MIGUEL

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   Na noite anterior resolvi não dormir no apartamento e fui para minha casa, o dia tinha sido turbulento, trabalhos, teste, desentendimento com Catarina, descobertas sobre a vida dela, pedidos de desculpas, foi muita coisa em menos de 24 horas, e talvez por isso tenha sentido tanto a falta do colo da minha vó.
Infelizmente cheguei tarde e ela já estava dormindo, mas nessa manhã resolvi acordar mais cedo e poder tomar um café da manhã tranquilo com ela. O cheiro do pão quentinho entrou no meu quarto assim que abri a porta, minha vó não deixava de comprar a primeira remessa de pães da manhã nunca, era um ritual.
-Senti falta desse cheirinho! _Disse, me aproximando e dando um beijo no topo de sua cabeça.
-Meu filho, porque não me falou que viria para casa ontem? eu teria te esperado antes de dormir.
-Eu não ia vir, resolvi de última hora, me senti... sozinho, e precisava ver a senhora.
-Mas está tudo bem? _Ela perguntou, sempre notava até os menores dos meus problemas.
-Na verdade está sim, só tive um dia cheio ontem.
-Foi a garota rica? ela está pegando pesado com você? não quero que deixe ela te humi...
-Nada disso vó, na realidade eu quem acabei pegando pesado com ela. _Murmurei, enchendo as nossas canecas de café. -Estava preocupado com coisas do supletivo e acabei sendo super grosso e insensível, passei do ponto em achar que a vida dela era perfeita só por ser rica. A impressão que eu tenho é que ela finge uma felicidade apenas para manter as aparências, ou seu orgulho, e apesar de tentar tapar buracos de sua vida com bens materiais... no fim, não é mesma coisa.
Minha vó ponderou alguns instantes, sabia que ela começaria a dar seus conselhos infinitamente sábios, e era disso que eu precisava, então apenas esperei que ela iniciasse.
-Nós já conversamos há alguns anos sobre o fato do dinheiro nem sempre ser sinônimo de felicidade... você queria muito uma bola de futebol para jogar quando fosse passar o natal com o seu pai, então depois de juntar o dinheiro nós a compramos, mas seu pai ficou sem dar notícias por um mês inteiro, lembro bem como ficou decepcionado e deixou a bola jogada num canto... no fim das contas não era a bola quem você queria realmente, mas sim a atenção do seu pai. Não é só porque a garota é rica que necessariamente tenha tudo na vida, as vezes ela sente falta das coisas que realmente importam, que é a...
-A amizade, a família e o amor. _Disse, repetindo as palavras que ouvi a vida toda.
-Isso mesmo! _Confirmou, dando um gole no café antes de continuar. -E o grande perigo desse seu trabalho é exatamente o fato de lidar com a vida de uma pessoa, pelo jeito você já se aproximou dela mais do que gostaria, mas precisa se lembrar de que apesar de ganhar dinheiro para estar perto dela, a garota é um ser humano e não faz ideia do porquê você apareceu na vida dela, não a veja apenas como o motivo da sua renda extra.
Aquelas palavras foram pesadas, me atingiram sem aviso prévio, sabia que minha vó sempre falava o que eu precisava ouvir, e não o que eu queria escutar, e era por isso que sempre buscava seus conselhos. De fato, eu não estava vendo Catarina como um ser humano, até estava, mas minha visão era de que ela não se importaria com nada que viesse de mim pois já tinha tudo de que precisava, mas eu estava errado.
-A senhora tem toda razão... eu achei que fosse ser fácil cumprir o meu trabalho contanto que me mantivesse longe dela, mas tem sido cada dia mais difícil, ela é tão... determinada, e desde que conversamos pela primeira vez aparentemente ela decidiu que poderíamos ser amigos, e eu simplesmente não consigo me afastar e nem dizer não a nada que ela peça.
Minha vó me encarou por alguns segundos com uma expressão que não soube decifrar, e então tomou mais um gole de café.
