MIGUEL

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    Na quinta-feira a noite eu estava voltando da minha corrida quando observei a movimentação na mansão, por um momento fiquei preocupado, mas logo vi que eram apenas entregadores deixando mesas e cadeiras no jardim. O aniversário de Catarina aconteceria no dia seguinte, e eu recebi o convite ontem à tarde, de início achei estranho, fiquei surpreso em ser convidado mesmo depois de tudo que fiz à ela, depois fiquei esperançoso, talvez ela tivesse pensado melhor e quisesse nos dar uma segunda chance, mas então eu percebi que aquele convite estava numa lista de transmissão, o que provavelmente significava que ela já tinha deixado tudo pronto e programado para que os convites fossem enviados, e com certeza meu nome entrou na lista antes de eu estragar tudo entre a gente.
Mesmo assim queria ter certeza se ela me queria ou não na festa, se por um milagre ela estivesse me dando uma chance de ter seu perdão eu não a perderia de jeito nenhum. Tirei os fones do ouvido e sequei o suor do meu rosto com a camisa, então atravessei a rua até o portão da mansão. Cumprimentei o porteiro e vi quando uma moça alta de cabelos curtos e exageradamente loiros indicava onde os homens deveriam colocar as mesas, ela parecia ser alguma organizadora contratada por Catarina para ajudar com a festa.
-Será que eu posso entrar? queria falar com a Catarina. _Perguntei ao porteiro, apesar do portão da garagem estar aberto eu não queria correr o risco de ser barrado, e o senhor me conhecia, provavelmente me deixaria entrar sem problemas.
-Ih Miguel, ontem a senhorita Aires me deu ordens expressas de não deixar que você entrasse.
-Mas... _Murmurei, desapontado por ter nutrido esperanças a toa. -Não posso entrar nem um minuto? ou então peça a ela que venha aqui e...
-Algum problema por aqui? _Ouvi uma voz feminina e vi quando a mulher alta se aproximou.
-Dona Roberta, esse jovem é amigo da senhorita Aires, ele queria falar com ela mas tenho ordens para não autorizar a entrada dele.
-Então você deve ser o Miguel! _Ela disse, me observando atentamente, de cima a baixo, por sorte já estava acostumado com aquele olhar de desprezo no pouco tempo em que resido em Jardim Blumenau.
Eu lembrava de uma Roberta, Catarina reclamava bastante dela nas nossas conversas. Então aquela era a tão falada madrasta.
-E a senhora deve ser a madrasta de Catarina, muito prazer. _Disse, estendendo a mão.
Roberta a avaliou por um segundo e então arfou, dando um meio sorriso nada amigável. Abaixei as mãos, aparentemente a mulher já tinha uma opinião formada sobre mim.
-É melhor você sumir daqui, acho que já importunou a minha enteada o suficiente.
-Eu só queria trocar duas palavras com ela! _Falei.
-Nem uma, nem duas, eu sei quem você é e sei que ficou perseguindo ela esses últimos meses, diz para o Félix não tentar nenhuma gracinha e mande que ele aceite de vez a derrota dele e comece a empacotar as coisas pois em dois dias ele estará fora da presidência!
Só podia ser brincadeira, a mulher estava achando que eu tinha sido contratado pelo tio ambicioso de Catarina, era uma grande ironia tudo aquilo... Catarina achava que eu tinha sido contratado pela madrasta, enquanto a própria achava que eu era um capanga do tal Félix, e eu nem mesmo podia falar toda a verdade!
-Eu não trabalho pra esse cara, eu só quero proteger a Catarina!
-Foi esse o script que o babaca do meu cunhado te passou? pois esqueça, a mim ninguém engana, e a única que está tentando proteger Catarina aqui sou eu, então vá embora!
-Dona, eu não posso nem mesmo falar com ela? apenas pergunte se Catarina aceita vir até aqui conversar comigo!
-Não seja inoportuno, amanhã é o aniversário dela, além disso temos uma reunião importante amanhã de manhã bem cedo, ela já deve estar descansando.
-Eu sei da reunião, fui em quem preparei ela para ocupar o cargo da presidência, acha mesmo que eu faria isso se estivesse trabalhando para o cara que quer tirar ela dos negócios da família?!
-Você sabe de muita coisa garoto, e depois que Catarina estiver ocupando seu lugar de direito e enfim nos livrarmos do Félix, quero saber cada detalhe sobre essa sua "contratação"! 
Suspirei pesadamente, estava nítido que eu não conseguiria nada ali, aquela mulher era tão cabeça dura quanto Catarina, e agora eu entendia porque elas batiam tanto de frente. Personalidades iguais.
