Banco de Praça | #14

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Ouve – como eu – a propaganda do trenzinho municipal, que diz – ao entardecer dos ventos mortos da usina e dos ventos vivos da praça – ser o "trenzinho mais animado da região", ou talvez "o trenzinho mais divertido", ou "o mais alegre", não importa. Há de ser importante o momento, no entanto, e há de convir, portanto, que tanto ele (o senhor que me acompanha), quanto eu sabemos, que, por ser o banco da praça como é, ou por ser a vida do sozinho o que é, é na praça onde se esconde – ou se descobre – a verdade das pessoas.

Esse senhor me acompanha, mesmo sem saber e sem trocar sequer uma frase silenciosa, como um balanceio de cabeça, um gesto qualquer com as mãos, uma tirada de chapéu ou um mero aceno bobo com os braços, nada. Me acompanha na companhia que a nós é ofertada pelo banco da praça, e pela solidão que por nós é sustentada pelo nosso puro egoísmo, narcisismo ou ignorância de querer ser como são os sozinhos, de só conseguir – por necessidade ou déficit proposital de exagerada convivência social – encontrar liberdade na solidão, onde apenas o nosso egoísmo basta. Sou egoísta o suficiente para reconhecer que a solidão é uma dádiva. Uma dádiva que se aprende a cultivar com o tempo. Entretanto não venho aqui disseminar a arte da solidão, apenas reconheço que há necessidade de liberdade no viver do homem, e isso a todos – ou quase todos – é reconhecível. Há de se entender, portanto, que a liberdade que em mim habita, a minha liberdade genuína, só vem quando estou só, e sou sensitivo o bastante, caro leitor, para reconhecer e entender, que se este fato não é de todo ruim, certamente não é de todo bom: somos seres sociáveis, necessitamos do convívio social, evoluímos por meio da comunicação, etc. Não preciso, contudo, estar sozinho, para ser sozinho. Sou sozinho porque me basto se estiver sozinho, mas não recuso a companhia, tamanha é a minha vontade de vivenciar, conhecer e experimentar. Céus, se eu soubesse descrever em poucas frases a minha vontade de vivenciar, conhecer e experimentar, certamente seria o basta, o ponto final de tudo aquilo que escrevo.

Nem banco de bar, nem banco de varanda: banco de praça. É onde a nós é dito, de maneira simples, clara e verdadeira, o que somos e o que devemos fazer. Não me engano, porém. Sei que o banco da praça, traz também a nossa pureza – também simples, clara e verdadeira – de ser apenas o que conseguimos ser, e por saber e por dizer que não me engano, refiro-me à pureza do ser e não do estar. A pureza de menino, que mais se preocupa com o choro de Jesus quando está chovendo, do que lembrar de colocar o guarda-chuva no banco de trás do carro. É justamente na fase que deixamos de nos preocupar com o choro de Jesus que começamos a morrer, é bastante triste a morte da infância. Se há ressureição para nós, senhores, eu não sei. Mas sei que nós, quando no banco da praça, deixamos de morrer, e deixamos também de nos preocupar com o guarda-chuva.

Poderia ir até ele (o senhor), por mera pretensão do acaso, formada pela minha vontade – também mera – de vivenciar, conhecer e experimentar

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Poderia ir até ele (o senhor), por mera pretensão do acaso, formada pela minha vontade – também mera – de vivenciar, conhecer e experimentar. Poderia puxar algum assunto sobre o tempo, sobre futebol ou sobre política, mas não – banco de praça não é lugar para isso.

O homem que aos meus olhos alcança, parece ser – como eu – um sozinho. Parece, porém, que pouco se preocupa com isso, trata-se de um genuíno sozinho. Meio aos ventos e às folhas secas caindo, traçamos – eu e ele – olhares sobre a praça, olhares genuínos. Traçamos sobre os nossos olhares, as memórias sonoras do banco de praça: o canto das aves, as brincadeiras das crianças, os cães latindo, as mães chamando as crianças, as folhas caindo, o barulho das abelhas, o vento batendo nas árvores.

