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- O quê? Não. Não mesmo.
- Eu podia jurar que você estava falando sozinha.
- O que eu disse então, se insiste em dizer que falo sozinha?
- Matador. Foi a única coisa audível que consegui entender antes da careta.
- Eu não disse isso não. Quer saber, deixa pra lá. Vou fazer uma pipoca. Quer doce ou salgada?
- Eu quero salgada. Não gosto da pipoca doce de qualquer um.
- Não vou levar isso para o coração porque está certíssimo, não sou boa cozinheira mesmo. - torço o nariz.
- Alguém concordando comigo de livre e espontânea vontade. E não é a primeira vez esta tarde. Sinto que é por isso que o mundo está desabando lá fora.
Me levanto e caminho em direção à cozinha, por sob o balcão, gritando todo o trajeto:
- O mundo está desabando lá fora porque o país é incapaz de falar sobre escravidão, interação racial, inserção social, alienação parental, machismo, misoginia, intolerância religiosa e ideologia de gênero.
- E você acha que tomando tiro na cara vai mudar alguma coisa?
- Acho!
- Você está coberta de razão. - e dá aquela piscadela.
Não acredito que ele está de joelho na minha poltrona. De costa para a TV e de frente para mim. Saí da sala para não ter que ficar na presença daquelas gotas de água caindo pelo seu tronco nu e vou ter que fazer pipoca olhando-o do mesmo jeito. Sou patética demais.
Odeio fazer qualquer coisa na cozinha. Quando estou nervosa, tudo que eu tento sai incomestível, misticamente pior que o habitual.
- Tá, você vai ficar aí encarando esse milho até ele estourar ou tomar uma atitude? Deixa.
Ele se levanta da poltrona e, graciosamente, caminha em minha direção.
Na faculdade de romantizar situações horríveis e jogadores de futebol gatos, eu tenho boletim 10. Em todas as matérias.
- Já viu O Clube dos Cinco? - ele pergunta, encostado na geladeira, de braços cruzados, amplificando seu torso extremamente musculoso.
O que está acontecendo comigo?
Acho que, depois de 2 anos sem transar com ninguém e, se quer, conhecer alguém, relevantemente, transável, é isso que acontece:
Ansiedade, imaginação aguçada, falta de senso e noção, baixo estima, nervosismo desnecessário e por aí vai.
- Não. - suspiro, com dos dois braços em volta do balcão, ao lado do fogão.
- Como assim? - pergunta indignado.
- Eu já ouvi falar desse filme, mas nunca tive a oportunidade de assistir. - completo.
- Ótimo, te darei essa oportunidade então, hoje, agora. Vai lá achar o filme, eu cuido da pipoca. - e o sorriso irritante de canto ataca novamente.
Ele é lindo demais. Andar de costa não é uma boa ideia nem quando se conhece a casa de cor. Virar abruptamente também não é uma coisa de gênio.
- Não precisa tropeçar no tapetinho, Luna. Coitado!
- Engraçado! Muito engraçado! - ain, meu dedinho.
Sento na minha poltroninha, linda e cheirosa.
Opa, cadê meu cheirinho intocável?
Caramba, tá mesclado. Ele empesteou meu cantinho com seu cheiro de colônia amadeirado. Não tô crendo. Bela de invasão de espaço.
Até que os dois perfumes juntos dão uma bela essência.
E, mais uma vez, mudo de ideia, compassivamente.
Sinto dizer, mas estou fora da casinha total por esse homem.
Aproveito para escolher o filme, leio o breve resumo de apresentação e o destaco.
Que cheiro delicioso de pipoca. Meu Deus. Não quero parecer xenofóbica, mas que MINEIRO talentoso. Presente de Deus.
Patético.
P-A-T-É-T-I-CO.
Ainda bem que está no catálogo da Netflix, pois odeio perder tempo escolhendo filmes, principalmente em outros sites.
Deixo o filme em suspenso e recosto minha cabeça na poltrona. Levanto os dois pés até poder me encolher, abraçando minhas canelinhas no pequeno espaço. Já é uma mania incontrolável faz tempos.
- Oi, ativista, aqui está a pipoca doce e... - ele volta correndo para a cozinha, trazendo consigo outro tuppeware. - a salgada. - dá um pouquinho de cada na minha boca e eu me derreto. - E aí, gostou?
- Alguém já reclamou de algo que tenha feito?
- Jamais, em toda a minha existência.
- Rafa, por que não me corrigiu quando o chamei de zagueiro? - pergunto, olhando-o em seus olhos. Pois ele sentou na mesma posição de mais cedo, de frente para mim.
- Não gosto de corrigi-la. Nem quando está errada. E você estava ensanguentada. Não conseguia pensar em mais nada.
- Ah, me irritar, sim, contrariar, não. Bem coerente. - encho a boca de pipoca.
- Nada do que eu fiz o dia inteiro pode ser enquadrado na categoria "coerência". - e ele, literalmente, abre aspas para a referida palavra. Queria tê-lo visto fazendo mais cedo e, acabei não conseguido, mas agora. Em alta resolução, não poderia ter gostado mais do que meus olhos capturaram.
- Abordar uma estranha, convencê-la a ir se consultar com seu médico do trabalho, pedir uma dispensa, trazê-la para casa que fica no subúrbio, fazer uma janta para ela, gritar com ela por ter colocado seu carro importado e chamativo para dentro no meio de um tiroteio, fazer pipoca para ela e, não vai parar por aí, não é?
- Com certeza não. - silêncio desconfortável. - Torce mesmo para o time rival?
- Não, a camisa é de um ex.
- Sério?
- Sim, por isso está velha. Torço para o seu time. Sei quem você é. E... antes que possa me matar, sim, eu estava super cega mais cedo. Não estava enxergando nada. Por isso não o reconheci de imediato, mas depois só continuei o tratando com indiferença para não ficar estranho, sabe, entre nós. - suspiro, recuperando o fôlego e o encaro com uma expressão de gato maltratado.
Sempre funciona.
- Perdoada. Mesmo eu tendo sido um anjo com você durante todo o dia. - enfia um bocado de pipoca na boca e continua falando com ela cheia. - me senti humilhado pela sua falta de interesse, me fez sentir um ser humano normal. Me enganou direitinho, hein. - e olha para a TV.
- Vai ficar chateado? - pergunto.
Ele me encara e responde:
- Com você? - a intensidade em seu olhar é desestabilizante. - Nunca! - E volta sua atenção para a TV. - Já tinha me provocado com esse pijama feioso, não sou um completo idiota. Sua sutileza em dizer que me "conhecia" foi palpável. - risinhos.
Aquele sorriso.
Aproveito que estou com o controle para iniciar o filme e acabar com esse constrangimento mútuo.
Após o fim do filme teremos muita coisa para conversar. Tudo está muito confuso.
Parece que o conheço há anos, porém, tirando os jogos, são apenas algumas horas.
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TOSS
Romance📚 Uma mulher altruísta, dedicada e independente se vê apaixonada por um homem com sonhos que não a incluem e tem que tomar uma decisão importante para que a vida de ambos não sejam sugadas pela imprevisibilidade do amanhã. ⚽️