Michelle | #10

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Colocou Michelle para tocar no amplificador da sua antiga Telecaster, que um dia fora de seu avô. Cantávamos a segunda estrofe dos versos italianos do sucesso geracional da banda de Liverpool quando levantou e foi até o quarto buscar algo. Levantei e apontei para ir junto dela.

– Nem pense, já volto. – Disse. Depois de dizer foi. Depois de ir voltou. Voltou já no último verso da música que dizia a todos o que só Macca, Lennon e mais alguém sabiam. O que não poderiam imaginar é que eu e ela também saberíamos sobre o que a canção dizia. Esta página dedico à minha Michelle.

Depois de ir, voltou – já no último verso. Fez questão de passar pelo amplificador e repetir Michelle, porém. Jogou-me a blusa de frio mais fria e o par das pantufas mais feias e mais aconchegantes que já vi. Depois de voltar, foi mais uma vez. Suspendeu seu canto ao quarto, cantava os primeiros versos antes mesmo de Lennon cantar, e, quando Lennon começou a cantar, cantou junto dele. Reduziu seu brilho ao quartinho de brinquedos de sua filha. Pestanejava e fazia barulhos de inquietação ao procurar o que parecia estar invisível aos olhos de quem observava. Sentiu. Sentiu saudades de mim e então voltou à sala, pediu-me para procurar no quarto de sua filha, sua maleta de adesivos. A gente tinha de colar alguma na Telecaster – já em mapple exposto e sem tintura – de seu avô. Disse que os adesivos são o que restaram da sua Telecaster, desde criança.

 Disse que os adesivos são o que restaram da sua Telecaster, desde criança

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– Temos de colar mais um. – disse. Depois de dizer, disse que os momentos especiais merecem adesivos. Depois, disse que para ela aquele momento era especial. Depois, disse que queria registrar o momento especial.

– Por que não em fotos? – perguntei.

– Não consigo colar fotos na guitarra.

– Por que colar na guitarra?

– Vá até o quarto.

Enquanto acabava a última estrofe de Michelle, eu me ajeitava para ir até o quarto. Ao passar pelo amplificador, tornei a repetir Michelle e fui ao quarto procurar pelos adesivos. Trancou-me no quarto depois que entrei. Depois de me trancar, deu risadas. Depois de dar risadas, abriu a porta. Depois de abrir, sorriu e me fez sorrir junto dela. Sorríamos o sorriso mais sincero que um dia sorri e então entendi o que dizia a canção de Macca e Lennon – disse à ela. Disse à ela que gosto das pantufas dela; que me faz sorrir sem dizer nada; que gosto de ouvir Michelle com ela; que seu abraço encaixa no meu; que é difícil encaixar abraço do jeito que o nosso encaixa; que queria que conhecesse meus pais; que isto (o modo como vivemos) faz com que eu me sinta cada vez mais vivo.

À sala, tirou os adesivos que estavam no bolso dela e me entregou.

– Tome, escolha o seu.

Depois de escolher, fomos colar o adesivo na guitarra. Desajeitado, colei meu adesivo por cima do adesivo dela – sorriu, e então Michelle parou de tocar. Depois disso, Michelle também parou de tocar. Ficamos em silêncio. Desde que Michelle parou de tocar, não temos dito mais nada. Às vezes reservo-me a questionar: haverá algum dia em que Michelle voltará com seus adesivos para mim?

Não ouço mais Michelle, e não seria justo ouvir Michelle sem ter Michelle junto de mim.

Não ouço mais Michelle, e não seria justo ouvir Michelle sem ter Michelle junto de mim

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