CATARINA

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  -Minha intuição nunca erra, Lise, eu sabia que ele era o motoqueiro, sabia! _Disse, sem conter minha satisfação por finalmente ter sanado minhas dúvidas.
Louise deu uma risada e fez uma careta, deitando ao meu lado na cama.
-Pelo menos agora você vai parar de pensar nisso e deixar o coitado do Miguel em paz e a mim também, porque não aguento mais ouvir você falando dele. _Ela disse, terminando de tomar seu suco.
-Você sabe que eu não descanso até descobrir as coisas das quais não tenho total conhecimento!
-É, mas agora felizmente você já tem todas as suas respostas.
-Nem todas... _Murmurei, lembrando de como ele tinha sido tão arredio e misterioso das duas vezes que tínhamos conversado.
-E lá vamos nós!
-É sério, Lise, eu não sei porquê mas sinto que ele ainda esconde alguma coisa, eu... não estou satisfeita com as respostas que ele me deu.
-Se eu fosse você ficaria longe dele, além de você não conhecê-lo de verdade, ele é um garoto mais velho que ninguém nunca tinha visto pela escola antes.
-Eu nunca fujo de um bom...
-Drama! _ela completou por mim, rindo. -Vamos que o motorista já está esperando a gente.
  Quando o sinal para o intervalo soou eu quase agradeci de joelhos, o tédio sempre me consumia nas aulas de química. Esperei Louise para irmos até o pátio comer alguma coisa, mas a sem noção me trocou para "estudar" com o nerd dela, então comprei meu sanduíche e me sentei no banco em frente ao chafariz na área externa. Perdi a conta de quantas pessoas, garotos e garotas, pararam para puxar assunto ou demonstrar algum tipo de interesse, como sempre eu fui o mais simpática que conseguia ser e também um pouco ignorante com boa parte dos garotos idiotas. Enquanto ouvia minha playlist tentando ficar alheia aos acontecimentos que me rodiavam, avistei Miguel sentado na beirada do chafariz com um caderno sob as pernas. Fiquei alguns minutos decidindo se ia até ele ou se seguia os conselhos da minha melhor amiga e simplesmente esquecia da sua existência.
Um fato sobre mim: eu raramente escuto conselhos.
-Ei, você. _Disse, me sentando ao lado dele.
-Você é algum tipo de... stalker? _Ele perguntou, sem tirar os olhos do caderno, e notei que ele fazia gráficos que me deixaram tonta logo de cara.
-Oh você não teria tanta sorte assim, e nem é tão interessante ao ponto de me fazer perder meu precioso tempo te stalkeando.
-Não é o que parece, alguma coisa me diz que não é qualquer pessoa que te faz sujar a saia sentando no chão, e o que é pior, no cocô de pombo.
-Ah merda! _Resmunguei ao olhar o canto direito da minha saia e ver uma pequena mancha branca.
Ele riu. Por um momento esqueci do desastre que tinha acabado de me acontecer. Era a primeira vez desde que nos conhecemos que eu via um sorriso dele.
-É só cocô, sai com água e sabão, não é o fim do mundo.
-Pode parar de falar cocô?
Ele - riu - de - novo. Certo, talvez ele tivesse sendo de humor, e eu só estava descobrindo aquilo agora porque era nosso terceiro contato.
-Que palavra os ricos usam para substituir a palavra cocô? fezes?
-Miguel! _Me ouvi dizer o nome dele como se fosse a coisa mais natural do mundo, como se nos conhecêssemos há anos.
Ele deu um meio sorriso, fofo, devo admitir, e depois voltou sua atenção aos gráficos.
-Estou te atrapalhando, não é?
-Está. _Ele disse.
Apenas assenti, parando para observar os pombos no monumento que ficava no centro do lago.
-Você é bom com os números! _Falei, após alguns minutos.
-Em alguma coisa eu tinha que ser.
-Por que está fazendo o supletivo?
-Porque quero poder entrar para uma faculdade em algum momento da minha vida, esse é o jeito que tenho de terminar logo o ensino médio.
-E qual faculdade quer fazer?
-Você com certeza deve querer jornalismo, porque pelo o que percebi adora interrogar as pessoas.
-Talvez pudesse ser uma segunda opção, caso eu tivesse essa proeza. Mas não respondeu a minha pergunta.
-Administração.
-Isso é uma grande ironia! _Murmurei baixinho, pensando em como seria mais fácil se ele fosse o herdeiro das empresas Aires ao invés de mim. 
-O que disse? não entendi.
-Nada importante.
-E você, qual faculdade vai fazer? já que jornalismo não está nas suas opções pelo que deu pra notar.
-Eu não tenho nenhuma opção na verdade. Vou ser presidente da empresa da minha família em alguns meses, essa é a minha cruz.
Ouvi o sinal tocar e todos no pátio já seguiam para dentro.
-Foi legal falar com você, Catarina, agora preciso ir porque não tenho uma cruz pesada como a sua para carregar.
Isso foi uma ironia? é acho que sim. 
-Vai lá, você não se tornará um administrador de prestígio sentado no chafariz com uma patricinha de vida ganha. _Ironizei de volta.
