45. DESESPERO

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A LANCHA da Ilha do Céu tentou várias vezes fazer contato com o iate contratado pela comissão de festa, sem sucesso. Como o iate estava dentro do alcance de rádio, isso significava problemas. A lancha ampliou sua rede de contatos, avisando que o iate não respondia. Alguém o tinha visto? Dois dos muitos iates do arquipélago haviam visto, sim. Numa das vezes, o iate estava na rota esperada; na outra, em um local bastante inesperado, a sudoeste. Anabel se lembrara da Ilha Torta, um dos pontos de mergulho favoritos de Rafael. A lancha da Ilha do Céu se dirigiu para lá.

De longe, Anabel foi a primeira a ver a iluminação do casco do iate, ancorado numa das extremidades da ilha.

Pelo tanto que puderam ver de binóculos, à noite, tudo parecia em ordem, embora o iate continuasse não respondendo ao rádio. Mais perto, perceberam o capitão Gomez algemado à amurada, acenando para a lancha.

Anabel estava ansiosa, mas a equipe de segurança a manteve a bordo da lancha. Iriam primeiro. Quando se certificassem de que não havia riscos, Anabel e Trovão poderiam ir para o iate.

Empoleirados na proa da lancha, Anabel e Trovão conseguiram ver Rafael deitado no convés do iate.

– Parece que ele está só dormindo, Anabel. – Trovão se esforçava para ver alguma coisa na penumbra. – Pelo jeito, todo mundo estava trancado nas cabines, porque, agora, estão saindo todos juntos!

– Ah, Trovão, o que será que Rafa fez?! Tomara que Sarah e Enrique estejam bem! Está vendo os dois?! Até agora, só vi o resto do pessoal!

Depois de alguns minutos que pareceram séculos, Anabel e Trovão receberam permissão de irem para o iate.

– Seus amigos estão bem, mas é melhor ouvirem o que o capitão tem a dizer. – O chefe dos seguranças os levou até o capitão. – Quanto ao que está dormindo, deixem dormir por enquanto.

O pessoal das cabines estava bem, mas o capitão Gomez tinha ficado bastante tempo imobilizado na noite fria. Aquecia-se com um capote extra e café bem forte. Primeiro, agradeceu a preocupação de Anabel. Depois, relatou que, logo após saírem do perímetro das ilhas principais, haviam sido abordados pelo Onda Verde, um pequeno e luxuoso iate que fazia cruzeiros no arquipélago. Era uma surpresa de Enrique para Sarah, e a garota ficara encantada em passar os dez dias de férias no iate, em vez de no hotel.

– Eles se despediram e passaram para o Onda Verde, que tomou a rota leste. Acredito que estejam nas Ilhas dos Sonhos.

O capitão prosseguiu o relato: cerca de quarenta minutos depois, Rafael havia subido das cabines apontando uma arma para um casaco.

– Um... casaco?! – Anabel não acreditou no que estava ouvindo.

– Ele falava como se estivesse apontando a arma pra Sarah, Anabel. – Bruna, que era do segundo ano de Exatas, conhecia bem Anabel e Rafael. – Foi muito... delirante!

– Se a gente não conhecesse Rafael, dava até pra pensar que era uma encenação, um brinde da comissão de formatura pra movimentar nossa viagem – acrescentou William, namorado de Bruna e também das Exatas. – Mas, conhecendo Rafael, sabíamos que não era isso. Anne-Marie pensou que era brincadeira.

– Pensei – assegurou a moça. – Era bizarro demais! Além disso, a arma estava pingando água, e até eu sei que armas molhadas não funcionam. Ele agia como se estivesse mandando outra pessoa nos prender nas cabines, sempre ameaçando o casaco com a arma!

– Pedi a todos que o obedecessem. – O capitão encheu novamente sua caneca de café. – O rapaz estava claramente fora de si e, considerando seu porte, os riscos seriam grandes se ele se tornasse violento. Prendeu todos nas cabines, mas eu não estava esperando que me algemasse na amurada. Depois disso, ele amarrou dois casacos e duas máscaras de mergulho no cabo da âncora, e algemou um tanque de mergulho lá também. Pensava estar falando com Sarah e Enrique, e disse a eles que desceriam com um tanque com uma hora de ar, mas, como eram dois, só teriam meia hora. Ele os puxaria de volta em quarenta minutos, para ver quem tinha se sacrificado pelo outro. Baixou a âncora, riu para mim e disse que eu não precisava me preocupar porque ele puxaria os dois de volta em dez minutos. Tentei convencê-lo a me soltar, mas ele não me deu ouvidos. Deitou ali perto da âncora e dormiu até agora. Se é como me explicaram, que ele estava tomando medicações controladas e misturou álcool, talvez seja essa a causa das alucinações e também do sono pesado.

