CATARINA

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  Ele.
Assim que virei a cabeça em direção a quem Louise apontava eu o reconheci. Tinha visto aquela rosto há alguns dias passando em frente a porta da minha sala, não poderia esquecer aqueles olhos nem se quisesse.
-Catarina, alô! _Ouvi Louise chamar, me beliscando.
-Vo-você acha que é ele? _Perguntei, enquanto observava o garoto levantar estranhamente nervoso.
-Ele tem uma tatuagem de animal no braço e não sei se foi impressão minha mas parecia ter um hematoma perto do olho.
-Ele está indo embora, acho que percebeu que estávamos falando dele!
-Vai atrás dele, garota!
-E fazer o quê? interrogar ele?!
-Exatamente, acho que depois de ter sido salva por ele, supostamente, precisa descobrir quem esse garoto é.
Encarei as costas dele por segundos que pareceram uma eternidade, só tive coragem de levantar e segui-lo quando ele já estava subindo as escadas em direção às salas. Ainda não tinha tocado o sinal, mas vi quando ele entrou na sala do supletivo, era quase óbvio que ele estava tentando evitar algo, ou alguém, talvez eu. Respirei fundo antes de colocar a mão na maçaneta e entrar na sala. Ele estava apoiado no umbral da janela encarando o pátio, e apesar de ter ouvido o barulho da porta abrindo não pareceu querer reagir e nem mesmo ver quem era.
-Hmm oi? _Me ouvi dizer, minha voz ecoando na sala vazia.
Vi quando seus músculos se retesaram em reação a minha voz, e me perguntei qual era o problema dele, era comigo?
-Oi. _Ele disse, ainda de costas para mim.
-Eu... vi você no pátio e fiquei me perguntando o porquê de não ter te conhecido ainda, já que estudamos na mesma escola. _Improvisei, não queria chegar fazendo questionamentos como uma louca.
-Vi você e sua amiga me encarando.
-Então... seria algo muito difícil você se virar e olhar diretamente para mim enquanto nos falamos? _Indaguei, ficando irritada com a falta de atenção que ele me dava.
Ouvi um som que deduzir ser uma risada abafada, talvez de ironia, o que me deixou ainda mais irritada.
-Como quiser, madame!
E mais ironias. Mas então finalmente ele se virou para mim.
-Sobre o que você falava mesmo? _Ele perguntou, colocando as mãos no bolso da calça.
Precisei de todo o meu auto controle para me concentrar no que precisava ser dito e não acabar me distraindo com os olhos verdes e a pele estranhamente bronzeada para um garoto da região.
-Sobre como não tínhamos nos conhecido antes. Estuda aqui há muito tempo?
-Não, entrei faz algumas semanas.
-Então é mesmo da turma do supletivo... seja bem-vindo ao colégio, você vai odiar. _Falei, tentando arrancar um sorriso dele, mas ele permaneceu impassível.
-É, eu já odeio.
Meu tempo estava se esgotando e aparentemente ele estava preste a pular da janela se fosse necessário para que eu o deixasse em paz, então não podia mais enrolar:
-Acredito que os alunos do supletivo foram convidados para a última festa que teve na sexta-feira, certo? _Perguntei, como quem não quer nada, e notei uma certa relutância vinda dele.
-Hmm, sim... _Murmurou.
-E você foi na festa?
-Não.
Não respondi de imediato diante da resposta dele, será que realmente não era ele o motoqueiro? ou estava mentindo? e se mentia, por que fazia isso? Repassei rapidamente na minha cabeça os indícios que me levavam a acreditar que ele era o cara que me salvou: a estatura parecia com a que eu me lembrava daquela noite, a tatuagem do lobo em seu braço era parecida, se eu me lembrasse melhor poderia dizer ser a mesma, e de fato em seu rosto tinha um hematoma que poderia facilmente ter sido feito pelo punho de alguém.
-Tem certeza? porque eu estava na festa e me recordo de um acontecimento específico que faz acreditar de ter estado com você.
-Talvez estivesse bêbada demais, não devia ter tanta certeza disso, como eu disse, não estava nessa festa.
Comecei a ficar frustrada e irritada, como poderia não ser ele?
Enquanto pensava em uma forma de arrancar a verdade dele, o sinal tocou.
