🔹️🔷️Carta 71🔷️🔹️

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1 ano 5 meses e 13 dias após o fim

Eu continuo caindo.
A dor não está nem de longe amena, mas conforme os dias se passam se torna mais fácil escrever. Quanto mais meus pensamentos são digeridos, menos desgastante é transformá-los em palavras inofensivas.
Quanta ironia...

Passion... Constantemento penso sobre como o nosso filho seria. Você também se pergunta isso?
Eu me perguntei com tanta frequência que se tornou uma tortura particular. Porque eu poderia imaginá-lo, mas nunca poderia ter certeza. Poderia imaginar como seria ele correndo pela casa, como seria sentir o calor dele quando o pegasse no colo. Eu podia imaginar seus olhos azuis ou verdes, seus cabelos castanho escuro ou claro, sua pele mais clara ou mais escura... Mas nunca passaria disso. Nunca passaria de pensamentos, uma nostalgia amarga do que eu sequer pude viver. Do que foi roubado de mim. Se passaram mais de 500 dias, mais de 12 mil horas, mas ainda sinto o meu peito se rasgar a cada maldito momento. Porque essa dor não vai passar, Luna. Essa ferida não vai curar.
Desde que os pesadelos começaram, ainda no primeiro mês depois do fim, só consigo imaginar o nosso Enrico de uma forma. No 20° dia depois que os perdi, eu sonhei com ele pela primeira vez.
Eu odeio me lembrar, Passion. Porque aquela noite com certeza ficou marcada como uma das piores da minha vida.
Desde já, peço perdão pela tinta borrada. Durante toda a semana tentei me preparar para colocar tudo para fora, acreditando que finalmente conseguiria o fazer depois de fugir disso por todo esse tempo. Me permiti recordar em pequenas doses os detalhes daquela noite para transcrevê-los, mas dói mais do que eu pensava. Dói como o inferno. Todavia, quero que você saiba, quero dividir isso com você (mesmo que no fundo seja apenas com o papel). Em todo o mundo, você é a única pessoa que poderia chegar o mais próximo possível de me entender.
Até aquele momento, meus sonhos se consistiam em lembranças dos nossos momentos juntos. Era torturante, mas nem de longe como a tortura daquela noite.
Eu estava em uma sala de espelhos. Havia Mários de todas as formas em todas as paredes. Minha roupa era totalmente branca e meus cabelos estavam penteados para trás. E então havia Lunas de todas as formas em todas as paredes. Você estava sorrindo, e me lembro perfeitamente do vestido também branco que você estava vestindo. Seus olhos estavam tão azuis, e me lembro de sorrir também. Você estava linda, passion, mas isso não é nenhuma novidade. Sua barriga de 8 meses enorme, abrigando o ser que nós dois criamos. Era uma cena linda. A saudade palpitava no meu peito, mas eu não me lembrava de porque, no fundo, eu me sentia tão nostálgico. Minhas mãos estavam formigando, suando, porque eu precisava te tocar. Precisava ver você sorrindo para mim, sentir o nosso pequeno chutar a minha mão. Eu corri até você, mas foi quando eu percebi que quanto mais eu corria mais a sua expressão mudava. E então, de uma hora para outra, a felicidade em seu olhar se transformou em medo. E eu também me tranformei em medo, apreensão. Eu não entendia o que estava acontecendo, porque você parecia querer fugir de mim. Você levou a mão à barriga, e então implorou para que eu não me aproximasse.
Aquilo foi como um soco no estômago.
Olhei para a minha mão, e percebi a faca que eu segurava. Tentei deter minhas pernas, minhas mãos, mas eu continuava caminhando. Você se encolheu no chão, no meio da sala de espelhos, chorando. Seus olhos azuis brilhavam com as lágrimas, suas bochechas tão vermelhas que aparentava terem sido estapeadas. Conforme eu me aproximava, conforme o pânico me tomava por dentro, eu podia ver as veias saltando de seu pescoço. Você estava desesperada, as mãos na barriga, tentando fugir.
Eu cheguei até você.
Eu me abaixei ao seu lado.
Eu lutei contra mim mesmo, mas o controle do meu corpo já não era meu.
Eu ergui a faca.
Naquele momento... Naquele momento, Passion. Eu lutei contra minha força involuntária, tentei enfiar a faca no meu próprio peito. Eu queria morrer, Luna. Juro que nunca quis tanto deixar de existir.
Enquanto a primeira lagrima caía do meu olho, eu baixei a mão com tudo.
E acertei a sua barriga.
1, 2, 3 vezes.
O seu grito ecoou pela sala de espelhos, e para todos os lados em que eu olhava eu via um Mário enfiando a faca em sua noiva e no corpo de seu filho nem nascido.
Eu desci a faca mais uma vez.
Eu perfurei suas mãos diversas vezes enquanto você tentava proteger a sua barriga. Enquanto você tentava proteger o nosso filho.
Quando os gritos cessaram, quando o seu corpo começou a ficar frio e a minha mão estava doendo, eu parei e me levantei.
Caí no chão quando meus braços e pernas perderam a força. A faca caiu de lado enquanto eu finalmente conseguia me movimentar voluntariamente, fazendo um barulho oco no chão, quebrando o silêncio.
Mas era tarde demais.
Eu olhei para você.
Passion, meu amor, essa imagem vai me atormentar por toda a vida.
Seus olhos estavam abertos. Ainda eram do mesmo tom de azul da cor do céu, mas eles não tinham mais vestígios de vida. Seu vestido, antes branco e imaculado, agora estava rasgado e exarcado em vermelho escarlate. A ponta de seus dedos estavam em carne pura, as unhas destruídas enquanto você tentava me deter. Com a perna ainda dentro da sua barriga dilacerada, um pequeno ser humano estava jogado no chão. Deformado, dilacerado pela faca. Estava de olhos abertos, verdes como os meus, e o cabelo também era como o meu.
Em todos os cantos, sangue.
Eu olhei para os lados, e em cada espelho eu vi a minha imagem. O sangue pingava das minhas mãos e da manga da camisa.
Apenas senti o impacto da minha cabeça contra o chão, o crânio sendo esmagado com a força. Mas algo me fazia manter os olhos abertos, sentir o sangue escorrer pela minha cabeça. Mas eu ainda os via. Eu ainda os veria por muito tempo.
E então eu acordei. Eu gritei, eu levei a mão até o lado da cama.
Mas não havia consolo algum.
Eu fui esmagado pela realidade. Eu não tinha você, o Enrico tinha morrido.
Eu estava sozinho.
Eu tinha destruído tudo.
Eu ainda podia sentir em minhas mãos o cabo da faca, ainda podia sentir a força com que minha mão baixava a cada golpe. Eu ainda podia te ver perdendo a vida pelas minhas mãos, Luna.
Eu liguei para você. Caixa Postal.
Eu cai no chão do quarto. Não tinha força para ficar de pé.
Naquele momento eu tive certeza: nada mais faria sentido.
Não importa quanto tempo passasse ou quanta terapia minha família me obrigasse a fazer dali em diante.
Eu havia perdido o meu mundo. Matei a única felicidade que poderia ter.
Até hoje eu ainda posso ver, Luna. O cenário do meu primeiro pesadelo, você morta na minha frente. O nosso filho esfaqueado dentro da sua barriga.
Eu não te contei, não consegui, mas passei 2 meses sem dormir por medo.
Todas as vezes em que eu fechava os olhos, eu a via ensanguentada na minha frente.
Na primeira noite em que consegui dormir, os pesadelos voltaram. Não foram muito diferentes do primeiro. Em todos eles, eu tentava matar você ou o Enrico. Às vezes, eu acordava antes, mas a imagem já materializada na minha mente não me deixava descansar. Até hoje, depois de mais de 1 ano, são poucas as noites em que não tenho pesadelos.

