Fim

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Janeiro chegou trazendo consigo a certeza de que aquela seria a última vez que os pais de Mabel e Mavi sofreriam com a possibilidade de perder o direito de viver com elas.

Os três meses que passaram juntas... Ela nunca ia esquecer de como tudo começou. Nunca ia se esquecer da empolgação que passou a sentir desde o primeiro dia, quando ela acordava de manhã sabendo que havia duas pessoinhas esperando pela visita dela ao orfanato.

Ela nunca se sentiu tão amada como passou a sentir depois disso. Cada dia com elas na sua vida era um presente e tanto. E agora...

Maya observou o seu rosto no espelho daquele banheiro desconhecido e intimidador. Tudo era tão... Escuro e dramático ali, apesar de ainda ser dia...

O celular dela tocou e ela atendeu com as mãos trêmulas.

– Alô? Pai?

Maya. – o velho suspirou do outro lado da linha – Já aconteceu?

– Ainda não. Estamos esperando.

Ah...

Maya aguardou enquanto ouvia sua respiração ruidosa.

– O senhor já está no aeroporto?

Por causa de uma viagem de negócios ele não ia se juntar a família para presenciar aquele momento tão especial.

Não... Não, ainda estamos no caminho. – ele disse – Maya...

Ela se preparou, ajeitando sua postura inconscientemente.

– Sim, papà.

Eu só queria dizer que... Estou velho. Estou velho e estou me sentindo mais... Como posso dizer... Sentimental. – ele tossiu um pouco. Um momento raro em que deixava evidente a sua fragilidade – E isso me fez pensar no que tenho feito, no que eu fiz... Com você. As coisas que eu te fiz que te magoaram...

– Pai...

Eu sei que não agi certo em alguns momentos. Sei que fui um pouco rígido demais, que fui... Bom, que fui um velho egoísta. Eu quis muito que você continuasse morando na minha casa, sendo a minha filhinha... – ele ficou em silêncio por alguns segundos, e Maya se perguntou se poderia ser porque estava tentando controlar o choro – E agi de forma vergonhosa. Guardei rancor e fiz... Coisas ruins. Várias coisas ruins. Pra te impedir de deixar a minha casa.

Maya encarou seus pés sem saber o que dizer. Nem sequer estava acreditando que era o seu pai que estava dizendo aquelas coisas.

Você está tão diferente, querida. Está tão segura. E eu... Eu poderia ter participado dessa sua mudança. Mas escolhi ser um patife. – ele respirou fundo, e Maya quase pode imaginar ele estufando o peito e erguendo o queixo – Eu só liguei para dizer que eu me arrependo disso, de ter perdido o tempo que eu poderia ter passado com você, te apoiando e te ajudando no que precisasse. Sei que me tornei uma espécie de vilão na sua vida...

– Pai, claro que não. Que besteira...

...Eu só queria dizer... Que eu sinto muito orgulho de você. Eu e sua mãe estamos orgulhosos de você. Você pode não estar com a vida que eu escolhi, mas... Você conseguiu conquistar tudo que queria, e agora que parei pra pensar, percebi que isso pra mim já basta. Que você esteja se sentindo feliz e realizada com o que conquistou sozinha.

Ela já tinha conseguido se controlar antes, mas foi impossível segurar as lágrimas outra vez ao ouvir aquelas palavras.

É só isso que eu queria dizer. – ela ouviu o barulho de um isqueiro – Se precisar de alguma coisa, é só telefonar para o papà, ouviu? Estou do outro lado do mundo mas isso não me impede de pisar em algumas cabeças. Ouviu bem?

– Papà... – ela riu em meio ao choro – Sim, ouvi. Já entendi.

Hum... Você é minha filha, Maya. Não deixe que ninguém te diga que não é capaz, ouviu? Continue sendo essa menina teimosa que sempre foi. Não abaixe a cabeça para ninguém, entendeu? Exatamente como fez comigo.

Ela deu uma risadinha, e seu sorriso se alargou quando ouviu a dele do outro lado da linha.

– Sim senhor.

