Capítulo 30

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Com mais uma dose do chá antes de dormir, acordei me sentindo basicamente nova na segunda-feira. Como tinha acordado mais cedo, me permiti demorar um pouco mais no banho e também não me apressei em me arrumar. Meu irmão tinha saído um pouco mais cedo por causa de uns assuntos que teria com o time de futebol, então eu iria sozinha hoje. Terminei meu café e, como minha mãe já tinha saído para levar minha irmã na escola e meu pai já tinha ido trabalhar, fui verificar as janelas e as portas. Quando tinha certeza que nada estava aberto, peguei minha bolsa no sofá, as chaves do carro e sai de casa.
Estava me virando para descer as escadas da varanda quando dei de cara com Evan subindo elas. Ele era apenas um pouco mais alto que eu, seus cabelos eram castanhos escuros e cortados bem curtos, mas dessa vez o topete não estava arrumado como sempre. Seu rosto anguloso estava magro e pálido, os olhos castanhos claros emoldurados por cílios espessos e grossas sobrancelhas pareciam apagados e havia profundas olheiras sob eles, os lábios bem desenhados que costumavam ter sempre um sorriso agora estavam quase em linha reta. Seu corpo era como o de qualquer outro jogador de futebol, ombros largos, braços fortes, mas agora sua camiseta cinza parecia pender um pouco larga em seus ombros. Meu Deus, ele estava acabado.
—Oi Evan. – falei com a voz um pouco insegura.
—Oi Safira. – falou sorrindo com pouca vontade.
—O que faz por aqui? – perguntei colocando minhas chaves na bolsa. – Pensei que estivesse fora da cidade.
—E eu estava, mas convenci meus pais a me trazerem de volta antes que eles me enlouquecessem. – falou se encostando na pilastra. – Mas pensando bem, talvez não fosse tão ruim ter continuado lá. Não posso sair na rua que alguém me para pra perguntar alguma coisa ou falar que sente muito.
—Realmente. – falei fazendo uma careta e me encostando na outra pilastra. – As pessoas dizem que quem perde alguém, não sabe lidar com a morte. Mas na verdade são elas que não sabem lidar, porque acham que tem que tratar a pessoa de um jeito diferente e não sabem como fazer isso.
—Melhor isso do que aqueles que me lançam olhares acusativos. – falou olhando para a rua. – Ainda tem gente que acha que eu que sou o culpado pelo que aconteceu com ela.
Andei até ele e coloquei a mão em seu ombro.
—Você veio visitar os pais dela, não é? – perguntei e ele assentiu. – Eles acham que você é culpado?
Ele desencostou da pilastra e sentou nas escadas, coloquei minha no chão e sentei do seu lado.
—Na verdade não. – falou. – Eles me dão muito força e sinceramente, me sinto mais confortável falando com eles do que com meus pais ultimamente. Eles não ficam me fazendo perguntas e nem me pressionando a nada. Meus pais queriam me mandar para um psicólogo, acredita?
Olhei para seus olhos meio marejados e senti um aperto no meu coração. Eles podiam ser novos e toda aquela conversa que as pessoas diziam, mas Tâmara era o amor da vida de Evan e a perda dela não seria algo que ele poderia superar. Eu podia ver em seu rosto que ele não estava nada bem, quem estaria? Mas pressionar ele a sentar numa sala e falar por uma hora não iria ajudar as coisas a melhorarem.
—Eles estão com medo. – falei. – Estão com medo do que isso causou a você e não estão sabendo lidar bem com a situação.
—Fui eu que perdi a namorada. – falou. – Não devia ser eu a não estar sabendo lidar com a situação?
Apoiei meus cotovelos nos joelhos e olhei para o horizonte.
—Eu sinceramente não sei o que te dizer. Apenas que deve ter um pouco mais de paciência com eles.
Ficamos por um tempo em silêncio, apenas encarando a rua silenciosa onde os vizinhos começavam a acordar e outros já partiam para seus compromissos matutinos.
—Soube que foi você que a encontrou. – falou depois de um tempo. – Quer dizer, que encontrou o corpo dela.
