Tentei durante os dias que se seguiram apenas tocar minha vida como faria normalmente. Ignorei a tal composição, a lista "Eu nunca..." ou o fato de que Marcelo não era mais meu colega de classe. Ignorei as investigações, ignorei Céli e precisei me afastar de Julia. Precisava me entender e quanto mais distante pudesse ficar de qualquer pessoa, melhor influência teria sobre meu estado psicológico atual.
Eu não voltei a tomar os remédios, nem caí em depressão. Apenas precisava aprender a lidar com as mudanças e comecei com meu novo emprego.
A escola em peso parecia saber da inauguração e eu estava completamente desesperado no primeiro dia de trabalho. Meu pai havia passado os dois dias anteriores me ensinando a fazer o cadastro do pessoal no computador, mas eu não tinha tanta segurança de que havia aprendido algo. Tentei memorizar as informações e exigências, mas no fim do expediente meu pai me mandou ligar para dezenove novos clientes menores de idade e cancelar o cadastro. Tentei argumentar, mas ele pareceu zangado.
De alguma maneira o tempo que passei ali parecia distrair a minha mente apesar de todas as trapalhadas. Pelo menos agora eu não dependia mais de mesada mesmo que não pudesse sair livremente como fazia todas as tardes. Sofia gostava do ambiente espaçoso e passava horas em frente à TV da videolocadora assistindo aos filmes. Pensei se essa sua exposição à TV não podia lhe prejudicar de alguma forma, mas acabei ignorando o fato porque não havia melhor forma de servir de babá e trabalhar ao mesmo tempo do que essa.
Havíamos decidido falar com a assistente social sobre a situação de Sofia. Não encontramos qualquer registro de desaparecimento nem na nossa cidade ou no estado e Karen estava preocupada quanto a afastarem Sofia de nós. A assistente prometeu investigar mais detalhadamente a origem da minha nova irmã e deixar ela conosco mais algum tempo apesar da família inteira estar apreensiva quanto a sua partida.
- Com fome, Sofia? – perguntei à ela que apenas fez que não com a cabeça.
Lembrei do dia em que a havia conhecido e de como devorara aquele pacote de biscoitos e o sanduíche que lhe ofereci. Agora ela estava diferente. Não apenas pelo modo como se vestia ou o fato de não estar faminta, mas algo nos seus olhos. Não via mais medo ali. Ela apenas estava feliz. Como podíamos tirar isso dela?
- Tudo bem... – respondi. – Vou comer o pacote de biscoito sozinho então.
Ela nem sequer me olhou. Estava começando a me sentir solitário.
- Voltei. – disse meu pai entrando animado na locadora.
- Oi.
- Tudo bem? – ele disse me olhando preocupado.
- Quer dividir um pacote de biscoitos?
Ele se sentou ao meu lado suspirando com aquele olhar pavoroso que os pais fazem quando querem conversar.
- Problemas?
- Não. – respondi.
- Tudo certo com a banda?
- O show é no início de setembro...
- Alguma chance de ganhar a bolsa...?
- Nenhuma.
Meu pai riu. Era o único pai que riria de uma resposta dessas. Todos pareciam ansiosos demais com a distribuição das bolsas e eu apenas me limitava a estudar para terminar o ensino médio. Irônico.
- Teve noticias do seu amigo Marcelo...?
- Não.
- Julia está bem?
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Eu Nunca...
Teen FictionEu nunca... vi a Aurora Boreal Eu nunca... escalei o Monte Everest Eu nunca... corri sobre pedras chamuscadas (Nem sou maluco a esse ponto) Eu nunca... me equilibrei sobre as muralhas da China Mesmo a ideia sendo incrível! Mas existem certas coisas...