-Tudo bem senhora, mas só quero que saiba que nunca quis machucar Catarina, espero que em breve possam entender todos os meus motivos.
-O tempo dirá, agora se adianta! _Ela disse, me indicando a rua. -Ah, e obrigada por preparar ela para o cargo, achei que ninguém nunca conseguiria.
Assenti com a cabeça e atravessei a rua de volta, mais chateado do que antes, se é que isso fosse possível. Fui direto para o banho, e após longos minutos onde tentei mandar todas as minhas preocupações pelo ralo junto com água, enfim podia descansar, mas antes eu precisava dar uma olhada no meu celular, Luíz tinha me instruído a redobrar a atenção naquela semana e ficar atento a suas instruções. Não tinha mensagem nenhuma dele, mas vi uma notificação no meu email, o endereço era de uma universidade particular da cidade. Após terminar de ler o email eu quase cai para trás, eles estavam me oferecendo uma bolsa de 80%, me parabenizavam pelo empenho na turma do supletivo e me convidavam a conhecer a faculdade e fazer uma entrevista para confirmação de baixa renda. Aparentemente eles tinham buscado todas as minhas informações, incluindo meu histórico escolar e renda familiar, eu não sabia o que pensar naquele momento. Tinha quase certeza de que eles não saíam por aí atrás de pessoas pobres, como tinham chegado até mim?
Eu não tinha resposta para tantos questionamentos, queria ficar feliz pela notícia, mas era bom demais para ser verdade, 80% é uma porcentagem alta de desconto, se eu conseguisse um trabalho de meio período poderia pagar sem grandes apertos financeiros. Respondi ao email confirmando que compareceria ao campus da universidade na segunda-feira de manhã, se aquilo era verdade ou mentira eu descobriria logo.
    Na manhã de sexta eu acordei determinado a encontrar com Catarina, primeiro porque precisava ficar atento a cada movimentação ao redor dela, e Luíz tinha me alertado sobre Félix, precisava estar por perto, ainda mais com ela estando tão próxima dele nessa reunião, e segundo porque era seu aniversário, precisava falar com ela e perguntar sobre o convite da festa. Se eu estava impedido de entrar na mansão, então iria atrás dela na empresa, ela não passava muito tempo lá então com certeza não tinha barrado a minha presença por lá também. Não sabia a hora da reunião, apenas que seria de manhã, então acordei às 9:00 e parti para o centro da cidade, onde ficava a sede da empresa Aires.
Quando o táxi me deixou em frente ao lugar, fiquei surpreso ao ver a imensidão daquele prédio, entrei no hall e procurei pelo nome da empresa e o andar, em seguida entrei no elevador lotado de homens engravatados e mulheres de terno, me senti como um peixe fora d'água. Quando cheguei no andar e avistei as grandes portas de vidro com o nome da empresa em destaque, fiquei ainda mais intimidado, não pude deixar de imaginar quanto eles lucravam e quantos empregos geravam ali. A recepção era imensa e muito bem organizada, temi até respirar ali dentro e chamar mais atenção, mesmo com meu tênis mais novo, e com minha melhor camisa, eu ainda me sentia como um mendigo diante todas aquelas pessoas bem vestidas. Após dar meu nome na entrada e dizer que era amigo de Catarina, fui brevemente vistoriado, e em seguida autorizado a entrar.
-Posso ajudar? _Me assustei ao ouvir a voz suave ao meu lado.
Era uma mulher de coque e um batom exageradamente vermelho, pelo crachá em seu pescoço eu soube que ela era uma das recepcionistas.
-Pode sim, eu estou procurando por Catarina Aires, ela me disse que tinha uma reunião hoje cedo e pediu para que a encontrasse aqui. _Menti.
-Eu ainda não vi a senhorita Aires hoje, mas se já estiver aqui provavelmente vai encontrá-la no segundo andar, é só pegar o elevador que fica logo à direita. _Ela indicou.
-Muito obrigado, tenha um bom dia e bom trabalho! _Agradeci, seguindo até o elevador.
Ao chegar no segundo andar não pude deixar de notar todas aquelas cabines de vidro, ocupadas por administradores, talvez alguns advogados, contadores, publicitários... Não consegui deixar de desejar um emprego naquele lugar, uma pena que a futura presidente da empresa me odiasse.
-Está perdido? _Um homem de terno com um tablet numa mão e um celular na outra me parou no corredor.
-Mais ou menos, estou procurando Catarina Aires, ela tinha uma reunião hoje.