Sua voz tremeu um pouco ao dizer a palavra “corpo”.
—Fui eu sim. – falei. – E isso não é algo que eu deseje para qualquer outra pessoa.
—Foi tão feio assim?
Olhei para seu rosto e vendo a dor em seus olhos, eu sabia que não podia contar isso para ele. Tudo que eu tinha visto tinha sido horrível demais e me fazia ter pesadelos quase todas as noites, se Evan soubesse o que eu vi, seu coração seria completamente destroçado.
—Acho que você não veio aqui em casa para falarmos disso, veio? – perguntei com um pequeno sorriso.
—Você tem razão, não é por isso que estou aqui.
—Então porque está aqui, Evan?
Ele olhou em volta como se para confirmar de que não tinha mais ninguém por ali e só então percebi o quanto ele parecia nervoso, inquieto, quase da mesma maneira que eu tinha visto Tâmara antes de tudo acontecer. Isso fez com que um pressentimento nada agradável tomasse conta de mim.
—Sei que a gente nunca conversou muito exatamente e, que não somos amigos próximos. – falou passando a mão nos cabelos. – Mas posso te contar um segredo?
—Claro que pode.
Ele ficou calado por um tempo, tanto que pensei que tinha desistido de falar. Depois do que pareceu séculos, ele soltou um longo suspiro e fiquei um pouco assustada ao ver o quanto sua mão tremia, ele não estava nada bem.
—Eu acho... Acho que to correndo perigo.
—Como assim? – perguntei.
—Pode ser paranoia minha, eu não sei, mas... – ele passou a mão nos cabelos de forma nervosa. – Eu sinto como se alguém estivesse me seguindo. Mesmo lá na fazenda, era como se a cada lugar que eu fosse, alguém estivesse me observando.
Engoli em seco sentindo um frio na minha espinha. Eu poderia dizer que aquilo não era paranoia dele, sendo que eu mesma sentia isso, sendo que eu mesma, no dia do enterro de Tâmara, tinha visto os olhos de um cara mudaram de cor, para o mesmo jeito que eu tinha visto em meu sonho.
—E... Você conseguiu ver alguém? – perguntei.
Ele chacoalhou a cabeça.
—Apenas relances de movimento, as vezes parecendo ver alguma pessoa parada debaixo de uma sombra...
Peguei a ponta do meu rabo de cavalo e comecei a enrolar o cabelo no meu dedo de forma nervosa.
—Por acaso você não teria, sei lá... Visto um homem loiro com sobretudo?
Ele olhou para mim com a testa franzida, seus olhos castanhos pareciam brilhar de surpresa.
—Um cara loiro de sobretudo? – perguntou e eu assenti. – Eu trombei com um cara desses ontem no final da tarde, quando estava voltando para casa.
—E você falou com ele? – perguntei.
—Ele me perguntou as horas e depois me desejou uma boa tarde. – falou parecendo confuso. – Depois foi embora. Mas porquê? Você conhece esse cara?
—É que... – eu não sabia bem se devia falar, mas precisava. – Ele estava lá no cemitério, no dia do enterro. Estava parado debaixo de uma árvore olhando tudo de longe.
—Bom, isso é bem estranho, mas...
—Evan, você precisa falar com a polícia sobre esse cara. – falei. – Tudo bem que pode ser apenas coincidência, mas é muito estranho o mesmo cara que estava no enterro da sua namorada trombar com você, justo com você, quando está indo para casa. Me chame de paranoica se quiser.
—Você acha que ele... – começou, mas não conseguiu terminar.
—Eu não sei. – falei. – Mas agora, todo o cuidado é pouco. Ele pode ser apenas um desconhecido, mas essa aparição toda dele nas nossas vidas não é normal.
Eu poderia ter contado sobre as fotos que o delegado tinha me mostrado, mas eu tinha medo do que essa informação poderia fazer a Evan. Eu não sabia qual poderia ser a reação dele e, considerando mais essa aparição do homem misterioso, eu não estava a fim de deixa-lo embarcar sozinho em algo insanamente perigoso.