– Ele precisa de tratamento mais rigoroso do que o que recebeu até agora. – Cássio, o formando, estava abraçando sua namorada Anne-Marie. – Não pode andar por aí desse jeito. E se a arma não estivesse molhada?

Um dos seguranças interferiu, informando que a arma estava descarregada. Rafael não poderia ferir ninguém. Também tinham conseguido contato com o Onda Verde, que garantia estar tudo em ordem com o iate e seus passageiros.

Combinaram que a lancha levaria Rafael de volta para as providências necessárias, e que o iate prosseguiria em seu passeio até a manhã seguinte. Ninguém tinha se ferido, nem mesmo se assustado; decidiram não fazer denúncia alguma contra Rafael. Ele já tinha problemas demais.

– Muito obrigada, pessoal, e desculpem o transtorno no passeio de vocês!

– Até que ficou divertido, aproveitamos bem o tempo na cabine! – sorriu Cássio, fazendo Anne-Marie rir também. – Mas, Anabel, veja que o tratamento seja a sério, dessa vez!

– Já era a sério, mas concordo que precisa ser muito mais sério. Vamos, Trovão. Vamos lá acordar Rafa. E não, não precisamos de nenhum apoio da segurança pra isso! Trovão é perito nos porres dele. Damos conta.

* * *

APESAR DE todas as vozes, luzes e pessoas indo e vindo, Rafael dormia profundamente. Anabel chamou duas vezes, mas ele não acordou. A garota sacudiu-o, chamando de novo.

– Rafael, você vai acordar apenas quando for tocado.

Cumprida a condição, ele despertou. Olhou Anabel e Trovão, sem entender o que estavam fazendo ali.

– Viemos na lancha da Ilha do Céu, Rafael. – Anabel respondeu sem ele ter perguntado. – Você fez confusão demais aqui e volta com a gente. Vamos.

– Confusão?! Eu...! Eu dormi, quanto tempo eu dormi?! – Apavorado e de repente muito sóbrio, Rafael ligou o motor que recolhia a âncora. – Sarah e Enrique estão lá em baixo, presos na âncora!

– Você dormiu mais de uma hora. – O capitão e dois seguranças estavam logo atrás de Anabel e Trovão. – E não há ninguém lá em baixo, não se preocupe.

– Como que não?! Eu prendi eles no anel da âncora! Uma hora?! O tanque só dava pra meia hora! Me ajudem a puxar! Eles estão lá!

– Não estão, Rafa. – Anabel engoliu em seco quando Rafael começou a puxar o cabo da âncora com desespero. – Saíram daqui mais cedo, no iate que Enrique contratou pra eles. Não tem ninguém aí.

– Não saíram coisa nenhuma! Eu larguei eles lá em baixo, ia puxar em dez minutos!

– Rafa, olhe suas mãos! Pare com isso!

Rafael ignorou as mãos que sangravam pelo esforço.

– Acha que eu não sei o que eu fiz?! Eu sei! Eles estão aí, Bel, eles estão! Eu matei eles!

– Rafa, pare com isso! – Anabel olhou Trovão, agoniada. O pânico de Rafael era tão real que dava a impressão de que Enrique e Sarah emergiriam mesmo com a âncora! Mas Trovão, tão aflito quanto ela, não tinha condições de ajudar.

Os dois jovens respiraram com alívio quando a âncora trouxe exatamente o que o capitão informara: dois casacos e um tanque de mergulho.

Mas não foi isso que Rafael viu.

Horrorizado, viu os corpos inertes de Sarah e Enrique, pálidos e de olhos vidrados sob as máscaras, água escorrendo de bocas entreabertas. Precipitou-se para Sarah, mandando Anabel tentar reanimar Enrique. Mas Sarah estava mole e fria em suas mãos... Morta. Morta por sua culpa!

Rafael começou a soluçar abraçado a um dos casacos, chamando por Sarah e chorando sem parar.

Olho do FeiticeiroOnde histórias criam vida. Descubra agora