ESPECIAL: NARRADOR ONISCIENTE

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  -Me esquece. _Catarina disse, colocando um fim a conversa.
Sua atitude não dava margem a mais assunto, Miguel observou ela virar as costas e se afastar, e Fenrir surgiu de trás da casa, olhando para ele por um instante, mas então focou em Catarina e foi pedir a atenção dela. Talvez ele também o odiasse naquele momento, afinal, não tinha um dia em que Miguel chegasse naquela casa que Fenrir não fosse pulando em cima dele, mas ele não julgou o cachorro, se pudesse Miguel também ficaria do lado de Catarina.
Depois que ela entrou, Miguel ficou ali parado por mais um ou dois minutos, se sentindo pior do que antes - se é que isso era possível - imaginando que ele nunca teria o perdão dela, mas também convicto de que não poderia esquecê-la como ela mesma havia mandado há dois minutos atrás.
Entrando no apartamento, ele foi tomar um banho, tinha ficado sentado na calçada da mansão por mais de duas horas, sentia-se sujo e sua cabeça latejava, indicando que precisava tentar ter uma noite de sono mais proveitosa, já que nos dias anteriores ele sofreu com insônias e pesadelos a maior parte das noites. Depois do banho ele foi até a mochila, precisava mandar uma mensagem para vó, já que tinha prometido avisar assim que chegasse no apartamento, mas quando abriu a mochila, viu a sacola com o vestido que Catarina tinha esquecido na casa dele, e foi apenas mais um motivo para fazer seu peito doer outra vez. Catarina tinha se jogado na piscina de vestido e tudo, ele tinha a desafiado a entrar na água, e sabia que ela jamais recusaria um desafio. Naquela noite eles tinham compartilhado seus sentimentos, ele estava feliz como nunca antes, ouvir da boca dela que ela também não queria ser apenas amiga dele foi como ganhar na loteria, por um momento ele tinha esquecido que tudo aquilo era um jogo de azar e que ele nunca teve sorte com nada. Quando voltou sua atenção para o presente, Miguel estava sentado no sofá com o vestido verde nos braços, apesar de sua vó ter lavado a roupa, parecia que o cheiro de Catarina ainda estava ali, ou talvez apenas estivesse preso em suas lembranças por tempo indeterminado. Enquanto olhava a mansão pela porta da varanda, Miguel sentiu seu corpo cada vez mais pesado, e então depois de alguns minutos se rendeu ao sono acumulado.
   Na quinta-feira todo o colégio estava agitado, era o último dia para os alunos do último ano e do supletivo. Miguel entrou na sala e todos os alunos que estiveram com ele durante aqueles três meses estavam sentados, esperando o boletim. Apesar de já presumir seus resultados, Miguel não conseguiu evitar sorrir e permitir que as lágrimas apontassem em seus olhos quando leu a palavra "aprovado" e "ensino médio concluído" na folha a sua frente.
Ele precisou abandonar a escola no segundo ano do ensino médio, pouco tempo depois que sua vó descobriu a doença e sua mãe se mudou de vez deixando ele cuidando de tudo, Miguel não viu outra alternativa a não ser dividir seu tempo entre trabalho e cuidar da avó. Passou quatro anos sonhando em poder terminar a escola, e mesmo já tendo vinte anos ele não podia estar mais orgulhoso de si mesmo por finalmente ter concluído aquela etapa. Após se despedir dos professores, já que nem todos estariam na formatura no fim de semana, Miguel saiu e decidiu fazer um último lanche no pátio, e enquanto comia seu sanduíche começou a ouvir algumas vozes vindas do outro lado do pátio:
-Catarina, Catarina, Catarina! _Várias vozes gritavam.
Quando ele se aproximou o suficiente para ver o que estava no centro da roda que se formava, viu Catarina com um papel na mão subindo em um dos bancos. Catarina tinha sido escolhida para o discurso final de formatura, e como não poderia passar o último dia despercebida, convidou sua turma para presenciar ela discursar um pedacinho do que tinha preparado.
-Primeiramente gostaria de dizer, que o prazer de estar representando todas as turmas ao proferir esse discurso é indescritível. É uma posição de grande importância e eu estou dedicada a ela de corpo e alma... _Quando fez uma pausa para ajeitar o cabelo que caía no rosto, vislumbrou Miguel não muito distante a observando.
Seus olhos se cruzaram, mas Catarina não permitiu que aquela conexão se prolongasse por mais que dois segundos, desviando o olhar e dobrando sua folha do discurso.
