MIGUEL

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    Já era quase onze da noite quando entrei em casa, tentei ser o mais cuidadoso possível para não acordar a vovó, mas adivinhem? ela estava sentada no sofá e sua cara era de poucos amigos.
-Miguel Antônio Ferráz. _Droga. Quando ela falava o meu nome todo nunca é um bom sinal. -Você sabe que horas são?
-Hmm, 23:30? _Indaguei, enquanto tirava os sapatos.
-Eu estava preocupada garoto, você não avisou que horas ia chegar!
-Desculpa vó, eu pensei que aos 20 anos eu já poderia chegar em casa depois das 23:00!
-Mas pensou errado, as regras continuam, onde você estava?
Tive que me segurar para não rir, minha vó sempre me trataria como um adolescente irresponsável de quinze anos, e para falar a verdade eu sempre fui bastante responsável para alguém da minha idade.
-Eu estava trabalhando.
-Não sei como chama isso de trabalho, o nome do que você faz é invasão de privacidade e assédio!
-Pelo amor de Deus, não fala uma coisa dessas, eu já me sinto mal por ter que seguir alguém sem que a pessoa saiba mas me sentiria pior se não tivesse dinheiro para comprar todos os seus remédios, vó!
-Eu prefiro que esqueça isso e volte a trabalhar no clube.
-Eu ainda trabalho no clube vó, mas só em alguns sábados, e você percebeu como ficamos menos apertados de grana esse mês?
-Estou feliz por isso, mas não gosto do modo como esse dinheiro tem chegado até você.
-Vó, assim que eu perceber que está passando dos limites ou que não é mais seguro continuar com o trabalho eu mesmo pedirei para sair, fique tranquila.
-Mas você passa o dia inteiro na rua como um sem teto em bairro de gente rica, isso é perigoso.
-Não estou mais ficando na rua, o homem que me contratou está me deixando ficar no apartamento que ele tem, é na rua da mansão da patricinha, e é por isso que cheguei mais tarde hoje, como não estou ficando mais na rua posso ficar por mais algum tempo por lá.
Minha vó não respondeu imediatamente, apenas ficou negando com a cabeça, inconformada.
-Preciso saber que me apoia em relação a isso, dona Marlene.
Ela suspirou profundamente.
-Eu te apoio meu filho, mas prefiro que fique nesse tal apartamento do que volte tarde da noite para casa.
-Não vou deixar a senhora tanto tempo sozinha, eu sempre estou com a minha bicicleta, levo só meia hora de Jardim Blumenau até aqui.
-É tempo demais, não se preocupe comigo, temos bons vizinhos e eu tenho o telefone de todos, não estarei sozinha.
-Vamos fazer assim, eu durmo um dia aqui e um dia lá, e os domingos eu passo inteirinho com a senhora.
-Tudo bem, até porque não aguentaria muito tempo longe! _Ela disse, pegando minha mão e dando um beijinho no dorso.
    Era sábado a tarde e eu saía do clube onde dava aulas natação e ia direto para o apartamento, e para minha sorte não era um problema todo esse tempo sem vigiar Catarina, já que aos sábados eu já tinha notado que ela gostava de acordar mais tarde. Para minha completa surpresa, quando cheguei na portaria do prédio Catarina estava sentada em uma das poltronas com as pernas cruzadas e seu celular na mão.
-Ei, o que faz aqui? _Perguntei, me aproximando.
-Boa tarde pra você também. _Respondeu ela, sorrindo. -Eu preciso falar com você.
Era só o que me faltava, aquela garota realmente não me deixaria fazer meu trabalho em paz.
-Então fala.
-Aqui?
Olhei em volta, alguns moradores passavam por ali e já olhavam de soslaio, presumi que fosse por conhecerem Catarina e por eu ser um completo estranho ali.
-Tudo bem, vamos até o apartamento.
Entramos no elevador em silêncio, e assim permanecemos, ela mexia no celular e ria de alguma coisa na tela. Me peguei a observando por tempo demais, e de repente meu coração já não mantia mais seus batimentos controlados, o que diabos estava acontecendo?
Catarina levantou o olhar da tela e o direcionou até mim, e então eu tive a sensação de que meu coração nem batia mais.
-Não vamos sair? _Ela perguntou.
Fiquei confuso por breves segundos, mas então notei que a porta do elevador tinha aberto e estávamos no meu andar.
-Cla-claro. _Gaguejei, estranhamente nervoso.
Obriguei minhas mãos a pararem de tremer para que eu abrisse a porta, em seguida entramos.
-Aqui é bem bonito e espaçoso, tem o tamanho do meu quarto! _Ela disse, e não soube identificar se estava sendo irônica ou se falava sério.
-Só essa sala tem o tamanho da minha casa lá em vila vitória.
-Isso fica aonde? _Perguntou, claramente a mocinha não conhecia os lugares onde os de classe baixa moravam.
-No bairro Fortaleza, meia hora daqui, de bicicleta, é claro.
-Conheço Fortaleza, mas nunca tinha ouvido falar de vila nenhuma.
-Não me surpreende.
Ela me encarou por alguns segundos, parecendo querer rebater o que eu tinha dito, mas então ela apenas deu de ombros e sentou no sofá.
-Você tem uma bela visão da casa mais bonita da cidade, mais conhecida como minha. _Ela comentou, olhando para a varanda e observando a vista do apartamento.
-Modéstia não é uma palavra muita usada no seu vocabulário, não é? _Perguntei, colocando a mochila no canto do sofá.