-Se está mesmo criando uma amizade entre vocês, você precisará ser ainda mais cuidadoso com as suas atitudes, a amizade carrega bagagens, e a sinceridade e a lealdade são uma delas, eu sei que não criei neto mentiroso e que nunca foi da sua índole mentir, mas você não está sendo sincero com a moça, e isso pode machucar vocês dois em um futuro próximo.
-É, tem dois dias que venho pensando nisso, mas eu não estou mentindo, estou omitindo, nossa amizade é sincera, eu poderia fazer meu trabalho longe dela, mas gosto da... da companhia, das conversas... é sincero, vó. _Disse por fim, querendo de repente dar por encerrada aquela conversa, acho que estava ficando mais confuso do que antes.
-Tem coisas na vida que fogem do nosso controle, meu filho, e você sabe muito bem que existem coisas infinitamente maiores do que o dinheiro, como sentimentos por exemplo, e esses crescem silenciosamente, até não termos controle sobre ele.
Eu acho que entendia o que ela queria dizer, talvez a minha amizade com Catarina se tornasse mais importante do que eu pensava por hora, mas também sabia que não estava escondendo as coisas dela só para benefício próprio, se estava naquele rolo era pela minha vó, pela saúde dela, e nada nunca seria mais importante que isso.
-Como nem tudo nessa vida está sob nosso controle, deixemos que ela siga seu curso, agora preciso ir, volto no domingo. _Falei, beijando sua testa e indo até o quarto buscar minha mochila.
   No fim das aulas estava sentado próximo ao portão esperando que Catarina fosse embora para que eu pudesse fazer o mesmo, alguns minutos depois a vi passar com um grupinho de meninas, todas riam alto e olhavam uma revista, Catarina tinha uma fisionomia engraçada, não sabia se estava com vontade de rir ou de chorar.
-É o que sempre falo garotas, homem bonito demais ou é gay ou é casado, e o meu no fim das contas gostava mesmo era de barba e bigode. Eu não fico triste por ter sido trocada pelo meu estilista, o que importa para mim é que os dois sejam muito felizes, principalmente o Jon que esteve reprimindo suas vontades por tanto tempo! _Ouvi Catarina dizer, ao se aproximar. -Eu sinto muito por vocês, eu sei que esperavam que eu desse um pé na bunda dele para que tivessem uma chance... mas a vida tem dessas!
Era inacreditável como ela conseguia passar exatamente a imagem do que ela queria, me perguntei se sua vocação não era para as artes cênicas afinal. Vi quando ela notou a minha presença e com alguns beijinhos no rosto se despediu das garotas e veio até mim.
-O que faz feito estátua aí? _Perguntou.
-Observava a sua cena de novela das nove!
-Você viu aquilo? as coitadinhas ficaram arrasadas em saber que Jonas não gostava da "fruta", muito menos da delas! _Ela disse, estendendo a revista para mim. -Vê se a matéria não ficou super convincente!
Li rapidamente as páginas que ela me mostrava e fiquei chocado em como aquela revista comprou a história de Catarina sem nem mesmo procurar saber se era verídica. O que o dinheiro não fazia...
-Você realmente consegue tudo o que quer, não é? _Falei, rindo.
-Quase tudo! _Respondeu, jogando os cabelos acobreados para trás dos ombros. -Agora preciso ir, tenho hora pra chegar na minha mais nova prisão.
Não entendi o que ela quis dizer, mas resolvi ignorar daquela vez.
-Tudo bem, te espero lá no apê!
-Ah foi bom você ter falado, eu estou de... castigo, então não posso sair de casa, será que pode me dar aula lá na mansão só por alguns dias? _Ela perguntou, fazendo beicinho, como uma criança.
-Não sei não, Catarina... talvez não seja uma boa ideia.
-É uma ótima ideia, te espero lá em casa às 15:00! _Ela falou, se aproximando e beijando minha bochecha, em seguida disparou até o carro.
Fiquei por alguns segundos estático, como se aquele simples beijo tivesse sido capaz de acabar com todo meu auto controle. Precisei me obrigar a reagir e afastar qualquer sentimento que eu pensasse estar sentindo por ela naquele momento, a última coisa de que eu precisava era cair nos encantos de Catarina Aires.
