Não sei se houve alguém que experimentou, em completo estado são, todas as memórias palatáveis da diversidade de todos os sabores da felicidade. Houve, certamente, quem encontrou abrigo num cheiro de cana de açúcar no domingo de manhã, sozinho e, pairando apenas sobre o ar, como as aves, cantou – também como as aves – porquê era dia de felicidade, e dia de felicidade é também dia de cantar – as aves que o diga. Houve quem – de feliz, no domingo – tocou a terra molhada com os pés – também molhados – sem se preocupar com a sujeira, sem se preocupar com as horas, sem se preocupar com nada... como as garças, se estendeu pelo canto dos bem-te-vi e foi morar nas manhãs de domingo, como a quem descansasse a vista, descansasse o peito, descansasse a pele. Houve quem visitou a velha praça depois de anos e anos e, visitando a praça visitou a infância, visitou a saudade, visitou as lembranças olfativas – veio desta praça a saudade da casa de avó, inclusive, e o ciúme de toda a infância de domingo que se passou por lá: do misto-quente de domingo com suco tang de laranja enquanto assistia qualquer coisa na TV e se gostava muito de qualquer coisa que se assistisse porque era na casa de avó e, na casa de avó, se gosta muito de qualquer coisa. Houve quem esteve feliz mesmo que dormindo e, sonhando, teve certeza que viver é melhor que sonhar, acordou numa manhã – também de domingo – com o cheiro quente do café – também quente – da padaria e despertou para a vida, despertou para o domingo.
Não sei se houve quem passeou por toda a vida por dentre as belezas da companhia da felicidade, mas certamente houve quem encontrou o velho amigo no jogo de domingo e, comemorando o gol do time, zombou do time dos outros e, zombando bebeu mais uma cerveja e, terminando de beber a segunda, bebeu a terceira e, bebendo a terceira, pagou uma rodada para todos os amigos que perderam o jogo. Houve quem trocou as cordas do violão velho do avô – também velho – e, afinando o violão ouviu, de canto, o avô dizendo as confissões do domingo, destilando amor e saudade na esperança de renovar votos com a felicidade e fazer com que toda a semana seja domingo.
O neto era eu, no caso, e para o caso de não haver mais domingos como este com o velho, deixo aqui registrado, algumas confissões que não sei muito bem como registrar.
Quando caí naquele meio-fio de flores espinhentas, foi meu avô que me socorreu e, muito obrigado, meu velho! Se não fosse tua força eu estaria lá até hoje, brigando com as flores! Hoje as guardo no bolso e – vez ou outra – coloco no papel para falar de amor. Foi você, aliás, que me ensinou o que é amor. Quando o Santos perdeu a final de 2020 eu fiquei bravo e bati a porta do quarto assim que acabou o jogo, deixo os votos de perdão: eu estava de cabeça quente, meu velho, mas não deveria ter batido a porta. Domingo retrasado eu disse que trocaria as cordas do teu violão e – por descuido – acabei esquecendo de fazê-lo, mas temos sorte, meu velho, ainda há tempo! Deus nos deu um domingo por semana, para satisfazer nossos ciúmes dos velhos tempos e, satisfazendo os ciúmes dos velhos tempos, alimentar as pretensões da nossa saudade.
No mais, deixo o registro e, na falta dos outros registros de domingo, que são vários e tantos, me conforto enormemente e, resignado, entendo, que, se hoje não é domingo, temos sorte, meu velho!
Depois de amanhã é domingo também.