Muita coisa aconteceu nos minutos que se passaram após aquela ligação. Ela foi direto para o tribunal do júri, respondeu quando perguntas foram feitas a ela e a Khan a respeito da mudança do pedido de adoção de unilateral para bilateral — já que eles tinham se casado recentemente — e então, foi como se de repente ela enfim tivesse voltado a si ao ouvir a frase:

– Maya Bianchi e Khan Salem, vocês aceitam adotar Mavi e Amabel como a família de vocês?

Khan foi o primeiro a dizer, apertando a mão gelada de Maya como se para lhe dar forças e não se emocionar mais uma vez.

– Sim, excelência.

– Sim... Com certeza. – ela sorriu, trocando um olhar com ele.

As meninas, que estavam mais na frente ao lado das duas assistentes sociais que acompanharam suas trajetórias — além das gaiolas onde Musa, Colette, Plutão e Pedromar estavam assistindo tudo sem entender nada —, se agitaram no banco pois sabiam que era a vez delas.

O juíz, que era um homem de ar sério, sorriu de forma agradável ao desviar o olhar para as crianças:

– Amabel e Mavi, vocês aceitam o Khan e a Maya como pai e mãe de vocês?

– Simm... – Mabel, brincando com a borda do seu vestido, respondeu no automático, quase como se respondesse a uma pergunta simples de um professor, o que fez todo mundo rir.

– Sim. – Mavi assentiu com veemência.

– Então, sendo assim, pelos poderes concedidos a mim pelo Estado do Rio de Janeiro, – a excelência olhou para os quatro com um sorriso – eu os declaro uma família.

Ao ouvir as palmas e os gritos de todos os outros presentes, Maya enfim se deixou chorar enquanto abraçava e era abraçada pelas pessoas que amava.

Sua família.

Em que momento da sua adolescência problemática ela ia imaginar que teria o que estava tendo agora? Quando ela ia imaginar que conseguiria chegar onde chegou sem que tivesse que ter seu coração partido mais uma vez?

A conversa que ela teve com a mãe a fez refletir sobre o que tinha feito ela querer seguir em frente, querer continuar, mesmo quando tudo que conseguia pensar era em desistir e fazer a vontade da sua família. Foi mágoa que a incentivou? Foi a revolta que sentia? Foi o pedido de socorro que seu corpo gritou?

Depois de muito tempo pensando nisso, Maya chegou a conclusão de que o que a fez continuar não foi nada disso. Sim, sua raiva e sua tristeza eram grandes, sua dor e sua quase morte foram assustadoras naquela época, e ainda assim... Não foi nenhum desses que a fez seguir em frente.

Foi, acima de tudo, o que ela sentia por si mesma. Assim como sua mãe, ela se perguntou: eu quero mesmo continuar vivendo dessa forma?

E porque ela ainda tinha o seu sonho intacto, a sua força de vontade, seus privilégios e, principalmente, porque ela tinha amor, ela resolveu se levantar e continuar seu caminho.

Maya percebeu que o poder daquele sentimento sobre uma pessoa, como muitos diziam, era capaz de cegar, aleijar, destruir; em nome dele muitas coisas ruins foram feitas... Mas ele também era capaz de salvar. Era capaz de fazer alguém se levantar da lama, se limpar e continuar seu caminho para chegar até além do que almejava.

Foi o que Maya sentia por si mesma que lhe deu forças para sair daquela casa, do domínio da sua família, e ir construir sua vida sozinha. Foi o desejo de se cuidar e de se amar mais que a fez comprar a casa que comprou, e que a fez construir o seu lar. E foi o amor que sentia, que conforme o tempo foi passando começou a exigir o que seu coração tanto queria, que a fez ir atrás daquelas duas crianças que esperavam por ela.

Maya percebeu que presenciou o poder do amor na sua própria vida. E que embora isso não fosse a resposta para todas as suas perguntas, ela era mais do que grata por ele existir dentro de si e por ter lhe ensinado o suficiente para que pudesse compartilhar com quem amava.

E ela ia continuar vendo o poder do amor agindo na vida das pessoas a sua volta por bastante tempo.

O Poder do AmorOnde histórias criam vida. Descubra agora