Abri meus olhos e senti uma dor de cabeça descomunal, o que me fez voltar a fechá-lo imediatamente. Mexi meu corpo e procurei meu edredom, mas em alguns segundos percebi que o lugar onde eu estava deitada estava longe de ser a minha cama, comecei a notar os barulhos ao meu redor... parecia que eu estava numa estrada, e pelo sacolejar que sentia eu estava dentro de um carro. Abri os olhos sem me importar com a dor e a claridade, fitei a janela e observei a rua passar rapidamente lá fora. Eu estava mesmo num carro. Mas aquilo era um sonho?
Comecei a me questionar em voz alta, se aquilo fosse um sonho eu logo acordaria. Antes que pudesse ter minha primeira pergunta respondida, consegui sentar no banco e olhar o motorista.
-Que? Miguel?
-Bom dia...
Mais questionamentos seguiram, eu não conseguia entender o que estava acontecendo, eu deveria estar no meu quarto, dormindo para me preparar para a posse da presidência. Como eu tinha chegado até ali, num carro com Miguel?!
Me lembrei de uma breve visão do rosto dele, mas pensei que tinha sonhado, quando ele negou ter me dopado mas deixou a entender que alguém o tinha feito, logo a imagem borrada de Roberta me dando um comprimido me veio a mente. Senti meu corpo inteiro estremecer. Então eles realmente estavam tramando algo juntos, e eu tinha acreditado que ela não tinha nada a ver com a entrada de Miguel na minha vida, mas ela também tinha me enganado. Comecei a me questionar em silêncio o que levaria os dois a trabalharem juntos para me afastar de Blumenau bem no dia da minha posse, mas nada parecia fazer sentido, afinal, a maior interessada em me ver na presidência era Roberta.
Levei minhas mãos até o trinco da porta e comecei a forçar, precisava sair daquele carro, precisava ir para bem longe daquele cara. Assim que vi as trancas levantarem, abri a porta e sai do carro, apenas um caminhão estava na estrada, mas quando fiz sinal ele buzinou e passou direto.
-Catarina, entra no carro! _Miguel gritou, abrindo a porta dele.
O ignorei e observei a área ao lado do acostamento, era só grama e tinha apenas algo que parecia uma fábrica ao longe, e era minha única chance, talvez meus dias na academia tivesse me rendido boa resistência para corridas, e aquela era a hora de testá-la. Não olhei para atrás, apenas passei pelo acostamento e comecei a correr na grama, eu estava descalça e só vestia uma camisola e um sobretudo, seria uma loucura aparecer assim para outra pessoa, mas eu precisava de ajuda, por isso, não parei de correr, mesmo ouvindo Miguel me gritar várias vezes.
-Catarina! _Ouvi sua voz ainda mais perto, e quando me virei para checar sua proximidade, vi ele perto o suficiente para me abraçar por trás e me derrubar.
-Inferno... me solta! _Gritei, ofegante, sentindo meus pulmões e minhas pernas queimarem.
Miguel se ajoelhou, me colocando entre suas pernas e segurando meus braços no chão, enquanto eu me debatia sem parar.
-Que droga, Catarina! será que dá pra ficar calma e me escutar?! _Ele gritou, tão ofegante quanto eu.
Antes que eu pudesse xingá-lo, senti um poço de lágrimas se erguerem dentro de mim quando o encarei de tão perto e vi a situação em que estávamos. Estava tudo uma bagunça, eu estava apaixonada por aquele cara, mas com o coração dilacerado, e mesmo depois de tudo que ele tinha me feito passar, Miguel ainda me sequestrou em um dia importante, e ali estavávamos nós jogados na grama gelada em um lugar que eu não conhecia, na beira de uma estrada deserta. Eu me sentia decepcionada, confusa, cansada, enganada, mas mesmo diante de tudo aquilo eu não conseguia sentir medo, não acreditava que aqueles olhos verdes e intensos fossem capazes de fazer algum mal físico a mim.