-O resto é surpresa, preciso estar com meu vestido e meu par de brincos da Bvlgari para discursar o resto. _Ela falou, lançando um beijinho no ar e descendo do banco. -Ah, e na semana que vem não esqueçam de verificar suas notificações, meu convite de aniversário chegará em breve... não para todos, é claro. _Sorrindo, ela saiu da roda, deixando um grande tumulto para trás.
Passando mais perto que o necessário de Miguel, ela o encarou uma última vez antes de seguir até o carro que já a esperava do lado de fora.
  No sábado de manhã, Catarina e Louise saíram cedo de casa, já que tinham horário marcado no salão. Miguel precisava alugar um smooking com urgência, e também precisava continuar vigiando Catarina, então juntou o útil ao agradável e seguiu-a até o centro da cidade. Catarina estava esperando suas unhas secarem quando olhou para fora e viu Miguel sentado no banco do outro lado da rua, ele mexia no celular e segurava um cabide com uma capa de roupas.
-Filho da mãe... _Ela murmurou, se levantando furiosa. -Eu volto logo.
-Onde você vai? _Louise perguntou, sem mover a cabeça, já que estava cortando o cabelo.
Catarina atravessou a rua como um touro indo de encontro a um chamariz vermelho, Miguel mal teve tempo de se preparar para a avalanche de ódio.
-Seu babaca! eu não disse que não era mais para me espionar? achei que tivesse sido clara! _Ela disse, incisiva.
-Eu... eu não estava te...
-Miguel, você realmente acha que eu sou idiota, né? ou você é um maníaco por mentiras... _Ela deu de ombros. -Pouco me importa qualquer coisa sobre você, a única coisa que eu quero é que me deixe em paz!
-Não posso.
Catarina riu, jogando os cabelos para trás dos ombros com dificuldade, já que não podia borrar suas unhas.
-Vou falar só mais uma vez, ou você some da minha vida ou eu vou te denunciar, e eu tenho certeza que não vai querer uma ficha criminal logo agora que conseguiu seu diploma, não é verdade?
-Você tem certeza do que quer?
-Não poderia ser mais clara que isso...
-Então fala olhando nos meus olhos que quer que eu suma da sua vida pra sempre.
Catarina sentiu os olhos queimarem, mas engoliu as lágrimas. Ela não conseguia dizer aquilo porque no fundo não queria que ele sumisse, ela só queria que tudo fosse diferente, que ele fosse a pessoa que ela pensou que era.
-Some. _Murmurou, virando as costas e atravessando a rua.
-Some não é bem o que eu pedi que dissesse... _Miguel sussurrou, observando-a se afastar.
  Ao findar do dia, faltando menos de uma hora para o início da formatura, todos os formandos já estavam no colégio se preparando para a colação de grau. Catarina ainda não tinha visto Miguel, presumiu que finalmente ele se tocara de que ela não queria mais vê-lo e estivesse evitando frequentar os mesmos lugares que ela. Miguel tinha se atrasado já que no momento em que ia sair de casa descobriu que o pneu de sua bicicleta estava furado, foram mais alguns minutos até pegar um ônibus que passasse em frente ao colégio.
Após a entrada de todas as turmas, deu-se início aos discursos. Pareceu uma eternidade para todos ali que aguardavam ansiosamente pela festa que teria depois, mas finalmente Catarina foi chamada para o discurso final. Quando Catarina subiu no palco, foi a primeira vez na noite em que Miguel conseguiu vê-la, e diante daquelas luzes, naquele vestido azul e com aquelas jóias brilhantes exigindo atenção, Miguel quase achou estar sonhando, ela não podia ser real. Para sua felicidade, ela era real, mas para a infelicidade, ele a tinha perdido. Ela começou o discurso, e Miguel imaginou que ninguém ali teria capacidade de prestar atenção nas palavras dela, a menos que apagassem as luzes, algo que com certeza não fariam, ou que ela colocasse a beca como todos os outros, mas obviamente ela também não perderia a chance de subir em um palco com seus saltos altos e seu vestido chamativo no último dia no colégio.
-... Foram muitos e muitos dias intensos e por vezes desesperadores que passamos, mas muitos também nos renderam boas risadas e broncas dos professores. _Catarina fez uma pausa, piscando para a bancada de docentes. -Mas o dia de hoje se resume a tudo isso, essa noite marcará nossas vidas para sempre, sela uma fase pela qual passamos, uns por três anos, outros por cinco, não é Henrique? _Brincou, acenando para o colega de turma, que lhe mostrou o dedo do meio por debaixo da manga da beca.
Miguel observava ela falar como se estivesse hipnotizado, ela era irritantemente perfeita, já tinha feito muitos chorarem, outros já estavam rindo, enquanto alguns faziam comentários a invejando por quererem estar no lugar dela fazendo o último discurso.