-Miguel, parece que foi pontual dessa vez! _Ouvi uma voz atrás de mim, era a professora. -Senhorita Aires, posso saber o que faz aqui?
-E-eu só estava conversando com o... Miguel, mas já estou de saída, boa aula pra vocês! _Disse, acenando brevemente e dando as costas sem olhar para ele.
Quando sai da sala Louise estava roendo as unhas encostada em um dos armários, e gesticulou ansiosa para mim assim que me viu.
-E aí?
-Ele é estranho... _Comentei, seguindo pelo corredor até a sala da minha próxima aula.
-Estranho como?
-O cara é monossilábico, não falava nada mais que o necessário, e nem queria me encarar, precisei implorar pelo mínimo de atenção.
-Mas perguntou para ele sobre a festa?
-Mais ou menos, perguntei se ele tinha ido na festa mas ele negou, o que é muito estranho porque eu tenho quase certeza de que era ele no beco vestido de motoqueiro, tem a tatuagem no mesmo lugar, e realmente tem um machucado no rosto, não pode ser apenas coincidência.
-Então por que ele mentiria? _Ela perguntou, entrando na sala.
-Eu não sei, mas vou descobrir! _Sussurrei, notando que a aula já tinha começado.
   Depois da aula eu não vi mais o tal do Miguel, mas agora que já sabia o nome dele e que era da turma do supletivo ficaria mais fácil de confrontá-lo uma próxima vez, e eu já sabia como. Infelizmente não teria tempo de compartilhar meu plano com Louise, já que precisei ir direto para a sede da empresa para uma reunião chata sobre a minha posse, que seria daqui 3 meses, quando eu fizesse 18 anos.
-Minha querida e geniosa sobrinha! _Meu tio, Félix, veio em minha direção quando cheguei na sala da presidência.
Félix é irmão do meu pai e ficou como presidente interino da empresa depois que ele desapareceu, pelo pouco que me lembro meu pai e meu tio não se davam muito bem, mas depois que ele precisou se responsabilizar pela empresa, e talvez por sentir pena de mim, ele se fez mais presente na minha vida.
-Como vai, tio? _Perguntei, cumprimentando-o.
-Vou muito bem, obrigado! _Disse, indicando para que eu me sentasse. -Sua madrasta me ligou ontem, exigiu que eu checasse como estão suas habilidades administrativas e que começasse a te passar os protocolos e informações importantes sobre o cargo da presidência.
-Só de te ouvir falar sinto vontade de pular do décimo quinto andar, juro. _Resmunguei, me sentando.
-Ah querida, eu ainda não entendo porque a Roberta insiste em colocá-la na presidência, vejo que isso a faz infeliz.
-Ela insiste em dizer que era o que meu pai gostaria que fosse feito, que eles conversaram alguns dias antes do desaparecimento dele e que ela tinha certeza de que sua vontade seria que eu ocupasse o lugar dele.
-Isso é ridículo, seu pai não a obrigaria a isso.
-Eu também acho, e se ele quisesse que eu ocupasse seu lugar que tivesse me dito isso pessoalmente e não sumido sem deixar rastros!
-Ainda sente muita falta dele, não é?
-Fico oscilando entre sentir falta e odiá-lo, não consigo acreditar que ele tenha morrido, teríamos alguma informação caso isso tivesse acontecido, e se ele não morreu, foi embora porque quis!
-De alguma forma eu acredito que ele de fato esteja morto, do contrário ele jamais deixaria você numa posição como essa.
-Que se dane, ele vivo ou morto não me libertará do castigo de ser uma empresária aos 18 anos.
-Adoraria poder permanecer no cargo, você sabe que eu nasci para os negócios, mas como nem tudo é como gostaríamos que fosse, comecemos com nossos afazeres de hoje!
                        ***
  -Como foi com o seu tio? _Louise perguntou, sentando ao meu lado na borda da piscina.
-Como sempre, uma chatice! juro que vou enlouquecer antes mesmo de tomar posse daquela merda! _Disse, suspirando e olhando a água.
-Eu odeio que você tenha que passar a vida fazendo algo que não goste, você tem tanto talento, é um pecado ser disperdiçado atrás de uma mesa de escritório.
