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HELENA

— Sou a médica dele. — respondi, tentando manter meu tom neutro, sem mostrar o quanto eu estava chocada com tudo que tinha acabado de ouvir.

Ela me mediu da cabeça aos pés, claramente avaliando quem eu era e o que estava fazendo ali.

Então, algo em sua expressão mudou; foi como se, num instante, ela soubesse que eu tinha escutado tudo. A vergonha se misturou à raiva em seu rosto, mas ela manteve a postura, apertando os lábios como se quisesse evitar dizer mais do que já havia dito.

— Você deve achar que eu sou um monstro, né? — ela disse com um tom ácido, olhando diretamente nos meus olhos, como se estivesse me desafiando.

— Eu não... sou ninguém pra julgar. — respondi, tentando ser o mais profissional possível. Mas, por dentro eu estava julgando.

Ela deu um sorriso seco, sem humor.

— A gente tava ficando. — confessou, a voz trêmula e os olhos desviando para o chão, como se as palavras fossem pesadas demais para encarar de frente. — Fazia uns cinco meses já... — repetiu, como se precisasse reforçar. — Eu sou amiga da prima do Igor, nos conhecemos meio que por acaso.

Ela deu uma pausa, a mão inquieta torcendo o canto da blusa, enquanto as lembranças pareciam voltar com força total.

— Eu nem sou daqui, sabe? Tava só de passagem, mas... gostei dele, sei lá. — A frase saiu apressada, mas logo ela se corrigiu, como se quisesse justificar seus sentimentos, talvez até para si mesma.

Eu não sabia o que dizer. Não estava ali para ouvir confissões, mas ela parecia precisar despejar aquilo para alguém, e eu era a única pessoa disponível no momento.

— Mas eu sou tão jovem pra ficar com alguém assim... um homem incompleto.

Olhei para ela, sentindo o desconforto subir pela minha garganta, mas tentando manter a calma.

Era difícil ouvir aquilo, principalmente sabendo o que Muralha estava enfrentando.

— Ele não tá incompleto. — senti uma necessidade quase visceral de rebater aquelas palavras que pareciam tão cruéis. — O Muralha tá passando por um momento difícil e precisa de todo apoio que puder receber. Ele ainda é o mesmo homem, com ou sem a perna.

Ela desviou o olhar por um segundo, mordendo o lábio, como se estivesse considerando o que eu disse, mas logo balançou a cabeça, impaciente, como se quisesse afastar qualquer dúvida.

— Eu não posso dar esse apoio pra ele. — repetiu, agora com mais firmeza, como se estivesse tentando se convencer de que aquilo era o certo a fazer. — Não posso mesmo. Não sou esse tipo de pessoa.

Eu respirei fundo. Era impossível não sentir uma pontada de irritação. Como ela poderia ser tão fria?

— Eu não sou capaz de lidar com isso. — continuou, soltando um suspiro pesado. — Ele precisa de alguém mais forte, alguém que saiba como lidar com tudo isso... E eu... eu quero viver minha vida, entende? Sair, me divertir, aproveitar. Eu ainda sou jovem demais pra ficar presa em algo assim, com alguém que não pode me dar o que eu quero.

— Você não devia ter falado que sente nojo. — acusei. — Eu senti nojo, mas foi de ouvir você dizendo essas coisas pra um homem que já está bem mal. Não sente vergonha?

Ela parou por um momento, me olhando surpresa, como se não esperasse que eu fosse reagir dessa maneira. Achei, por um breve segundo, que ela fosse se desculpar, mas ao invés disso, ela deu de ombros, com indiferença.

— Dane-se. — disse, com um tom apático, quase arrogante, como se nada do que eu dissesse pudesse afetá-la. — Eu não vou perder minha juventude ao lado dele. Eu tenho que pensar em mim.

As palavras dela ecoaram no ar como um tapa na cara, sem qualquer vestígio de remorso ou empatia.

Ela nem sequer olhou pra mim de novo, simplesmente se virou e começou a descer as escadas com passos apressados, como se estivesse fugindo de qualquer confronto que pudesse surgir dali.

