O homem de palha que observo se arrasta. Entra em colapso quando vê o carro da polícia, mas ainda se arrasta, ainda continua a se arrastar. Por ser quem é, ou por temer o nada, julgo ser justa a decisão de continuar se arrastando ao invés de correr como se não houvesse amanhã. E penso ainda, que de fato não há amanhã para o homem de palha, e se há, não há certeza de que virá de fato. Por temer o nada, ou o vazio, julgo ser justa a decisão de se arrastar, ainda mais quando não há amanhã, ou quando não houve o passado. Ou pior: houve passado trágico, que é melhor esquecê-lo já logo de começo à ficar remoendo. É melhor até esquecer que teve passado.
Para o homem de palha, resta então de arrastar, sem fugir – talvez por não dever nada a ninguém, não dever correr por ninguém ou simplesmente por não querer correr, é isto o que lhe resta: esgueirar-se do silêncio absoluto, vestir-se do caos, retocar-se das misérias e dos pecados, subsidiar e retroalimentar estes, pega-los para si, mesmo que não seja o culpado. Tomar de bruços a mais alta inércia da ignorância e do julgamento ignorante, sentir o mundo, tomar o mundo. Quando ele corre, não sente nada disso. Sente apenas o desespero e a necessidade, de necessitar do desespero e de se desesperar por necessitar do desespero. Sente o desaconchego, o horror que é ser do mundo em que se é obrigado a correr para ter de sobreviver das mãos de quem rege o julgamento ignorante do mundo.
Assim vive o homem de palha, assim sobrevivem os esquecidos. Caça fadigas nos cantos escuros da cidade, às vezes para se esconder do olhar alheio, mas às vezes apenas para fadigar por aí mesmo – buscar o descanso, depois de fadigar. Suspender o corpo, revigorar o interior, ressuscitar a alma, é justo que assim o faça, porque é bastante corajoso e belo – e justo – que ainda consiga se arrastar.
Essa coisa toda de se arrastar, isto de ter de andar, andar e andar para encontrar um canto para fadigar, de ter de pedir caridade, de necessitar de uns trocados daqui outros de lá, de necessitar das pessoas, mesmo que pouco, mas necessitar das pessoas. De quando necessitar de uns trocados mesquinhos – que de nada valem a nós – ter de vir com educação (mesmo depois de ter se arrastado), com a voz gorada, quieta, imposta sobre os olhares de quem julga as vidas, de quem pensa coisas, até mesmo sem pensar duas vezes. Com o discurso por vezes sucinto, por vezes prolixo, mas sempre genuíno – pedir, insistir, implorar:
– Desculpe incomodar a senhora, boa noite. – A senhora não teria um trocadinho pra me ajudar na passagem? – Ou senão uma comidinha, pra janta?
O homem de palha, por ser o que é, continua se arrastando. Vigia a rua, entretanto: os homens que aqui circulam, os carros que aqui percorrem dois caminhos, os de ida para o trabalho e os de volta para casa – observa tudo. Ah, homem de palha, que vida é esta? Triste e sem volta! Não basta ter de se arrastar pelos cantos, tem ainda de observar a vida dos homens.
Se arrasta agora até o fim da avenida, não carrega nada desta vez. Alguém, de súbito, parece o chamar. Alguém pequeno, de simplicidade, inocência e ingenuidade maior que a nossa. De voz mais frágil, de alma leve. De voz pequena, de alma viva.
Faz sinais, aponta coisas aqui e coisas acolá, mas sempre em direção ao homem de palha. A voz fina vai se erguendo em tom aberto, vai remoendo a avenida inteira, vai transformando os olhares de julgamento em olhares de estranheza. Vai aproximando, vai chegando perto, vai correndo para chegar perto mais rápido. Vai abrindo os braços, vai abrindo a voz, vai abrindo o sorriso. Com o sorriso aberto, vai abrindo o sorriso do homem de palha, que agora começa a correr. Agora sim, deixa tudo para trás, até mesmo a fadiga. Rompe os olhares desconhecidos, reconhece um olhar genuíno, de uma criança de palha sozinha e desamparada, mas aliviada, agora, que acaba de encontrar a vida de novo. Rompe toda a avenida, coloca todo o desespero para fora num choro pequeno e genuíno, ao chegar e abraçar a criança de palha. Toca o alívio no peito, salva a saudade,
perde a compostura, berra ao choro, grita à vida – brinda à chuva, que começa a descer. Sobem – os dois – a passarela, atravessam a avenida, tocam o céu da saudade, se abraçam e abraçam, e, até agora, continuam a se abraçar. Descem – abraçados um ao outro – a passarela, abraçam-se mais uma vez, quando a voz que chamava e fazia sinais na rua, decide abrir-se de novo para mundo, mas apenas para o mundo dos dois, de modo que só os dois possam sentir o tamanho da verdade que há nas palavras de quem gosta. E como o homem de palha gosta do moleque! E como o moleque gosta do homem de palha! A voz se abre, numa mistura glamourosa, num amor sem igual, num sentimento de alívio com saudade, num choro de canto, que é desgovernado, desbalanceado, singelo e verdadeiro, que diz:
– Papai, amanhã a gente pode tomar solvete?