Sentia as lágrimas quentes descerem pelo meu rosto, contínuas, e pela visão embaçada, vi a expressão de Miguel mudar.
-Não chora... _Ele pediu, em um tom baixo, quase como um sussurro. -Se... se você me prometer não fugir, eu saio de cima de você e conversamos civilizadamente.
Eu estava exausta, não tinha mais fôlego pra correr, meu corpo estava cansado e minha mente ainda mais, tinha desistido de lutar naquele momento. Assenti com cabeça, o encarando nos olhos para que soubesse que podia confiar em mim, e então ele soltou meus braços e saiu de cima de mim, sentando na grama e suspirando.
Continuei ali deitada, encarando o céu, sem saber o que fazer e o que pensar, mas então ele começou a falar:
-Eu precisei te tirar da mansão para a sua segurança, querem matar você.
Virei a cabeça bruscamente em direção a ele, esperando que ele repetisse o que disse ou ao menos explicasse.
-Acho que estamos longe o suficiente agora, posso contar tudo a você.
-É tudo o que eu quero... _Murmurei, me sentando ao lado dele.
-Bom, melhor eu começar falando sobre a minha contratação para protegê-la... um homem que eu não sei exatamente quem é porque ele precisa manter a identidade em sigilo, esse cara ouviu uma conversa minha com o Léo, aquele meu amigo do clube, e eu dizia que precisava urgente de grana e que queria muito poder concluir o ensino médio, com isso ele viu em mim alguém em potencial para proteger você, sabia que eu não recusaria um oportunidade como aquela. Assim que ele me fez a proposta eu fui contra, mas se coloca no meu lugar só por um momento, eu trabalhava todos os dias e ainda assim não tinha dinheiro para todos os remédios e exames da minha vó, e não só isso, eu também sonhava em terminar a escola e poder entrar numa faculdade, quando apareceu aquela oportunidade... eu não conhecia você, e na minha cabeça eu só precisaria ficar vigiando uma desconhecida e mantendo-a segura, mas tudo mudou depois que nos aproximamos...
-Isso... é surreal... eu não sou egoísta e insensível a ponto de não entender que você precisava aceitar a proposta desse cara, mas não tinha o direito de continuar me escondendo tudo isso depois da amizade e do... do vínculo que criamos!
-Eu sei, é o que mais me arrependo, penso no que eu poderia ter feito de diferente todos os dias, acredite. _Falou, virando-se para mim.
-Eu acredito, mas agora continua se explicando, ainda não sei porque estou de camisola no gramado do fim do mundo! _Disse, e o observei dá um leve sorriso e então voltar a ficar sério.
-Mesmo depois que descobriu tudo e me pediu para ficar longe de você, eu continuei te acompanhando, na verdade eu larguei o cargo, nessas últimas semanas não ganhei nada pela tarefa de proteger você, estou fazendo isso porque me importo. _Miguel falou, sem tirar os olhos de mim. -Na quinta-feira eu fui até a sua casa para conversarmos, mas fui impedido de entrar, então sabendo que você teria uma reunião na empresa eu fui até lá, cheguei a subir até o andar da diretoria, e foi nessa hora que ouvi seu... _Ele parou de falar e desviou o olhar, parecendo indeciso de continuar o que falava.
-O que aconteceu? fala Miguel!
-Vou pedir que depois do que eu falar você continue quieta e disposta a continuar me ouvindo, tudo bem?
-Que enrolação, já disse que estou aqui pronta para ouvir tudo!
Ele respirou fundo e então voltou a olhar para mim.
-Escutei seu tio ao telefone, ele estava pedindo que alguém... que dessem um "fim" em você, se é que me entende...
Franzi as sobrancelhas, confusa com aquilo. Será que eu tinha entendido certo? esperava que não.
-Como assim um fim?
-Lembra aquela madrugada depois da formatura que eu te levei em casa? _Assenti com a cabeça e ele prosseguiu. -Tinha um carro preto parado do outro lado da rua, eu achei suspeito e mesmo depois de sair do seu quarto eu continuei no jardim, esperando que o carro fosse embora, e eu tinha razão de ter desconfiado, aquela foi a primeira tentativa que seu tio Félix fez para tentar matar ou sumir com você...