Fiquei por alguns instantes ali, pensando em como todos que me conheciam me achavam sortuda e privilegiada por ser uma herdeira estúpida, na maioria das vezes eu apenas concordava com o que achavam e ainda incentivava tais pensamentos, afinal, vocês concordam que se eu for sincera e disser que acho tudo isso uma grande merda e que prefiro apenas seguir meus sonhos todos vão me julgar mal e dizer que sou uma garota egoísta e mal agradecida, não é?!
Mas por algum motivo saber que aquele cara que eu mal conheço pensava exatamente como todos os outros me incomodou. Antes que eu começasse a dar espaço para pensamentos ilimitados, o meu celular apitou e vi que tinha uma mensagem de Jonas dizendo que passaria lá em casa para pedirmos um lanche juntos, após responder com um "okay" e um emoji de apaixonada corri para a sala de aula já que o sinal tinha soado há alguns minutos.
-Está atrasada, Aires. _Lucrécia, a professora de filosofia murmurou, sem parar de escrever no quadro.
-Mil desculpas, eu tive problemas femininos para resolver, espero que a senhora entenda. _Menti.
-Tanto faz, só senta e começa a copiar porque logo eu apago.
Me sentei no meu lugar de sempre ao lado de Louise, que me encarava com uma caneta apoiada em cima da orelha.
-O que foi?
-Eu que te pergunto, por que o atraso? você não está na semana dos seus "problemas femininos".
Eu odiava o fato de Louise saber até mesmo a data do meu ciclo menstrual.
-Estava com Miguel na área externa.
Pelo arregalar de olhos dela, presumi o que viria a seguir.
-Você ficou maluca? eu disse que era melhor você se afastar, o cara já está até fazendo você se atrasar para as aulas!
-Ah Lise, foi só uma vez, e a culpa não foi dele, eu quem fui puxar assunto, e sim, você disse para eu me afastar e eu achei que tinha deixado claro que não faria isso. _Disse, piscando para ela e abrindo meu caderno.
-Você é tão inconsequente.
-Não sou, eu apenas fico cansada de que todos monitorem as pessoas com quem eu ando, nem todo mundo tem interesse ou segundas intenções comigo só pelo meu dinheiro, e outra coisa, o garoto nem parece querer ser meu amigo.
-As mocinhas podem ir conversar lá na diretoria se preferirem! _A professora disse, chamando nossa atenção.
Sibilei um "desculpe" e comecei a copiar a matéria.
  Após a última aula voltei para casa sozinha já que Louise tinha marcado de estudar para o vestibular com outros alunos da nossa turma. Assim que cheguei fui direto para a sala de refeições ver qual era o prato do dia, Tina nunca me deixava na mesmice, sempre inovando no cardápio.
-Quiche de brócolis e ricota, e um arrozinho integral que você adora! _Ela disse assim que eu entrei na sala, jogando a mochila em uma das cadeiras.
-Eu já disse que te amo hoje?
-Não, mas estou aguardando!
-Eu - te - amo! _Falei, pausadamente enquanto apertava ela em um abraço.
Depois de comer mais do que meu estômago era capaz de suportar, tomei um longo banho de banheira antes de começar a estudar algumas apostilas empresariais que meu tio Félix tinha me passado. Sentei na varanda principal da casa, de frente para o jardim e comecei a folhear aquelas páginas, pareciam estar escritas em outra língua ou códigos incompreensíveis para mim. Eu definitivamente odiava gestão, finanças e tudo que fosse relacionado a empresa da minha família. Em uma das minhas distrações olhei para o prédio que tinha um pouco a frente da minha casa e vi um cara sentado na varanda de um dos apartamentos do segundo andar, ele lia um livro e mesmo olhando de longe e apenas o perfil dele eu pensei que talvez pudesse o conhecer de algum lugar. Mas o que me intrigou foi o fato daquele apartamento estar inabitado por muito tempo, e o último morador nunca era visto por ninguém do prédio e nem do bairro. Largando minhas apostilas no chão, me levantei e segui pelo jardim até o portão, e sem ponderar muito as minhas ideias andei pela calçada até a frente do prédio. O edifício não era grande, conhecia algumas pessoas do colégio que moravam ali, e já tinha frequentado algumas vezes o lugar, por isso, o porteiro me conhecia e sempre era muito simpático. Toquei o interfone de entrada e esperei que o porteiro me visse, e assim que o fez ele abriu o portão.
-A entrega do senhor está aqui embaixo o aguardando. _Ouvi ele dizer ao telefone assim que entrei. -Senhorita Catarina, quanto tempo não vem me fazer uma visita! _Ele disse, após desligar o telefone. 
-Sentiu minha falta, seu Roberto?
-Claro, sua presença sempre alegra o dia de qualquer um!
-O senhor sempre tão gentil! _Disse, antes de ir direto ao assunto que me levou até ali. -Deixa eu te perguntar... quem é o morador novo do segundo andar?
-Nada passa despercebido pela senhorita, não é?
-Não mesmo, da minha belíssima varanda eu tenho uma visão privilegiada!
-O morador é um jovem, o nome do dono do apartamento continua o mesmo mistério, mas o novo residente não é o mesmo de antes.
-E qual é o nome do novo morador?
-Miguel é o meu nome. _Ouvi uma voz familiar falar atrás de mim. -Mas acho que você já sabe disso.

Aquela jaqueta de couroOnde histórias criam vida. Descubra agora