13

858 93 9
                                    

HELENA

O sol mal tinha nascido e já era hora de começar outro dia. Mais um dia daqueles em que eu só queria estar bem longe dessa casa. Acordei cedo, como sempre. Vesti a primeira roupa que vi pela frente e prendi o cabelo de qualquer jeito. Me olhei no espelho e suspirei, exausta.

Pegar o ônibus lotado, passar a manhã inteira no trabalho, tentar fazer com que o Muralha começasse a se tratar e torcer pra ele não jogar alguma coisa na minha cara e, por fim, voltar para o eu lar. Essa era a minha vida. 

Uma rotina insuportável, mas era o que eu tinha. O que não dava mais era continuar fingindo que tudo estava bem, especialmente depois do que aconteceu ontem à noite.

Peguei a bolsa e me preparei para sair. Estava quase indo para a cozinha fazer um café rápido, quando o vi. Ele estava sentado à mesa, de cabeça baixa, o corpo meio mole, como se o cansaço ou a ressaca o alcançado em cheio.

Meu pai.

Dei meia volta imediatamente. Eu não queria ter que lidar com ele logo cedo. Não depois do que ele fez ontem. Mas antes que eu conseguisse dar mais um passo, ouvi sua voz me chamar:

— Helena.

Fechei os meus olhos por um segundo. Respirei fundo e virei de novo, devagar.

— O que foi, pai? Quer revirar minha bolsa de novo antes de eu sair para ver se tem algum dinheiro escondido? — perguntei, sem conseguir esconder o sarcasmo.

Ele abaixou a cabeça, envergonhado. Não falei nada por um momento, mas eu pude ver a culpa pesando sobre ele. E, mesmo assim, eu sabia que a culpa não iria durar. Nunca durava.

— Me desculpa, filha. — ele disse. — Eu... eu não queria ter feito aquilo ontem. Foi um momento de loucura... eu só queria beber mais, só isso. Não tinha dinheiro e perdi o controle.

Suspirei, já sabia como aquela conversa iria acabar. Era sempre a mesma coisa. Ele fez uma besteira, depois pediu desculpas e prometeu mudar. Mas era só até a próxima garrafa aparecer. Depois tudo recomeçava.

— Desculpa? — soltei uma risada amarga. — Eu não aceito suas desculpas, pai. Sabe por quê? Porque eu sei que assim que você beber de novo, vai fazer a mesma coisa. Não adianta nada pedir desculpas hoje, se amanhã ou depois tudo vai se repetir.

Ele ficou em silêncio, e eu achei que a conversa tinha acabado por ali. Mas então ele colocou a mão no bolso e tirou o dinheiro. Ele colocou em cima da mesa, com o olhar ainda baixo.

— Eu... eu não queria fazer aquilo. Fiz por desespero. Sei que não justifica, mas... — Ele suspirou, esfregando o rosto com as mãos. — Eu tava fora de mim. Só conseguia pensar em continuar bebendo. Não tinha dinheiro, e eu... fiz o que fiz.

Eu cruzei os braços, sentindo um peso no peito. Não era novidade. Eu já sabia como era o ciclo. Até queria acreditar que ele poderia mudar, que as coisas pudessem ser diferentes. Mas, a essa altura, eu já estava cansada de promessas vazias.

— Já que o senhor fez tanta questão do dinheiro ontem, pode ficar com ele. Continua se afundando, porque eu acho que não me importo mais. — Minha voz saiu mais fria do que eu pretendia, mas era exatamente o que eu sentia. Um vazio. Uma exaustão que parecia não ter fim.

Ele falou os olhos pra mim, surpreso. Acho que ele esperava que eu brigasse, que eu gritasse como sempre. Mas eu não tinha mais forças para isso. Tinha chegado a um ponto em que eu não sabia mais se me importava.

— Helena, por favor... — ele tentou, a voz tremenda. — Me perdoa.

Neguei com a cabeça, firme.

— Não, pai. Eu não vou te perdoar. Eu não posso te perdoar. Porque, se eu fizer isso, é como se eu estivesse dizendo que tá tudo bem, que eu vou continuar aguentando. Mas eu não vou. — Suspirei, tentando controlar as lágrimas que começavam a se formar. — Eu sou a única que sustenta essa casa, pai! Sou eu quem paga as contas, quem cuida de tudo. E você só faz as coisas ficarem mais difíceis.

Ele abriu a boca para falar, mas eu o interrompi, apontando pro dinheiro em cima da mesa.

— Se você quer tanto, fica com esse dinheiro. Eu ia pagar as contas com ele, mas sabe de uma coisa? Eu não me importo mais. Paga as contas dessa droga de casa você mesmo. Ou não paga, tanto faz. — Tirei os boletos da bolsa e joguei na mesa. — Tá tudo aí. Se vira.

Ele olhou para o dinheiro e depois para mim. Era como se ele finalmente estivesse percebendo o que tinha feito. Mas eu sabia que era só mais uma cena, mais um ciclo que logo se repetiria.

— Eu sei que errei, Helena... eu sei... — ele murmurou, a voz embargada.

Eu balancei a cabeça, tentando manter a calma.

— Pai, você erra toda vez. E toda vez pede desculpa. Mas as desculpas não consertam as coisas. — Minha voz falhou um pouco, mas continuei. — Eu prefiro estar em qualquer outro lugar do que aqui e ver você desse jeito, ver minha vida se desmanchando aos poucos enquanto você afunda a sua. Você fez a mesma coisa com a mamãe e agora quer que eu seja a sua vítima.

Eu já tinha sofrido demais, já tinha dado demais de mim.

— Eu amava a Laura. — ele começou, mas eu o interrompi de novo. — Mas o vício...

"Mas o vício sempre foi maior que eu." — Completei o que eu já sabia que ele iria falar. — A única verdade aqui, é que o senhor nunca amou a minha mãe, e acho que nem ninguém, só a bebida mesmo. — senti como se estivesse desabafando.

Ele não disse nada e então continuei:

— Eu vou sair agora e vou pro trabalho. E, sinceramente, eu não sei se vou voltar pra casa hoje à noite. Eu não aguento mais isso aqui. Prefiro dormir na rua a ter que voltar pra esse inferno.

Peguei minha bolsa e me preparei para sair. Ele ficou sentado lá, sem dizer mais nada. A culpa estampada no rosto, mas a bebida sempre seria mais forte do que qualquer arrependimento que ele pudesse sentir. Eu sabia disso.

— Pai, se você quiser continuar assim, tudo bem. Mas eu estou fora. — Minha voz saiu firme, apesar da dor que eu senti. — Cansei de ser a única que luta aqui. Se você não vai mudar, então eu vou. Porque eu não vou passar o resto da minha vida presa nisso.

E então, sem esperar resposta, saí pela porta e pela primeira vez em muito tempo, senti um pouco de liberdade. Uma liberdade que eu sabia que só viria completamente quando eu finalmente deixasse tudo isso pra trás.

Se eu vou conseguir? Eu não sabia. Mas uma coisa era certa: eu não poderia continuar vivendo aquela forma. Eu merecia mais, e era a hora de finalmente ir atrás disso.

Protegida pelo Dono do Morro [Série Donos do Morro #3]Onde histórias criam vida. Descubra agora