-Modéstia? é de comer? _Ironizou ela, rindo.
Segurei o riso, não queria que ela ficasse se achando a engraçadinha.
-Vai, desembucha, o que você quer comigo?
-Ogro! _Ela murmurou, fazendo uma careta. -O negócio é o seguinte, eu estou com um problema, e acredito que possa me ajudar.
-Ah vai! seu único problema é ficar na dúvida de qual carro usar ou de qual cor de batom passar no dia seguinte.
Ela suspirou, levantando e andando pela sala.
-Você não me conhece garoto, eu estaria feliz se meus problemas fossem esses, mas tudo bem, não te culpo por pensar assim... _Disse, olhando os quadros na parede. -Tem muitos quadros desse pintor lá na mansão.
-Eu não faço ideia de quem seja, mas acho que meu amigo deve gostar dessas pinturas sem sentido. _Comentei, esperando que ela falasse logo o que queria.
-Acho que sim... _Falou, virando-se para mim. -Preciso que me passe seus conhecimentos em gestão, administração, seja lá o que você saiba sobre o assunto.
Franzi as sobrancelhas, confuso.
-Como assim? pra quê?
-Como já disse antes eu sou herdeira da empresa da minha família, para minha total infelicidade, e em menos de três meses eu terei que comandar os negócios, mas sou um verdadeiro desastre com tudo relacionado a administração, até mesmo o funcionário da empresa que estava me ajudando desistiu de mim.
-Deixa eu ver se eu entendi, você vai ser a presidente de uma empresa em três meses e não sabe absolutamente nada de gestão empresarial?
Ela fez uma careta, concordando.
-Isso tem tudo para dar errado! _Comentei, rindo.
-Obrigada por me avisar, queridinho, mas eu já sei disso, e é exatamente por isso que estou aqui, pedindo humildemente a sua ajuda.
-E exatamente como faríamos isso?
-Eu tenho alguns horários livres durante a tarde, podemos marcar um dia e uma hora que seja tranquila para os dois.
-Eu basicamente estou disponível todos os dias depois da aula, menos aos sábados de manhã e domingos.
-Perfeito, então posso aparecer aqui durante a tarde? _Perguntou, se abanando e mexendo no controle do ar condicionado.
-Hmm pode, só pede para o porteiro avisar aqui antes. O controle está ruim. _Disse.
-Pode ligar o ar então? eu não alcanço e está um calor horrível aqui. _Resmungou.
-Não seja exagerada, eu prefiro o vento que entra pela varanda, está ótimo.
Ela revirou os olhos e tirou o casaco que usava, bufando.
-Se for se opor ao ar condicionado desse jeito em todas as nossas aulas eu vou preferir que sejam lá em casa.
Enquanto ela reclamava algo em seu braço me chamou atenção, seu braço direito pareciam ter marcas de dedos, e por algum motivo pensar que alguém tinha a segurado tão forte a ponto de marcá-la me fez sentir queimar por dentro.
-O que é isso no seu braço? _Perguntei, sem conseguir me conter.
-Hãm? o que?
-Tem marcas no seu braço, quem fez isso?
-Ah isso... não foi nada, besteira. _Ela disse, parecendo querer desconversar.
-Foi aquele cara? o seu namorado?
Ela suspirou.
-Jon não fez por mal, ele se exaltou um pouco, e eu que tenho a pele sensível demais.
-Eu não gosto dele. _Me ouvi dizer.
-Mas você nem o conhece direito. _Ela disse, rindo.
-Eu sei que nos vimos pouco, mas foi o suficiente. E quando vejo coisas desse tipo... _Me aproximei, levando a mão até o braço dela e passando o dedo devagar sob as marcas arroxeadas. -E depois vejo ele com o braço ao seu redor, como naquele dia, como se ele não tivesse sido responsável por esses hematomas... me desculpe se estou sendo ridículo e me intrometendo na sua vida, mas não acho que isso seja algo que você deva ignorar.
Ela não respondeu imediatamente, ficou alguns segundou encarando o próprio braço e logo que percebi o que eu estava fazendo tirei meus dedos de sua pele rapidamente.
-Agradeço a sua preocupação, mas sei lidar com o Jon, definitivamente isso não vai mais acontecer.
-Fico... feliz em ouvir isso, e mais uma vez, eu não queria me meter, mas não poderia fingir que não vi.
-Está tudo bem, se todas as pessoas pensassem como você poderíamos evitar muitas situações piores...
-Sem dúvidas. _Falei, e me afastei dela, de alguma forma aquele perfume que ela usava era como um imã para mim. -Eu nem perguntei se queria uma água, não deve estar acostumada a ser tão mal servida assim!
-Definitivamente não estou, mas da próxima vez você acerta, agora eu tenho que ir, tenho que estudar para os testes que começam essa semana. _Falou, pegando seu casaco.
-Claro, também preciso estudar, te espero aqui para as aulas particulares.
-Sim, senhor professor. _Ela debochou, dando uma piscadinha e saindo do apartamento.
Assim que Catarina saiu e eu pude pensar sem a influência de sua presença notável, fiquei me perguntando porque aceitei ajudá-la, eu não deveria ficar tão próximo dela, poderia deixar escapar algo que a fizesse descobrir que estou a seguindo, mas simplesmente não consegui dizer não à ela, e estava começando a entender porque todos só faltavam lamber o chão que ela pisava, era inevitável.

Aquela jaqueta de couroOnde histórias criam vida. Descubra agora