Eu estava nervosa com a reunião, e super irritada com Miguel, e qualquer um que passava naquela sala de espera sabia que eu estava a ponto de quebrar todas aquelas mesas de vidro idiotas, daquela empresa idiota. Não sei porque estava tão chateada com o que Miguel tinha me dito, okay, eu odiava quando me falavam que eu tinha a vida perfeita, porque definitivamente não sentia aquilo, sabia dos meus privilégios, e eu mesma sempre buscava manter a pose de quem não se importa de ter sido abandonada pelo pai no auge da adolescencia, quando mais precisava dele, mas ouvir aquelas palavras vindas do Miguel tiveram uma força estranha, como se eu não esperasse aquilo dele, como se por algum motivo ele fosse obrigado a enxergar como eu me sentia de verdade, como se em duas semanas ele necessariamente tivesse que me conhecer o suficiente para ver que nem tudo na minha vida era incrível como ele e todos ao meu redor achavam. Meu tio apareceu na porta da diretoria e pediu que aguardasse mais alguns minutos que logo ele iniciaria a reunião com os coordenadores da empresa, então aproveitei para checar as minhas mensagens, e tinha um áudio de um número desconhecido. Entrei na conversa e abri a foto de perfil. Na foto Miguel estava em uma piscina e tinham algumas crianças em volta dele, me perguntei qual o sentido daquela foto, e pensei em perguntar, mas então lembrei que nunca mais queria falar com ele outra vez.
"-Primeiramente, desculpa pela minha grosseria, eu não deveria ter sido estúpido daquele jeito com você, eu estava nervoso com o teste, ainda estou, mas não tinha o direito de descontar meus problemas em você.
Gravei um vídeo rapidinho aqui no banheiro do colégio e tentei ser o mais didático possível em explicar aquela planilha que me pediu, espero que consiga entender. Você vai arrasar na reunião."
Revirei os olhos ao fim do aúdio, eu queria ainda sentir raiva dele, mas simplesmente tinha evaporado, e começou a soar perturbadora a forma como ele conseguia controlar meus sentimentos, ninguém nunca tinha feito isso, nem mesmo eu. Apesar de tê-lo desculpado - mesmo lutando muito contra - eu obviamente não responderia aquela mensagem, ele não precisava saber como tinha sido fácil me fazer perdoa-lo. Mas abri o vídeo que ele me enviou abaixo da mensagem de voz, e apesar de bem explicado eu precisei vê-lo pelo menos umas três vezes até entender o básico para a reunião.
A reunião durou quase duas horas intermináveis, na metade dela eu já estava apoiada na mesa, encarando meu tio com cara de paisagem. Ao fim da reunião recebi alguns elogios dos coordenadores, o que era um marco para mim, já que nas outras reuniões eles nem se davam ao trabalho de falar comigo, apenas me encaravam com uma expressão de "perderei o emprego porque essa patricinha burra irá falir a empresa".
-Tem conversado com a sua madrasta? _Meu tio perguntou, enquanto eu guardava minha agenda na mochila.
-Conversamos há alguns dias atrás, graças a ela eu não passei mais uma reunião passando vergonha, ela quase que me obrigou a procurar um professor que me fizesse entender toda essa palhaçada.
Vi meu tio suspirar pesadamente e me pareceu incomodado com o que eu tinha dito, talvez fosse difícil me ouvir falar dos negócios com tanto desprezo quando ele sempre tinha dado tudo de si pela empresa após o sumiço do meu pai.
-Devo admitir que teve certo progresso, apesar de ainda achar que não está apta ao cargo.
-Qualquer um com o mínimo de noção pode ver que eu não nasci pra isso.
-Não entendo essa obcessão que a Roberta tem em fazê-la ser a nova presidente, está nítido que você não faz questão alguma, eu poderia ficar no cargo por quanto tempo fosse necessário até que você decidisse ocupá-lo.
-Por um lado eu a entendo, ela quer satisfazer o desejo do meu pai, e se eu não ocupar o cargo ela sentirá como se estivesse traindo ele ou o decepcionando, e no fundo eu também sentiria.
-Não vejo o porquê, ele foi embora, se nem o próprio Jonathan queria mais a presidência porque obrigar você a ficar com ela?
-Também me pergunto isso, mas são questões que aparentemente nunca serão respondidas, e Roberta tem tanta certeza quando diz que não quer que... _Me silenciei antes de terminar o que dizia, não queria que meu tio soubesse que minha madrasta não confiava nele e queria ele fora da presidência. -Quando diz que não quer deixar de fazer a vontade do meu pai, eu não poderia me negar e tirá-la a última coisa que ainda a liga a ele.
-Bom, para mim isso tudo é uma grande bobagem, vocês dão muito ibope para o que o Jonathan queria, não acho que ele mereça tudo isso diante do que fez com vocês duas! _Ele falou, e parecia mais irritado que antes. -Mas que seja, se eu fosse você continuava firme em suas metas, sei o quanto gostaria de ser uma estilista de sucesso, faça Roberta entender isso e quem sabe ela não mudará de ideia?!
-Pode ter certeza de que deixarei minhas escolhas claras até o último minuto do dia da minha posse presidencial.
-Fico feliz em ouvir isso querida, vou ajudar no que eu puder, você é tão obstinada quanto seu tio aqui, não desiste enquanto não consegue o que quer. _Disse, segurando meu queixo e me fitando incisivamente.
-Agora eu preciso ir, semana de testes e trabalhos finais na escola, sabe como é.