-Espera, meu tio? mas isso é ridículo! _Bufei, já me levantando, mas Miguel segurou minha mão.
-Você prometeu! _Ele falou, me puxando para baixo outra vez. Apenas assenti, enquanto voltava a sentar na grama, esperando que ele continuasse a falar. -Como eu estava na entrada da mansão a pessoa que estava no carro não tentou nada, mas Félix está determinado a tirar você da jogada, eu ouvi claramente enquanto ele passava as instruções para que matassem você na manhã da posse, no caso, hoje... e foi por isso que precisei tirar você de Blumenau.
Senti meu coração apertar e meu estômago embrulhar. Não sabia se acreditava em Miguel, e tinha meus motivos para isso.
-Ele jamais faria isso comigo! _Me ouvi dizer, encarando meus pés sobre a grama.
-Eu sei que é difícil acreditar numa coisa dessas, mas foi pra te proteger dele que eu fui contratado, e sim, ele seria capaz de matar você, já fez coisa pior!
-O que quer dizer? _Indaguei, mas minha voz era quase um sussurro.
-O homem que me contratou disse que Félix quem é o responsável pelo sumiço do seu pai, acho que ele mandou matá-lo. _Miguel disse, e ele falava com tanto cuidado, como se as palavras pudessem me quebrar. Talvez pudessem.
Me levantei, precisava de ar, mas eu já estava no ambiente mais aberto possível, então apenas caminhei sentindo a grama úmida nos meus pés. Minha cabeça girava, e eu não sabia o que pensar, meu tio nunca foi um cara muito apegado a família, mas não conseguia imaginar ele como um assassino.
-Catarina... eu sinto muito por isso, mas você nunca percebeu a ambição dele pela empresa?
Parei de andar ao fim da pergunta dele e senti Miguel se aproximar. Me lembrei das vezes que ouvia meu pai conversar com Roberta e reclamar que meu tio estava sempre tentando queimar a imagem dele diante dos funcionários da empresa, e mesmo depois do sumiço do meu pai, Roberta sempre fez questão de lembrar ao meu tio que eu quem iria ocupar a presidência e também nunca pareceu confiar nele.
-Então... é por isso que Roberta insiste tanto pra que eu ocupe a presidência?!
-Acredito que sim, como já sabe, foi ela que te dopou depois da festa, pelo o que entendi ela recebeu uma mensagem, que acredito ser do Luíz, e ela não teve dúvidas do que precisava fazer quando soube que você corria perigo, então ela me ajudou a tirar você da mansão.
-Espera, você disse Luíz, quem é esse?
-É o homem que me contratou, foi ele que alugou o carro, me deu dinheiro para nossas despesas e também o endereço do lugar que ficaremos até ser seguro voltarmos.
-Achei que não soubesse o nome dele. _Murmurei, começando a me arrepender de estar acreditando nele outra vez.
-Ele me disse que eu podia chamá-lo por esse nome, mas não acho que seja o verdadeiro.
-E pra onde ele mandou que fôssemos?
-Um chale da sua família, em Gramado.
Aquilo me surpreendeu, aquele chale era pouco frequentado por nós, na verdade a última vez em que visitamos o lugar foi meses antes do meu pai sumir, e não era uma das propriedades mais conhecidas da família.
-Tem uma coisa que ainda está confusa para mim, porque esse tal de Luíz está fazendo tudo isso para me proteger? como ele conhece o nosso chale e sabe tanto sobre mim e a minha família?
-Essa é a única peça do quebra cabeça que eu também não sei, tentei descobrir algumas vezes, mas ele nunca me falou.
-Isso é bizarro, eu não conheço ninguém com esse nome...
-Esperava que você pudesse me contar quem ele era assim que soubesse de tudo, mas pelo visto continuarei sem saber... _Disse, olhando o relógio em seu pulso. -É melhor nós continuarmos a viagem, ainda temos muitas horas de estrada pela frente.