—Ontem eu encontrei uma carta da Tamy. – falou ele abraçando os joelhos. – Estava dentro da minha bolsa. Eu nem vi quando ela colocou lá dentro.
Ele mexeu no bolso da calça e tirou de lá um envelope rosa dobrado, a letra por fora com o nome dele já indicando quem tinha escrito.
—Ela fala algumas coisas que me deixaram meio confuso e, até meio assustado. – falou ele suspirando, seu rosto aparentando um cansaço enorme. – Mas de certa forma foi bom ler isso, é como se eu tivesse sido a última pessoa com quem ela falou.
Ele colocou a carta nas minhas mãos e me voltei para ele de olhos arregalados.
—Evan? Se ela deixou para você, esta carta não é meio... Você sabe. Particular?
Então, pelo que parecia a primeira vez em tempos, ele soltou uma risada verdadeira que sacudiu seus ombros. O som preencheu a manhã que estava um pouco fria, a neblina no fim da rua sumindo aos poucos.
—Não tem nada intimo demais que você não possa ler. – falou. – Tamy era mais de falar do que de escrever. Ela escreveu poucas coisas.
Olhei para o envelope cor-de-rosa lembrando que eu tinha um igualzinha aquele, com uma carta que ela, e todos os outros, tinham feito antes que eu fosse para a Itália.
—Sei que poderia parecer mais lógico eu entregar isso para a Bia, já que as duas eram melhores amigas e ela poderia entender. – falou batendo as mãos nos joelhos e se levantando. – Mas por algum motivo acho que você pode interpretar essa carta melhor do que ninguém.
Olhei para a cara novamente e depois para ele.
—Talvez uma perspectiva de fora possa ajudar. – falei.
—Talvez sim. – falou com um pequeno sorriso enquanto olhava para o céu. – Me conte se descobrir alguma coisa, acho que você tem o número do meu celular.
—Pode deixar. – falei também me levantando e pegando minha bolsa. – Quer uma carona para a escola?
—Eu não vou a aula. – falou chacoalhando a cabeça. – Pelo menos ainda não.
Mesmo não sendo a mãos adepta de abraços do mundo, ajustei a bolsa no meu ombro e dei um abraço em Evan. Ele parecia tão triste, tão perdido, tão... Quebrado, que eu não sabia muito mais o que poderia fazer além de oferecer meu ombro como uma boa amiga. Ele apertou os braços ao meu redor e enterrou a cabeça no meu ombro, me apertando como se eu fosse algum tipo de ancora.
—Eu to com medo. – sussurrou ele contra meu cabelo.
—Todos tem medo. – sussurrei de volta. – Mesmo quando uma pessoa diz que não tem, no fundo ela sabe que tem algum, mesmo que seja pequeno. Seria estupidez não sentir.
Ele se afastou de mim com os olhos avermelhados e com um pequeno sorriso, deu um beijo no meu rosto.
—A gente se vê por ai, Safira.
—Até mais, Evan. – falei. – E tome muito cuidado, não dê bobeira por aí.
—Digo o mesmo para você.
Enquanto ele já desaparecia pelo calçada, eu fui para meu carro, se não andasse logo corria o risco de chegar atrasada e não estava a fim de começar o ano com alguma advertência. Liguei o carro e segui para a direção oposta à que Evan tinha ido, o tempo todo batucando no volante com os pensamento perdidos, aquela carta parecendo quase pesar dentro da minha bolsa. O estacionamento não estava muito cheio quando cheguei, de modo que consegui avistar de longe o Cruze de Marisol e consegui uma vaga ao lado do mesmo, na parte esquerda.
Assim que desliguei o carro, peguei a carta em minha bolsa e comecei a brincar com o envelope por um tempo antes de finalmente abri-la. O papel estava um pouco sujo e mostrava ter sido dobrado diversas vezes, o que me fazia pensar quantas vezes Evan a teria lido, tentando ali encontrar algum conforto, uma despedida. A letra era a mesma que eu me lembrava, pequena e formada por semigarranchos dos quais Tâmara sempre reclamava, ela não era a maior fã de sua letra.

Meu Último Suspiro - O início - Livro 1Onde histórias criam vida. Descubra agora