Fiquei ali, olhando ela ir embora. Eu mal conseguia acreditar no que tinha acabado de ouvir, o coração pesado e a mente girando em torno do que tinha acabado de acontecer.

Eu ainda podia ouvir os passos apressados da mulher se afastando, mas o som foi rapidamente abafado por um barulho mais intenso vindo do quarto do Muralha.

O som de algo quebrando. Primeiro um, depois outro. O impacto seco de objetos se despedaçando contra a parede ecoou pelo corredor, seguido por gritos de raiva que me fizeram estremecer.

Ele estava destruindo tudo lá dentro.

A pena me invadiu, sufocando qualquer tentativa de pensar em algo prático. Eu sabia que a visita daquela mulher tinha feito a escuridão dentro do Muralha se expandir ainda mais.

Ela tinha atiçado a raiva e o desespero que já o consumiam, e agora seria ainda mais difícil tirá-lo desse casulo de dor em que ele se trancou.

Respirei fundo, tentando me encher de coragem. Eu não podia deixar ele assim. Não podia virar as costas e ir embora como se nada tivesse acontecido. Ele precisava de alguém, mesmo que não quisesse admitir.

Caminhei em direção ao quarto e quando cheguei à porta, hesitei por um segundo. O quarto estava um caos completo. As prateleiras reviradas, móveis virados, pedaços de vidro e cerâmica espalhados pelo chão, como se um furacão tivesse passado ali.

Mas o que mais me chocou foi vê-lo ali, sentado no chão, desmoronado de um jeito que eu jamais imaginei que veria.

As costas largas, repletas de tatuagens, estavam curvadas, algo que contrastava com a imagem do Muralha que eu conhecia.

A cabeça dele estava baixa, os ombros tremiam intensamente enquanto soluços saíam em ondas, reverberando no quarto silencioso.

Ele chorava alto, desesperado, e segurava a própria coxa com força, exatamente onde antes havia a perna que ele agora tanto lamentava.

A cena me pegou de surpresa. O homem que todos temiam, o chefe durão e imbatível, estava ali, despedaçado, exposto na sua dor.

Eu nunca imaginei que o veria assim, e de certa forma, a dor dele me afetou mais do que eu queria admitir.

Ele nem percebeu que eu estava ali, e por um momento, fiquei parada, sem saber como agir, tentando processar aquela cena inesperada.

O que eu poderia dizer a ele? O que poderia fazer para aliviar aquela dor que estava consumindo ele por dentro? Não havia palavras mágicas para curar aquilo, e qualquer coisa que eu dissesse provavelmente soaria insignificante.

Mesmo assim, algo dentro de mim me empurrou a tentar.

Me aproximei devagar, e por um momento, pensei em voltar, em dar a ele o espaço que tanto pedia. Mas parei a poucos metros dele, observando os soluços que faziam seu corpo todo estremecer.

— Vai ficar tudo bem. — murmurei, mesmo sabendo que talvez aquelas fossem as últimas palavras que ele quisesse ouvir naquele momento. — Eu sei que parece impossível agora, mas... vai ficar tudo bem.

O choro dele cessou de imediato. Como se minhas palavras tivessem atingido algum botão de pausa dentro dele.

O quarto foi mergulhado em um silêncio pesado. Ele permaneceu imóvel, ainda de costas pra mim, mas eu sabia que algo tinha mudado. O corpo dele ficou tenso, rígido, como se cada músculo estivesse à beira de explodir.

E então, com uma voz carregada de ódio, ele finalmente quebrou o silêncio.

— O que você tá fazendo aqui de novo? — A voz dele veio baixa, mas carregada de uma raiva profunda. — Quem te deu o direito de entrar na minha casa?

Eu engoli seco, o coração disparado no peito. Sabia que ele estava destruído, e essa destruição só fazia ele se agarrar à raiva.

Protegida pelo Dono do Morro [Série Donos do Morro #3]Onde histórias criam vida. Descubra agora