   Parei em frente ao portão da mansão, e observei de longe enquanto Catarina cruzava o jardim em minha direção, e em um piscar de olhos saiu de trás da casa um lobo e poe-se a acompanhá-la. Okay, não era um lobo, presumo eu, mas eu nunca tinha visto um cão daquele tamanho na vida. Por um momento eu pensei estar assistindo a uma cena de filme, como se a qualquer momento fadas e glitter fossem ocupar o ambiente em volta dela e de seu lobo de estimação.
-Desculpa a demora, eu esqueci de avisar ao porteiro que você vinha, por isso ele não te deixou entrar sem permissão. _Ela explicou, enquanto um senhor baixinho abria o portão para mim. -Seu Inácio, já sabe que quando ele aparecer pode deixar entrar, ele é fora de moda mas é meu amigo!
O senhor riu sem graça e olhou para mim, talvez para ver minha reação à brincadeira de Catarina, mas por incrível que pareça eu não me importava, na verdade eu achava graça, sabia que estilo e toda essa preocupação com a aparência nunca foram meu forte mesmo. O cachorro dela pulou em mim e se eu não tivesse atento o suficiente certamente teria me derrubado com aquelas patas imensas, afaguei o pêlos dele e ele pareceu adorar.
-Fenrir deixa ele! _Catarina disse. -Ele não tem noção da força que tem, as brincadeiras dele sempre me deixam com hematomas! _Falou rindo, não sei se pelo o que disse ou se era pelo fato de eu estar me esforçando para me manter em pé.
-Não tem problema, simpatizei com ele, gosto de...
-Lobos?! _Ela falou, me interrompendo.
-É... como você sabe? _Indaguei, quando o animal voltou sua atenção a alguma coisa no jardim.
-Sua tatuagem!
-Ah é verdade, as vezes esqueço desse detalhe. _Disse, de fato já faziam cinco anos que eu tinha aquela tatuagem, era quase como parte de mim. -Como é mesmo o nome dele?
-Fenrir.
-Combinou perfeitamente com ele, mas você não parece do tipo que gosta de mitologia...
-Tem tanta coisa que você ainda não sabe sobre mim! Minha inteligência não se resume apenas a design de roupas e a moda da estação! _Brincou, piscando e seguindo a trilha que levava até a escadaria principal.
-Não tenho dúvidas disso! _Respondi, a seguindo.
Entramos na casa e meu queixo caiu. O ambiente era iluminado e amplo, tanto que cheguei a pensar que se sussurrássemos ali faria um eco por toda a casa. A sala tinha um sofá cinza enorme, arrisco dizer que caberiam umas 9 pessoas tranquilamente nele, em frente tinha uma parede com uma televisão que mais parecia uma tela de cinema, e embaixo tinha uma lareira elétrica, coisa que eu só tinha visto em filmes. Por todo o ambiente tinham esculturas, quadros, que eu imaginei serem caríssimos, e várias janelas com cortinas longas circundavam a sala, no canto esquerdo tinha uma escada larga de mármore que eu imaginei que levasse ao segundo andar da casa.
-Cacete, quanto dinheiro vocês tem? _Perguntei, ainda em choque.
-Eu sei lá. _Murmurou ela, dando de ombros.
Enquanto ainda observava detalhes e objetos naquela imensidão, uma senhora de coque e óculos adentrou a sala.
-Tina! esse aqui é o Miguel, aquele amigo que te falei que está me ajudando com os assuntos da empresa. Miguel, essa é a Tina, ela trabalha aqui em casa mas é praticamente da família!
A senhora sorriu e apertou a minha mão, eu fiz o mesmo, sorrindo de volta, ela era encantadora e dava pra ver nos olhos dela o quanto era amável, estava explicado porque Catarina a elogiava tanto nas nossas conversas.
-Catarina esqueceu de me falar como você é bonito!  
-Que isso, o-obrigado! _Gaguejei, nunca soube receber elogios.