A dor é tanta, Luna. Tanta...
E essa dor é meio como ondas, que às vezes te pegam de surpresa e são tão grandes que parece que irão te matar.
Ifelizmente, elas nunca matam. Me deixam jogado na areia depois de me engolirem, respirando com dificuldade e com os ossos quebrados, à espera da próxima onda.
Estar caindo desse penhasco é desesperador. Porque às vezes eu me pego em dormência pelo tempo caindo, apenas para logo em seguida morrer mais uma vez ao me lembrar de que ainda estou caindo.

Meus pais continuam preocupados. Dizem que eu não sou o mesmo.
No mundo todo, sei que é única que pode me entender, porque também perdeu tudo. Porque sabe que não há como ser o mesmo de antes.
Porque esse papo de "o tempo cura" e "a dor nos torna mais fortes" não funciona para quem perdeu um filho. Pra quem sabe que tem culpa.
Tempo nenhum é capaz de apagar essa dor. O máximo que podemos fazer é aprender a viver com ela. Como uma árvore que cresce perto de uma parede e tem que adaptar sua forma para caber ali: ela vai viver, vai crescer, vai continuar em frente, mas no final vai estar deformada e nunca será como as outras. Eu nunca voltarei a ser como antes.
Amo você, Passion.
Eu não mereço você, mas isso nunca vai mudar o meu amor.
Perdão.

Eternamente seu,
Corazón

Lágrimas De Vidro - LIVRO 2 - Duologia Em Busca Da FelicidadeOnde histórias criam vida. Descubra agora