Observo, agora, o muro da quadra de tênis, pintado à sprays coloridos, de autoria de algum artista qualquer, que como eu (e também artista qualquer), ainda tem a vontade de insistir na arte. Vejo ao pé esquerdo do terceiro desenho na parede, o mesmo azul mediterrânico da capa de Never Enough, de Daniel Caesar. Vejo também no pé esquerdo do terceiro desenho, o endereço de perfil do artista no Instagram. Cogito agora, pegar meu celular e seguir o perfil. Eu – como o artista – gosto de insistir na arte. Aqueles que – como nós – gostam de insistir na arte, geralmente gostam também de insistir nas pessoas. Cogito pegar o celular, mas não – banco de praça não é lugar para isso.

Ouvimos agora apenas o mundo. Algumas aves e algumas folhas secas caindo no chão. Alguns homens mortos de vida e algumas crianças cheias dela. As crianças, quando na praça, tem ainda mais vida. Vejo ao meu canto esquerdo uma bola de futebol dourada, daquelas de marca, daquelas de presente de natal e daquelas que se tem de buscar de tempo em tempo, quando cai para fora da quadra. Esta parece, no entanto, ter sido abandonada por alguém – a julgar pelo desgaste do couro e pela tintura escassa. Parece que foi perdida por alguém que veio à praça e esqueceu da bola, veio à praça e esqueceu de voltar – este(a), assim como a bola, morreu. Esqueceu de voltar à vida, perdeu-se no mundo adulto, perdeu sua bola de futebol na praça, não voltou mais. Talvez tenha – assim como a bola – se perdido por aí.

Ouvimos, agora, tudo o que o trenzinho municipal não nos deixou ouvir. Ouvimos todo o mundo que nos foi privado de ouvir por alguns – quase eternos – segundos, no banco da praça. Ora, por aqui tudo é mundo, até mesmo a bola dourada de futebol, mas não posso chamar de mundo o trenzinho, nem por meio tempo. Por mais que carregue a vida que há nas crianças, não dou razão em chamar o trenzinho de mundo, não mesmo. Tirou – ao som de cantigas de carnaval estouradas e teasers chinfrins – a vida que havia na praça, inclusive a vida dos sozinhos que nela habitam, e que a ela recorrem quando sentem que a vida – dos adultos ou dos acompanhados – os trouxe de volta à morte, prematura e irresponsável daquele, que foi um dia à praça, esqueceu-se da sua bola de futebol e nunca mais voltou. A morte da bola de futebol é bastante triste também.

Começa a descer a noite, e junto dela, começa a descer o sereno. Levanto-me do banco. Ascendem-se as luzes da praça e agora consigo ver que a cor da bola de futebol não era dourada, e sim amarela. É um amarelo em tons dourados, porém. O sereno, que até então era só sereno, vira chuva, e com a chuva, a vida e o mundo que há na praça vão embora. O senhor – como eu – se levanta do banco, tira do bolso de seu paletó uma pequena sombrinha e vai em direção à quadra de tênis. Depois de ir em direção à quadra, atravessa a rua e segue seu caminho, ergue a mim o olhar de sozinho que a ele é erguido assim que, com um gesto silencioso, me diz adeus. Os pais mortos de mundo e de vida, repreendem as crianças e dizem que é hora de ir embora; que a chuva está apertando; que vão gripar; que se começar de birra, não trarão elas à praça nunca mais; que se não forem logo pro carro, vão ficar de castigo; etc.

Na minha cabeça é sempre assim: um certo dia – ou noite – começou a chover na praça, a criança foi repreendida e teve que ir embora correndo; esqueceu a bola de futebol porque teve que ir embora correndo; foi repreendida depois, no carro, por ter demorado a entrar no carro; foi repreendida depois, em casa, por ter perdido a bola de futebol, e então nunca mais voltou – perdeu a preocupação com o choro de Jesus, passou a se preocupar com o guarda-chuva e fim, nunca mais voltou à praça. Alguns voltam, porém, na ilusão de voltar a ter vida e mundo, mas não eu. Sei – como o senhor que me acompanhava – que a vida e o mundo da praça morrem assim que começa a chuva, e então reduzo-me à minha morte e volto para casa, mas amanhã se não chover cedo eu volto, para desfrutar da pouca vida que ainda me resta: a vida do banco de praça.

Eu já tive uma bola de futebol amarela em tons dourados.

Eu já tive uma bola de futebol amarela em tons dourados

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