-Fique a vontade querido, a casa é sua. _Disse, e depois virou-se para Catarina. -E você mocinha, é para estudar viu, e a casa é grande o suficiente para que não haja necessidade de que estudem no quarto! _Ela falou, piscando para Catarina e saindo em seguida, sem dar a chance dela rebater.
-Gostei dela. _Comentei.
-Ela é incrível quando não está pegando no meu pé! Vamos, podemos estudar lá em cima no antigo escritório do meu pai.
Ela subiu as escadas e eu apenas a segui, chegamos a um corredor que era tão largo que mal podia ser considerado um corredor de fato, conforme caminhávamos passamos por algumas portas, em uma delas Catarina apontou dizendo que era seu quarto e em outra era o quarto de Louise, aparentemente as duas se tratavam quase como irmãs, então Catarina insistiu para que Louise saísse da casinha dos fundos onde morava com a mãe e se mudasse para um dos quartos da casa principal. Ao fim do corredor tinha uma saleta, com uma televisão, um rádio imenso, armário de bebidas e algumas poltronas, em um canto da sala tinha uma porta que quase passava despercebida, e seguindo-a, entramos no escritório. O lugar era razoavelmente espaçoso, tinha um sofá de couro, uma mesa de madeira, cadeira acolchoada e algumas prateleiras cheias de livros, parecia mais simples que o resto da casa, apesar de ter mais alguns quadros de pintores famosos ali também.
-Aqui a gente pode estudar em paz... ninguém entra aqui além de mim e da Roberta, minha madrasta.
-E onde ela está?
-Ih essa daí quase não passa muito tempo aqui, está sempre viajando, ou sozinha ou com as amigas... agora ela está em algum lugar na Espanha, mas mesmo assim tira um tempinho para me infernizar de vez em quando.
-Então é ela quem te obriga a assumir a posse da presidência?
-Ela mesma... eu queria poder negar, afinal, aos 18 anos eu serei dona da minha própria vida, mas no fundo eu sinto que se fizer isso a deixarei magoada, e decepcionarei o meu pai...
-Pensei que não gostasse dela.
-Eu gosto, ela é péssima as vezes? é, mas eu também sou! _Ela disse, rindo e dando de ombros, se sentando no sofá. -Ela amava meu pai, não tinha dúvidas disso, ficou tão mal quanto eu quando ele sumiu, e por algum motivo ela acha que ele odiaria ver meu tio na presidência, e que desejaria que eu tomasse o lugar dele.
-Então seu tio é o presidente interino?
-Sim, pelo o que eu me lembre ele sempre questionou o meu avô do porquê o irmão mais novo, que é o meu pai, deveria ficar com a presidência... eu também nunca entendi, no fim meu avô morreu, meu pai sumiu e eu continuo sem entender porque diabos meu tio não pode ficar com a droga da presidência.
-Vai ver ele não é de confiança. _Comentei.
-Não acredito nisso, ele é meio ambicioso as vezes, eu admito, mas ama as empresas tanto quanto meu avô e meu pai amavam.
-Fala do seu pai sempre no passado... Louise me falou que ele sumiu, mas você fala como se ele tivesse...
-Morrido? é porque é no que eu prefiro acreditar, eu já sinto raiva o suficiente dele, sempre que eu cogito que ele tenha ido embora por livre e espontânea vontade esse pensamento me destrói! _Falou, suspirando e encarando a cadeira vazia atrás da mesa. -E Louise é uma baita de uma fofoqueira, não tinha nada que ficar falando da minha vida por aí.
-Ela não teve culpa, eu meio que perguntei. _Disse, dando de ombros.
Catarina pareceu surpresa por algum motivo, me encarou por alguns segundos e deu um meio sorriso antes de desviar o olhar.
-Não sabia que andava perguntando sobre mim por aí!
-E-eu não pergunto, eu só não queria cometer mais...
Me interrompi por conta da risada dela.
-Eu estou só brincando, Miguel! Gosto de ver você nervoso.
Revirei os olhos, e esperei que ela parasse de rir da minha cara.

Aquela jaqueta de couroOnde histórias criam vida. Descubra agora