-A irresponsável desmarcou a reunião ainda pouco, parece que ela está mais preocupada com sua festa de aniversário. _Ele disse, atento a algo na tela do celular.
-Tem certeza que ela não apareceu por aqui?
-Eu sou assistente pessoal do senhor Félix Aires, então sim, eu tenho certeza, agora com licença.
Observei o homem sair apressado, em seguida segui pelo corredor, olhando cada canto do lugar.
-Se você não fosse tão incompetente teríamos nos livrado dela na noite da formatura, mas agora teremos que redobrar os esforços! O evento de posse é amanhã às dez, preciso que esteja pronto para sumir com a pirralha... _Assim que ouvi aquilo parei instantaneamente, busquei encontrar de onde vinha aquela voz e me deparei com uma porta entre aberta, nela estava escrito "Diretoria".
Para a minha sorte aquele corredor era mais afastado da parte movimentada do andar, então espiei e vi um homem alto de cabelos grisalhos de pé olhando para a janela e com o celular no ouvido.
-Acredito que ela vá vir com a madrasta no carro, então só precisará abordá-las antes que cheguem na empresa, o melhor será uma quadra depois da rua da mansão, ali é menos movimentado e longe dos seguranças, simule um assalto, ou se for bom o suficiente acerte logo um tiro nela e em quem mais precisar, acaba com isso, não posso deixar que ela pise nessa sala e tome meu lugar!
Por um instante senti minha respiração falhar, como se todo o oxigênio se esvaisse daquele lugar, eu simplesmente não podia acreditar naquilo que tinha acabado de ouvir, e tive até mesmo minhas suspeitas sanadas, já que desde a formatura eu não tinha parado de pensar naquele carro preto misterioso, agora sabia que a pessoa que estava dentro dele queria dar um fim à Catarina.
Após o choque, senti um ódio descomunal, queria entrar naquela sala e encher aquele assassino de porrada, para que ele nunca mais cogitasse a hipótese de tocar em um só fio de cabelo de Catarina. Antes que eu pensasse no que fazer, ouvi Félix desligar o celular, e então me apressei em sair dali. Entrei no elevador e devido ao silêncio quase pude escutar as batidas furiosas do meu coração, a sensação que tinha era que tivessem tirado todo o ar ao meu redor.
Quando sai do elevador ouvi alguém perguntar para mim se tinha conseguido falar com Catarina, e presumi que tinha sido a recepcionista que me recebeu, mas não parei para respondê-la, apenas passei como um furação naquela recepção, precisava falar com Luíz urgente.
    O homem abriu a porta e eu entrei no apartamento dele sem muitas cerimônias. Luíz olhou de um lado para o outro no corredor e depois de se certificar de que eu não tinha sido seguido, ele fechou a porta e voltou sua atenção a mim.
-Miguel, você precisa avisar antes de aparecer assim!
-Eu sei, mas não consegui pensar antes de agir e também não tinha tempo pra isso!
-O que aconteceu? Catarina está bem? _Ele perguntou, agora demonstrando preocupação.
-Por enquanto sim, eu acabei de vir da AiresHotels, queria falar com Catarina e meio que estou barrado de entrar na mansão, mas sabia que ela teria uma reunião hoje de manhã, só que quando cheguei acabei escutando uma conversa bizarra de um homem, que eu acredito que seja o tal do Félix, não consegui ver o rosto e comparar com a foto que me mostrou, mas ele estava na sala da diretoria e falava ao celular com alguém, e escutei só o fim da conversa mas ouvi claramente quando ele disse que Catarina iria com a madrasta no sábado de manhã para a posse e ele dava ordens para essa pessoa simular um assalto e matá-las.
-Aquele desgraçado! _Luíz chutou uma das cadeiras de madeira, fazendo um barulho abafado, era a primeira vez que Miguel o via perder a linha daquele jeito e mais uma vez não pôde deixar de se perguntar quem era aquele homem e o que Catarina significava para ele.
-O que nós vamos fazer?
-Você precisa sumir com Catarina hoje mesmo!
-Mas como eu farei isso? porque sinceramente, ela ainda está me odiando, não vai querer ir pra sabe-se lá Deus onde comigo! _Disse, mexendo no cabelo e suspirando.
-A parte difícil eu já deixei preparada pra caso algo urgente acontecesse, mas o resto vou precisar que você dê um jeito!
-E para onde eu a levo se eu conseguir tirar ela da mansão?
-Escuta com atenção, espero que saiba dirigir, porque será necessário! preciso que vá até essa concessionária e diga que está indo buscar o BMW preto, eles vão pedir seu nome e um comprovante de aluguel, eu já passei todas as suas informações pra eles. _Ele explicou, me entregando um cartão da concessionária e um comprovante.