Miguel foi andando na minha frente e suspirei profundamente antes de segui-lo de volta para o carro. Entramos e eu me sentei no banco do passageiro, sentia como se precisasse de mais umas cinco horas de sono, minha cabeça pesava e meus olhos ardiam.
-Agora seria uma boa hora pra tomar aquele sorvete... _Murmurei, abrindo a janela e ouvindo um som que presumir ser uma breve risada.
-Ninguém mandou negar o meu presente de aniversário.
-Você nunca escolhe boas horas pra fazer as coisas... _Falei, enquanto ele ligava o carro. -Foi o aniversário mais louco e caótico que eu já tive, começando a maioridade com estilo, fugindo do meu tio assassino. _Tentei brincar, mas a verdade é que aquilo não entrava na minha cabeça, tio Félix era um monstro e eu nunca tinha percebido.
Quando olhei para ele percebi uma expressão engraçada, como quem se lembrava de algo.
-Que foi? _Indaguei, desviando o olhar e observando a estrada.
-Eu... me lembrei de um pedido que Luíz me fez há uns dois atrás...
-E que pedido foi esse?
-Ele pediu pra que eu dissesse a você que o... Pep? não! que o Pop te desejava um feliz aniversário e que estava com saudade, isso significa alguma coisa pra você?
Reuni meus últimos fragmentos de força e o encarei, enquanto meu coração voltava a descompassar no peito.
-Pop? ele disse isso mesmo?
-Era alguma palavra que começava com p e terminava com p! _Ele disse, me encarando.
Tomei vários fôlegos descompassados, lutando para me manter inteira e tentando me concentrar naquela informação e no que ela significava.
-Pop... era o apelido que eu usava com o meu pai... quando bebê eu falava errado a palavra "pai" e então tornamos isso um apelido carinhoso... _Disse, forçando minhas mãos a pararem de tremer.
-Então... espera, então isso quer dizer que o Luíz é o seu pai? _Miguel indagou, tão chocado quanto eu.
-Eu... eu não sei! mas o nome do meu pai é Jonathan. _Falei, e levou menos de um segundo para que logo o nome Luíz fizesse sentido na minha cabeça. -Jonathan Luíz Lima Aires. _Sussurrei, e todo o ar que ainda me restava nos pulmões pareceu se esvair.
-É claro! ele usou o segundo nome, agora faz sentido ele te conhecer tão bem, se preocupar tanto, saber sobre o seu tio ter matado, ou melhor, tentado matar ele...
-Ele estava escondido esse tempo todo! _Falei, esclarecendo os fatos na minha mente.
-Sim, mas ele dever ter precisado fingir um desaparecimento após a tentativa de assassinato.
-Então ele não me deixou... _Ouvi minhas palavras e meu coração se encher de um sentimento bom que eu nem soube nomear. -Não completamente...
-Não Catarina, ele a não deixou, muito pelo contrário, procurou estar do seu lado esse tempo todo mesmo que não fisicamente ou tão perto como gostaria.
Senti as lágrimas descerem ardentes pelo meu rosto, mas pela primeira vez em anos, eu não chorava de tristeza e sim de alegria. A mão quente de Miguel alcançou o meu joelho desnudo e deu um leve aperto, que teve grande significado para mim naquele momento. Meu pai tinha encontrado Miguel e visto nele a pessoa em que poderia confiar a minha segurança, e naquele momento eu não tinha dúvidas de que meu pai não poderia ter escolhido ninguém melhor que ele.
Miguel arrancou com o carro, voltando para a estrada. Virei o rosto para a janela, ainda sem conter as lágrimas, observando o longo trajeto rumo ao nosso esconderijo.

VOCÊ ESTÁ LENDO
Aquela jaqueta de couro
RomanceCatarina Aires mora em Blumenau desde que nasceu, é herdeira das empresas de sua família, escrava de uma posição que não quer ocupar e correndo um risco que desconhece, a jovem impetuosa será salva por um motoqueiro misterioso, o que ela não sabe é...