-... Apesar de estarmos finalizando uma grande fase, isso não é o fim, estamos apenas começando. Não vou me prolongar mais porque acredito que todos estejam tão ansiosos quanto eu para o evento pós colação de grau! _Falou, sorridente e recebendo alguns gritinhos de volta. -Fomos felizes juntos apesar de tudo, e valeu a pena todo o nosso caminho até aqui. Obrigada aos pais, aos professores, aos funcionários da limpeza, da cantina, ao porteiro que quase enlouquecia quando fugíamos fora do horário de saída, e principalmente a nós, por não termos desistido. Obrigada!
Após uma multidão de aplausos, Catarina desceu e logo começaram a entregar os diplomas. Não demorou muito para que os formandos começassem a sumir dali, o que indicava que estavam indo para a boate onde seria a festa. Catarina ia passando pela porta do teatro da escola em direção a saída, quando Miguel apareceu, a fazendo pular de susto.
-Que droga, Miguel! _Murmurou.
-Não queria assustar você, eu só... queria te parabenizar pelo discurso, foi incrível lá em cima. _Ele disse, sem conseguir se concentrar completamente no que dizia já que a proximidade dela não o permitia.
-Obrigada, agora me deixa passar. _Catarina tentou se esquivar, mas Miguel continuou embarreirando a passagem dela.
-Você vai na festa?
-O que você acha? já me viu negar uma noitada? _Ela indagou, elevando uma das sobrancelhas.
-É, foi uma pergunta idiota.
-Sim, agora sai da minha frente.
Catarina tentou passar outra vez, mas Miguel levou uma das mãos até o rosto dela, a fazendo parar instantaneamente, como se lançasse um feitiço sobre ela.
-O que... o que mais você quer de mim? _Catarina sussurrou, sem desviar os olhos dos dele.
-Só quero poder ter você de novo. _Ele respondeu, ao passo que suas respirações ficaram curtas e apressadas.
Miguel quase podia sentir o gosto dos lábios dela, mas então sentiu a mão de Catarina arrancar a dele de seu rosto.
-Nunca te falaram que querer não é poder? _Ela indagou, sorrindo brevemente e saindo de forma brusca, esbarrando nele.
Miguel ficou alguns segundos paralisado, observando ela sumir de seu campo de visão.
-Essa garota ainda vai me enlouquecer... _Murmurou para o corredor agora vazio.
   Catarina chegou na boate e a maioria dos formandos já estavam lá, a decoração estava incrível, parecia uma das festas que ela ia escondida de sua madrasta quando visitou o México há dois anos atrás. Miguel entrou no local e se arrependeu imediatamente por não ter simplesmente ignorado a existência de Catarina e ido para casa descansar. Quando olhou a pista de dança demorou para localizar Catarina no meio de tantas pessoas, mas quando a luz iluminou o centro da pista, ele viu os cabelos ruivos inconfundíveis dela. Sabendo que não venderiam álcool ali por ser uma festa onde a maioria não tinha completado 18 anos, alguns grupinhos combinaram de levar bebida escondido e misturar com os drinks da boate, e obviamente Catarina estava inclusa em um desses grupos. Miguel estava sentado em um dos bancos do bar e observou de longe as inúmeras vezes que ela jogou álcool nas bebidas de fruta que serviam, mas ele estava decidido a não interferir diretamente na vida dela, ele não ia fazer uma cena ali na frente de todos e nem queria provocar a ira dela.
  Horas haviam se passado, Miguel olhou no relógio e já era quase uma da manhã, pelo decorrer da festa não parecia que ia acabar nem tão cedo, então ele saiu do bar e após negar pelos menos uns cinco convites para dançar, decidiu sentar longe do tumulto, em um dos bancos acolchoados do segundo andar da boate.
Catarina dançava com Louise quando um dos garotos da turma dela a convidou para dançar, apesar de estar tocando uma música eletrônica, Louise entendeu que a ideia era deixar os dois mais a vontade e saiu a procura de seu namorado, o "nerd domesticado" como Catarina gostava de chamar. Quando o garoto - que Catarina nem mesmo lembrava o nome - colocou uma das mãos em sua cintura e a puxou devagar para mais perto, de imediato ela hesitou, mas quando olhou para cima e viu Miguel passando os olhos pela pista, o ressentimento por ele cresceu com um novo ímpeto, e então ela mesma colocou seus braços em volta do pescoço do garoto e o aproximou.

Aquela jaqueta de couroOnde histórias criam vida. Descubra agora