-Luíz, eu não tenho carteira!
-Sabe dirigir ou não?
-Eu sei, mas aprendi com um amigo, se me pegarem dirigindo eu vou preso! _Digo.
-Apenas faça o que estou pedindo, não vou deixar que vá pra cadeia. _Falou, colocando a mão no meu ombro, e se sua intenção era me tranquilizar, não funcionou. -Depois que pegar o carro, precisará pensar em um jeito de colocar Catarina dentro dele e sair com ela da cidade.
-Além de dirigir sem carteira ainda quer que eu a sequestre?! _Indaguei, arfando.
-Pensando por esse lado é bem ruim, mas você já sabia que poderia ter que fazer isso, e vai dar certo!
Pensando por todos os lados é bem ruim...
-Aqui tem o endereço do chale da família, fica em Gramado, ficarão lá...
-Espera aí, isso é na Serra Gaúcha! _Falei, pedindo a Deus para que eu estivesse errado.
-Sim, vão precisar de 11, talvez 12 horas de estrada no máximo.
-Isso é loucura!
-Miguel, não é um bom momento para surtar! Como eu estava dizendo, vocês ficarão lá até que eu consiga provas que coloquem Félix na cadeia.
-E quanto tempo isso vai demorar?
-Eu não sei, mas acredito que menos de dois dias, preciso que me diga se pela conversa você sabe onde exatamente eles pretendem simular o assalto.
-Ele disse pra que fizessem isso de preferência uma quadra depois da rua da mansão. 
-Perfeito, minha única chance vai ser dar o bote nesse cara e fazer ele confessar que trabalha como assassino de aluguel para o Félix.
-E se ele não estiver sozinho?
-Eu também não pretendo estar, não se preocupe, venho buscando contatos e planejando isso há tempo suficiente.
Me sentei e apoiei a mão na testa, estava apavorado com a ideia de sequestrar Catarina, aquilo seria impossível, em especial naquele dia.
-Tem mais alguma dúvida?
-E se eu não conseguir tirar Catarina da mansão hoje? é aniversário dela e ela está organizando uma festança!
-Claro que está! _Ele disse, sorrindo. Aquele homem com certeza tinha uma ligação com ela muito maior do que eu imaginava, mas eu sabia que não descobriria aquilo naquele momento. -Eu queria poder ter respostas e instruções para te ajudar, mas você tem convivido mais com ela do que eu, deve ter alguma coisa que possa fazer para convencê-la a te deixar entrar na festa.
-Não sei não, mesmo que eu entre jamais vou conseguir tirá-la de lá sem chamar a atenção... _Murmurei.
-Em último caso precisará invadir a mansão na madrugada após a festa, todos estarão cansados, e a partir das 1hr apenas um segurança fica supervisionando a mansão, mas geralmente fica na garagem descansando, eu tenho a chave do portão pequeno da entrada, e assim que entrar vai precisar tomar cuidado com Fenrir, o cachorro, mas apesar de ser enorme ele não costuma ser agressivo...
-Ele está acostumado comigo, não vai ser um problema, problema vai ser entrar na casa.
-A janela da cozinha não tem tranca, e pela altura você consegue entrar sem dificuldade... _Ele começou a me dar várias instruções sobre a casa, o que apenas reforçava minha opinião sobre ele ser mais próximo da família do que tentava parecer.
Depois de mais algumas instruções, ele me deu a chave do chale em que ficaríamos e também me deu dinheiro para gasolina, comida e possíveis contratempos.
-Quando estiver com ela longe daqui diga que o pop mandou um feliz aniversário e diga que estou com saudades.
-Pode deixar, seja lá o que isso signifique. _Digo. -Me mantenha informado sobre as coisas por aqui, com certeza a madrasta de Catarina vai mandar até a bope atrás de nós quando ver que ela sumiu.
-Eu cuidarei disso também, Roberta não vai atrapalhar, se tudo der certo ela pode até ajudar... apenas proteja Catarina, e também fique seguro.
Após me despedir dele, fiz o que me pediu, fui até a concessionária e peguei o carro, levei uma surra até aprender a andar com ele, mas passei o dia treinando, não podia correr o risco de ganhar uma multa dirigindo sem carteira e chamar mais atenção para mim. Deixei o carro na garagem do prédio e passei horas observando a festa de Catarina tomar forma, e planejando como tirar a princesa do castelo.

Aquela jaqueta de couroOnde histórias criam vida. Descubra agora