☪️ Telescópio para Alma ☪️

373 27 3
                                    

Inspirada nas minhas próprias artes pintei numa parede todo o meu próprio corpo e pude perceber que eu era tão frágil como o pólen. Sobre a representação do meu corpo uma abelha pousou e um pouco de mim para outra pintura levou, me polinizando. Meus traços robustos unidos aos traços morfos de outro corpo criam um novo rosto, agora imago. Eu que havia sido expulsa de meu clado percebi que eu mesma com um pincel e tinta posso pintar minha própria família e ser artista do meu próprio mundo.

— Veja bem, o crânio é o mais importante símbolo de sabedoria e conhecimento. Nos vários mistérios que possuem os ensinamentos da natureza o crânio representa uma parte despojada da origem do saber através de um poderoso e rico processo de iniciação da antiga religião. O crânio também é um símbolo de morte, seja a morte carnal ou a morte do ego, de si próprio. —, Batsheeva dizia manuseando aquele crânio em suas mãos.

Ryoko observava atentamente cada movimento das mãos de sua mestra e também ouvia com muita clareza tudo o que ela dizia. Aquele grande crânio estava ali há muito, tanto tempo que não poderia se estipular um tempo para isso, e era provavelmente de algum pobre camponês que ousou viver uma aventura sem volta no Bosque dos Sonhos.

— Dentro do crânio está o cérebro e o cérebro é tudo que somos. Sem ele nada somos. Veja, por isso é tão duro. TAC TAC —, Batsheeva bate naquele crânio como se estivesse batendo em uma porta. — Viu só? O crânio precisa proteger o cérebro porque dentro do nosso cérebro está a nossa mente, nosso intelecto, nossa criatividade, nossa sensibilidade e empatia, nosso ego e nossa noção de nós mesmos e das nossas capacitações. Nós acreditamos que o crânio significa a culminação do conhecimento ancestral. No misticismo o crânio é um intermediário para seres que vivem em outros planos astrais e realidades paralelas através de sua associação com a morte. Ele também é um receptáculo para canalizar energias psíquicas. O seu simbolismo passou diversas modificações até chegar na arte da frenologia quando Joshep Gall teorizou que as faculdades do cérebro poderiam ser determinadas através do formato do crânio. Toque! Sinta a energia que este crânio transmite.

Ryoko tocou o crânio com muito cuidado, embora soubesse que isso não significaria nada. Sua face demonstrou um breve desapontamento. Olhando para a face de sua tutora disse: — Não consigo sentir nada. Estou em bodas de ouro com o fracasso.

— Preste atenção menina. —, a sábia mulher falou chamando a atenção da aluna. Ela se colocou de frente de uma das várias árvores daquele bosque posicionado seu caldeirão rente à forma de vida botânica e em seguida fez o mesmo com o crânio ao ponto que estes três objetos formassem uma fila retilínea. — Sente-se de frente para o crânio. —, ordenou. Ryoko assim fez sem questionar. Batsheeva então colocou folhas secas de eucalipto e lascas de canela no caldeirão e usou fósforos para queimar as ervas. Um grande clarão se fez e o odor poderia ser sentido por uma distância considerável. Depois de se preparar se posicionou atrás de Ryoko segurando sua cabeça e puxando-a para trás fazendo-a olhar para o céu. Deixou-a nesta posição por alguns segundos e disse: — Não escolhi esta árvore por acaso. Veja! A lua negra está bem acima de nós. Feche os olhos. —, Ryoko assim fez. Batsheeva continuou: — Eu não tenho um corpo, sou uma alma penada a vagar e está será para sempre minha condição a menos que nos juntas venhamos a destruir aquela que me amaldiçoou, mas por enquanto você será meu receptáculo. Abra seus olhos. —, Ryoko abriu os olhos. —, Veja os lobos. Eles correm pela noite em busca de alimento. Ouça-os. —, Ryoko podia ouvir seus passos leves, às vezes fortes, seu respirar e uivar. Ryoko também podia sentir seus pelos na superfície da sua pele. Eles pareciam tão próximos, mas estavam tão longe. —, Vamos! Não tenha medo. Note que eles estão sorvendo do sangue de alguma vítima. Consegue ver?  —, Ryoko podia vê-los sujos de sangue enquanto o pobre alce se debatia no chão a medida que era devorado pelos dentes fugazes e ferozes das criaturas selvagens. —Certo, agora feche os olhos . —, Ryoko fechou os olhos. —, Mulheres são como rios, elas possuem seu fluxo próprio. Fluxo de vida. A lua é quem nos guia e corremos com os lobos. Somos constantemente atormentadas pelas condições que nos cercam. Somos tão selvagens como os lobos que agora escuta uivar. Somos tão selvagens como sangue do alce que eles devoram e ao cair na alva neve transpira uma nova vida. O sangue que caiu na neve branca corrompe nossa pureza e assim amadurecemos prontas pra sermos membros ativos da alcateia. Somos tão raras como a fauna silvestre e a nossa natureza instintiva se assemelha à da mata virgem, nossa sensibilidade está se aflorando e há flores brotando e desabrochando em nosso corpo. Respire e sinta o ar puro a sua volta. O ar está entrando pelas suas narinas, sendo armazenado nos seus pulmões e agora está correndo pelas suas veias.  Sinta o sangue correndo pelas suas veias, ele está cheio da vida que as árvores acabaram de te ceder. Permita se sentir parte deste bosque. Seus pés são como raízes e seu útero é a semente que está germinando e de você todos os meses sai a seiva da vida. A mulher selvagem dentro de você está prestes a despertar. Deixe a loba que está dentro do seu coração uivar para esta lua negra acima de nossos crânios. Grite! —, Ryoko gritou enquanto Batsheeva apertava fortemente sua cabeça com aquelas mãos ásperas. —, durante anos vivi sobre uma máscara e um belo dia a mulher selvagem passou por mim e tivemos um encontro aqui dentro de mim. Um encontro de sinceridade comigo mesma. Foi instintivo. Então ela ficou pra sempre dentro de mim e juntas aprendemos a controlar meus instintos, impulsos e vultos e assim eu então eu soube controlar meus poderes e entender as suas dimensões. Sinta-a como eu a senti, escute-a como eu a escutei, veja-a como eu a a vi. Ela está em seu corpo, está nas suas entranhas, nas suas vísceras, nos seus fluídos e fluxos, está na sua menstruação, na sua vulva e no seu útero, ela está nos seus cabelos, pele e olhos, ela está no seu coração, ela vive dentro do seu crânio na sua mente. Somos efêmeras, somos uma só. Ouça o canto dos ossos. Epifania. Ouça o canto dos rios que correm dentro de ti. Dê-me sua mão. Sinta nossos fluxos de energia brilhando juntos. Abra seus olhos e dance. Dance Tchaikovsky, dance Madonna, dance o coro das bruxas antigas, dance cantigas tradicionais, dance hinos de louvor, dance sem parar como a menina dos sapatinhos vermelhos, dance como uma odalisca a dança-do-ventre, dance como uma dançarina de pole-dance, dance como uma bailarina de ballet, dance, apenas dance. Dance.

Witchcraft: A Saga De AshântiOnde histórias criam vida. Descubra agora