Pérola
O frio já tomava conta do meu corpo. Desde pequena eu detestava o frio. Pra mim significava que o céu poderia chorar a qualquer momento fazendo que suas lágrimas banhasse o mundo. Em noites assim eu costumava correr para o quarto de Rosália e ela sempre me cobria com dois cobertores. Meus pés viravam cubinhos de gelo. Rosália sempre ria quando me ouvia dizer isso e falava que diante dela estava uma pequena contadora de histórias. Ela não estava errada. Eu era criadora dos meus próprios contos de fadas. Neles os príncipes resgatavam as lindas princesas da solidão. Era a minha mente dando asas ao desejo do meu coração.
Andei até que a noite invadiu meus olhos turvos das lágrimas que já nem sentia que caíam. De repente eu me vi diante do lugar que um dia foi o meu lar. Tudo parecia do mesmo jeito daquela manhã em que uma ligação levou tudo o que eu achava que tinha. Lembranças vieram me enchendo e trazendo um sentimento de abandono.
Caminhei até que na minha frente a floreira branca me fez sorrir pela primeira vez naquele dia. Ela acomodava galhos secos e retorcidos. Nada nela lembrava o que um dia foi. As flores amarelinhas haviam desistido da vida e o verde das folhas agora eram apenas pedaços destroçados.
Lembrei de como eu imaginava que meu príncipe precisaria ser magrinho para que a velha floreira sustentasse seu corpo em sua escala até minha torre. Coloquei o pé testando sua desbotada estrutura e com cuidado subi.
A janela estava como eu costumava sempre deixar, entreaberta para abrigar uma borboleta perdida de seus sonhos. Abri me dando passagem para o meu passado. Um passado recente, mas que nunca mais eu voltaria a ter sequer um pedacinho que fosse.
O vazio me recebeu e a rajada de vento bagunçou meus cabelos. Andei até a porta e ao abri-la minha Coragem bateu as asas me saudando. Aquela pequena borboleta foi pendurada ali por mim. A chamei de Coragem , porque só uma borboleta era digna de carregar esse nome. Só elas eram destemidas para sair da proteção de seus casulos e enfrentar o mundo. De voarem livres colorindo o cinza da solidão de seus voos.
Eu me sentia uma borboleta. Não pela coragem, mas pela metamorfose pela qual a minha vida passou. Eu não tive coragem de abandonar o casulo, ele me foi tirado. As asas não se abriram em mim até que eu senti o amor me possuir por inteira. Márcio me ensinou a usar minha asas frágeis e eu voei. Voei no momento em que meus olhos reconheceram nele o amor.
Mas hoje eu estou novamente aqui. Nessa casa. Mais uma vez meu medo de não saber voar me trouxe para esse lugar. Mais uma vez as minhas asas pareceram frágeis demais e eu não pude voar.
Pérola: Coragem... - meus dedos tocaram o velho tecido empoeirado - Eu voltei. Agora somos somente nós duas. Eu tenho tanto o que te contar... Sabe o príncipe que te confidenciei um dia que viria me resgatar? Ele apareceu e nem foi preciso cavalo branco e nem aquela roupa pomposa. Ao contrário, Coragem. - sorri - Ele tinha um gorro na cabeça, mas nos olhos... Ah! Nos olhos ele tinha amor. Um amor que nenhum príncipe antes foi capaz de fazer uma princesa sentir. Ele é lindo!
A pequena Coragem dessa vez nada me disse. E eu sabia que seria assim. Afinal aquela menina não existia mais. Ela foi ficando pelo caminho enquanto eu crescia e deixava de acreditar em contos. Uma tristeza me abateu por não poder resgatar nenhum pedacinho do que ficou para trás.
Permaneci um tempo ali parada. Não conseguia sair daquele lugar. Não havia mais nada lá que significasse algo mais pra mim. Dei uma última olhada para Coragem e fechei a porta a minha frente; Olhei ao redor e apenas a almofada do riso estava ali.
Rosália tinha me dito que toda vez que eu estivesse muito feliz, eu deveria dar um lindo sorriso com o rosto colado naquela almofada. Assim se um dia eu estivesse muito triste era só pegar um dos tantos que lá depositei e tudo ficaria bem, mas mesmo que eu tenha feito isso várias vezes, nenhum sorriso durou o bastante naquele almofada.
Vencida pelo cansaço deitei meu corpo num canto. Era uma imensidão de quarto e eu parecia pequena nele, mas era assim que eu estava me sentindo, pequena demais para o mundo lá fora.
Não sei quanto tempo passou, nem se tudo tinha sido somente um sonho. Apenas senti um calor aquecer meu corpo me acolhendo. pareciam braços. Os braços do meu amor que tantas vezes foram o meu lar.
Pérola: Eu posso voar de novo, Coragem... - sussurrei mais para mim mesma - Agora eu posso voar novamente. - e nessa hora eu soube que não era um sonho.
Márcio: Nunca mais suas asas te abandonarão. Nunca mais! - senti a maciez de seus lábios tocarem a minha face e chorei. Chorei agradecendo. Chorei deixando a paz tomar o lugar do medo. O amor o lugar da solidão. - Eu nunca mais vou te deixar voar pra longe. Eu te amo!
E abraçada ao meu amor naquele chão frio eu senti a vida me encher novamente. Em seus braços eu estava em casa. Em seus braços minhas asas ficavam fortes.