetano. Primeiro: – Ele não tem a fama que um dia teve para esbanjar da vida assim. Depois: – Deve achar que Napule ainda o louva como um dia louvou. Depois: – Nem mesmo Pietro Rossi o teme mais, o que será que esse ainda pensa ser? Depois: – Dizem estar doente da cabeça, que as filhas cuidam dele e, quando não cuidam, faz o que faz por aí. Depois: – Logo já para por aí, não é possível um homem desse não se mancar nunca.
Cayetano também ouvia os cochichos de canto, mas não demonstrava descontentamento. Àquela altura, a única coisa que haveria de descontentá-lo era se a garçonete do Gaetano Genovesi deixasse de servir Osborne ao seu copo.
Ainda aos francos goles do conhaque espanhol, disse que já namorou uma brasileira e que já foram juntos fazer visita à família dela no Brasil; que não há noite mais quente que a noite carioca. Depois: que se não tivesse nascido em Napule, com certeza teria nascido no Rio; que ensinou seu copeiro a fazer caipirinha; que gosta tanto de Paraty quanto gosta de Montepulciano; que queria voltar ao Brasil; que o Brasil não é o país do Carnaval, mas que nem se compara o Carnaval italiano (chato e ranzinza) ao Carnaval brasileiro.
Pediu à garçonete que tocasse à vitrola do antigo restaurante napolitano o álbum Passione, de Bocelli. Aos goles do conhaque, passava primeiro por Perfidia. Depois: Roma Nun Fá La Stupida Stasera. Depois: Champagne. Depois: Nema e Core. E Por último: Quizás, Quizás, Quizás.
Ao som da quinta faixa do Passione, pediu à garçonete que trouxesse a conta da mesa. Rejeitou qualquer esboço de "vamos dividir a conta" que tentei fazer. Pegou a carteira e chaves do carro, vestiu seu paletó e apontou-me a mão. Olhou-me no olho, e apertou-me a mão direita. Com o seu olhar esverdeado e profundo, esbanjava a verdade que havia no aperto de mão e esbanjava a verdade que houve na conversa – balançou a cabeça com os beiços firmados, tendo dito, com o olhar esverdeado e profundo, que aquilo tudo foi digno de ser chamado de verdadeiro.
Foi tudo digno na última semana de junho daquele ano e foi tudo verdadeiro. E se Cayetano não fosse quieto, eu teria ouvido dele mesmo essas mesmas palavras.
Ao som da canção de Bocelli – que falava sobre as idas e vindas da vida – apontava à porta do Gaetano Genovesi como alguém que dizia estar indo embora, apenas com o olhar.
"(...)Y así pasan los días, y yo desesperando. Y tu, tu contestando(...)"
"(...)Quizás, quizás, quizás(...)"
Já com sua carteira e chaves no bolso e seu paletó, ia embora do Gaetano Genovesi, quando o chamei de fundo para perguntar:
– E o senhor, o que faz da vida?
– Faço da vida o meu livro.
– Digo das pessoas, o que te faz ser assunto para todos?
– O meu livro.
– E a noite carioca, como sabe que é quente?
– Voltei sozinho do Brasil.
– Eu volto para ver o senhor.
– Não volte, não tenha a pretensão de achar que será como foi.
– E o restaurante, por que sempre aqui?
– Foi por toda a vida o restaurante dos meus pais.
– E por que sempre a mesa 2?
– Foi onde minha mãe me deixou.