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HELENA

Três dias antes...

A sensação de estar fora de lugar sempre me acompanha quando entro em casa. Era o que eu pensava toda vez que a porta da frente se fechava atrás de mim, e eu respirava profundamente, me preparando para encarar minha madrasta Rita e minhas irmãs, Roberta e Marcela.

Mas e o meu pai? Bom, ele estava lá, mas era como se não estivesse...

A casa onde cresci, onde deveria encontrar conforto, agora parecia mais uma prisão de onde eu precisava escapar.

Quando cheguei da faculdade naquela tarde, esperava pelo menos alguns momentos de paz ao invés das hostilidades de sempre. Mas, como de costume, paz era um luxo que eu não tinha.

Eu já estava formada e tinha acabado de buscar meu diploma, o que deveria ser comemorado... Mas não aqui em casa.

Na verdade tudo tinha ficado mais hostil desde que comecei a faculdade. A raiva da Rita, o desprezo das minhas irmãs parecida ter multiplicado.

Minha madrasta, Rita, estava na ponta, como sempre. Meu pai, sentado ao seu lado, mergulhado em silêncio, enquanto Roberta e Marcela, minhas irmãs mais novas, riam de algo que parecia só fazer sentido para elas.

Olhando assim, pareciam até uma família normal, pensei.

Respirei fundo e coloquei minha bolsa no canto, forçando um sorriso.

— Vou lavar as mãos e já venho. — disse.

Mal me virei em direção ao banheiro quando a voz cortante de Rita interrompeu meus passos.

— Pra quê vai lavar as mãos, Helena? Aliás, pra quê vai comer mais? Já comeu pelos próximos dez anos, não acha, menina?

Parei por um instante, meu corpo inteiro congelando, tentando processar a crueldade das palavras. Quando finalmente me virei, Rita estava me olhando de cima a baixo, o olhar carregado de desprezo.

— Você não acha que já tá enorme, não? — continuou. — Nem sei como uma gorda desse jeito conseguiu se formar médica, não passa credibilidade nenhuma. Quem vai querer ser tratado por alguém que não cuida nem de si mesma?

Roberta, minha irmã mais nova, começou a rir, disfarçando o riso com a mão na boca, enquanto Marcela gargalhou alto, como se fosse a melhor piada que já tinham ouvido.

Olhei para o meu pai, esperando que ele dissesse algo, que me defendesse de alguma forma. Mas ele continuou comendo, cabeça baixa, olhos fixos no prato, como se nada estivesse acontecendo.

— Pai... - comecei, a voz falhando. — O senhor não vai falar nada?

Ele sequer levantou o olhar. Meu peito apertou. Estava acostumada às palavras venenosas da Rita e ao comportamento cruel das minhas irmãs, mas a apatia do meu pai doía mais do que qualquer insulto.

— Não vou mais comer. — declarei, com o choro entalado na garganta. — Vou direto pro hospital. Alguém aqui tem que colocar dinheiro nessa casa.

Estava prestes a sair quando Marcela se levantou e veio até mim.

— Tá se achando só porque agora é doutora, né? Acha que é melhor que a gente? — Marcela se aproximou, um sorriso maldoso curvando seus lábios. — Doutora gorda e idiota! Acha que as pessoas vão te respeitar por causa disso? Só conseguiu passar porque vivia com a cara nos livros, sem vida social. Também, feia desse jeito, quem ia querer você?

Meu coração batia acelerado, a raiva crescendo em mim, mas eu sabia que responder só pioraria as coisas.

— Não me acho melhor do que ninguém.— consegui dizer, embora minha voz tremesse. — Só estou fazendo o que posso pra ajudar, porque se eu não trabalho, ninguém nessa casa come, sabia disso?

Marcela bufou, cruzando os braços.

— Você deve ser virgem, né? Só pode. — Ela riu alto, com desdém. — Alguém já te comeu, Helena? Ou continua aí, encalhada?

Roberta começou a rir junto com Marcela, ambas aproveitando o momento para me humilhar ainda mais. Eu me senti pequena, insignificante.

CHEGA! — A voz do meu pai, finalmente, cortou o ar. Ele levantou o olhar, pela primeira vez, encarando Marcela e Roberta. — Parem com isso agora. Será que não se pode ter um momento de paz nessa casa?

O silêncio caiu sobre a sala por alguns segundos. Ele nunca tinha interferido antes, mas, mesmo assim, não era suficiente.

Ele não as defendeu por mim, só queria acabar com a cena. As palavras já tinham sido ditas, os estragos já estavam feitos.

Olhei para ele, depois para Rita e minhas irmãs. Estava claro que, ali, eu era a intrusa.

— Não vou ficar aqui aguentando isso. — avisei, decidida a sair dali.

— Melhor assim. - Rita murmurou com satisfação quando peguei minha bolsa e fui em direção à porta. — A última coisa que precisamos aqui é você atrapalhando nosso almoço de família.

Almoço de família.

Quando foi que eu deixei de ser parte da família?

As palavras ecoaram na minha mente, se repetindo. Eu já não fazia parte daquela família há muito tempo.

Desde que mamãe morreu e que meu pai decidiu se casar de novo com a Rita. Uma mulher amarga, má e que não fazia questão nenhuma de esconder que não me suportava. E ela tinha criado minhas duas irmãs para pensarem da mesma forma.

— E eu vou voltar a dormir, porque o baile ontem foi maravilhoso, e hoje tem mais. Tenho que ficar bem bonita pro Muralha. Tô sentindo que hoje ele enxerga essa gostosa aqui. — Marcela apontou para o próprio corpo e olhou para o meu, com um sorriso debochado. — Não tenho que ficar perdendo tempo com uma coisinha insignificante como você, garota.

Sem olhar para trás, saí apressada, o som das risadas das minhas irmãs ainda ecoando pelos meus ouvidos. As lágrimas, impossíveis de segurar, começaram a rolar pelo meu rosto.

Eu andava rápido pelas ruas do morro, tentando escapar da dor que queimava meu peito, mas ela parecia me seguir, se agarrando a cada passo que eu dava. Não podia parar. Não podia pensar. Tinha que continuar, mesmo que não soubesse para onde.

Então, esbarrei em alguém.

Meu corpo se chocou contra uma parede sólida de músculos. Levantei os olhos e vi quem era: Rodrigo, o dono do morro, o homem que todos temiam e respeitavam.

Levantei o olhar, encontrando os olhos dele. Rodrigo tinha traços fortes, marcantes, e seus olhos puxados revelavam sua ascendência asiática. Ele era um homem de uma beleza quase exótica, que o tornava intimidador e irresistível ao mesmo tempo.

Eu senti o rosto queimar de vergonha, uma mistura de pavor e constrangimento tomando conta de mim.

— Olha por onde anda, porra! — sua voz grave cortou o ar, mas ao olhar para mim, algo em sua expressão mudou. — Qual foi?

Limpei as lágrimas rapidamente, tentando recuperar o controle. Mal conseguia olhar para ele.

— Nada. - murmurei, a voz falhando. — Não é nada.

Ele me olhou por mais alguns segundos, como se tentasse ler algo em mim, mas logo deu de ombros e se afastou.

Protegida pelo Dono do Morro [Série Donos do Morro #3]Onde histórias criam vida. Descubra agora