-Você sabe que eu sou muito grata por tudo isso que eu tenho, nunca tive do que reclamar, sempre cercada de luxos, mas eu juro que trocaria tudo isso pela oportunidade de poder ser eu mesma, estudar moda, poder viver um pouco fora desse mundinho de "princesa".
-Ou a vida é injusta ou nós estamos fadados a sermos insatisfeitos... _Ela disse, estalando o dedo e chamando Fenrir, meu cachorro.
Ele veio correndo e se aconchegou entre nós duas, mania que tinha desde filhote. Tinha ganhado Fenrir de presente do meu pai no meu aniversário de 11 anos, ele era uma bolinha de pêlos negros, e em alguns meses ele estava maior do que poderíamos imaginar, papai chegou a se questionar se não tinha comprado um lobo no lugar de um cachorro.
Ao olhar para Fenrir e relacioná-lo com um lobo, imediatamente a imagem da tatuagem de Miguel veio a minha mente. Eu estava tentando não pensar naquele cara, mas era impossível, eu sempre prezei pelas coisas bem claras e explicadas, gostava de saber e entender tudo, e não conseguiria viver em paz enquanto não soubesse quem era de fato aquele motoqueiro, e bom, Miguel era minha única resposta e eu só o deixaria em paz quando tivesse certeza de que ele não era ele, ou quando finalmente tivesse certeza de que ele foi meu salvador naquela noite.
-No que está pensando? _Louise questionou, me fazendo voltar dos meus pensamentos.
-Miguel. _Disse, e ao olhar a cara dela de "WTF" eu lembrei que não tinha dito a ela o nome dele. -O cara da turma do supletivo, meu possível motoqueiro.
-Seu, é?!
Revirei os olhos.
-Modo de falar, espertinha.
-Sei... e por que pensava nele?
-Não consigo tirar da cabeça que ele mentiu pra mim, devia ver como ele ficou tenso quando eu entrei na sala e falei com ele, e suas respostas eram curtas e pareciam cuidadosamente formuladas antes de sair da boca dele.
-Tenho certeza que não vai descansar enquanto não descobrir quem ele é, certo?
-Certíssimo! Eu estava pensando nas minhas possibilidades, e a única coisa que tenho do motoqueiro é a jaqueta, por isso vou usá-la como isca!
-Okay, me explica melhor o plano.
-Não tem mistério, amanhã eu vou levar a jaqueta para o colégio e vou deixá-la nos achados e perdidos lá na biblioteca, eles farão um anúncio e colocarão nos murais da escola, assim que ele ver vai querê-la de volta, e quando ele chegar no achados e perdidos e pegar a jaqueta, eu estarei lá!
-E o que te faz ter tanta certeza de que ele vai querer a jaqueta de volta?
-Aquela jaqueta não é qualquer uma, é uma coleção antiga, da década de 50, com certeza é herança de família, deve ter algum valor sentimental pro dono.
-Você realmente é um catálogo de moda atemporal!
-É, meu talento tem que servir para alguma coisa afinal...
-E onde eu entro nesse plano, porque obviamente você não me deixará fora dele.
-Depende... eu tenho aula vaga às 9:00 e é quando deixarei a jaqueta, vou ficar na biblioteca escondida esperando por ele, mas caso ele não apareça até o fim do meu horário vago vou precisar de você.
-Eu tenho aula vaga às 10:00 mas geralmente a uso para...
-Estudar com seu nerd de estimação, eu sei, mas pode por favor mudar seus planos por um dia se for necessário? _Fiz a minha famosa cara de "gatinho do shrek".
Louise arfou e fez uma careta, o que indicava que ela estava levemente inclinada a satisfazer minha vontade.
-Tudo bem, sua vaca!
-Ah! por isso que eu te amo! _Gritei, empolgada. -Então, caso ele apareça no seu turno você vai me mandar uma mensagem imediatamente e vou correndo até a biblioteca.
-E depois você vai abordar o cara e dizer o quê?
-Eu tirei uma foto com a jaqueta dele hoje cedo, se o cara for mesmo o Miguel eu vou mostrar a foto pra ele, pra que não possa inventar mais desculpas, e vou querer saber porque ele mentiu!
-Você vai assustar ele, já estou até vendo!
Dei um sorriso triunfante para ela, já sentindo a ansiedade tomar conta de mim.

Aquela jaqueta de couroOnde histórias criam vida. Descubra agora