-Imagino, então vá querida, não te prenderei mais aqui, uma boa tarde! _Falou, se afastando e sentando-se na cadeira presidencial.
Apenas acenei e segui para fora da sala, ansiosa por chegar em casa e me ver livre daquele lugar frio e monótono que logo eu chamaria de trabalho.
Quando o carro se aproximava do portão de casa vi Miguel encostado no muro, distraído com as plantas fixas na parede, mas assim que o portão automático se abriu preparando-se para a nossa chegada, ele levou um pequeno susto e olhou na direção do carro.
-Paulo, pode me deixar aqui no portão por favor, eu vou falar com um amigo. _Disse para o motorista, enquanto abria a porta. -Obrigada!
Desci do carro e fiquei parada o encarando, sem entender o que ele fazia ali na frente da minha casa. Notei quando ele deu um longo suspiro antes de se aproximar, como se o que estava prestes a fazer fosser ser muito difícil.
-Eu estava te esperando... _Ele murmurou.
-Por que exatamente? _Perguntei, direta, não queria que ele pensasse que estava tudo bem entre a gente, porque não estava, ele tinha me magoado no colégio, e por mais que tivesse perdoado, eu ainda tinha o meu orgulho.
-Você não respondeu a mensagem que eu te mandei me desculpando por hoje cedo.
-Ah era isso... eu estava ocupada e preocupada pensando na reunião, não tive tempo para seus arrependimentos. _Disse, deixando claro que eu estava apenas tentando repetir o modo como ele me tratou mais cedo, e acho que ele percebeu porque deu uma breve risada.
-Okay, não pensei que fosse ser tão difícil conseguir que aceitasse minhas desculpas, e já foi difícil o suficiente ter que aceitar que eu tinha errado com você, jura que eu preciso implorar pelo seu perdão?
Fingir pensar no assunto, e então eu encarei os meus pés e dei um sorriso.
-Nem adianta, princesinha, eu não vou beijar os seus pés. _Ouvi ele dizer, antes mesmo que eu pudesse fazer a minha proposta.
-Então não quer ser tão perdoado assim! _Falei, era óbvio que eu estava brincando, mas gostei de atuar por alguns instantes.
Enquanto virava as costas, senti a mão dele de leve no meu braço, não sei porque mas aquele gesto fez minha respiração desregular.
-Qual é Catarina, me desculpa vai, não é fácil a posição em que eu estou, odeio admitir meus erros, mas tenho trabalhado nisso, se você pudesse facilitar as coisas...
Suspirei profundamente, antes de fazer uma careta e assentir com a cabeça.
-Está tudo bem, mas me promete que não vai mais falar aquelas coisas, pode parecer uma criancice minha, mas me machucaram.
-Não é criancice sua, na verdade eu quem fui infantil, não pensei antes de falar, e você sempre soa tão...
-Desastrosa? _Eu rir, amargamente.
-Durona, como uma muralha, daquelas que ninguém derruba... não pensei que minhas palavras pudessem ferir você da forma como aconteceu.
Fiquei em silêncio por alguns instantes, eu nunca tinha me sentido como uma muralha, na verdade na maior parte do tempo sentia-me prestes a desmosronar e lutando para que não vissem isso, e ouvi-lo dizer que me achava forte quase me fez acreditar naquilo.
-Bom, de qualquer forma, não foi nada, suas palavras causaram apenas uma pequena rachadura na minha muralha, nada que um reparo chamado sorvete não conserte! _Brinquei, por fim.
Ele riu, e fez uma expressão surpresa.
-Sorvete? não sabia que você tomava essas coisas cheias de gordura hidrogenada e açúcar! _Falou, de forma irônica e exagerada.
-Só quando partem meu coração, então por favor não faça isso de novo, sorvete light é extremamente caro!
-Não consigo acreditar em como você é ridícula! _Falou, rindo. -Mas eu prometo não causar mais rachadura nenhuma!
-Minha nutricionista agradece.
-E como foi na reunião? meu vídeo te ajudou?
-Me ajudou demais, fiquei vendo e revendo ele dentro do banheiro até a hora da reunião, acho que me saí bem, pelo menos os coordenadores não me olharam estranho dessa vez.
-Eles devem ficar apavorados com a ideia de que se torne chefe deles, mas vou ajudar você a fazê-los se arrepender de duvidarem da sua capacidade para os negócios.
Eu ri, aquilo só podia ser piada.
-Miguel, até a pessoa mais burra do mundo se acharia mais apta ao cargo do que eu!
-Agora você quem está subestimando a minha capacidade de ensinar.
-E você está superestimando a minha capacidade de aprender.
Ele fez uma careta, e sacudiu a cabeça.
-Veremos quem está enganado aqui... _Disse. -Aula amanhã depois do almoço?
-Pode ser, amanhã sai a matéria sobre o Jonas, então estarei sorridente e bela outra vez, fique tranquilo que não aparecerei lá fazendo cosplay de zumbi de novo!
-Ufa, pelo menos de susto eu não morro. _Ironizou. -Vou indo então, deve estar cansada.
-Pior que estou, preciso da minha hidromassagem urgente!
-E eu do meu chuveiro que queimou e só tem água fria agora! _Falou, colocando a mão na testa e fingindo preocupação.
Engraçadinho.
Depois de me despedir de Miguel, segui direto para o meu quarto, realmente o dia mal tinha terminado e eu já estava esgotada mentalmente. Estava relaxando na banheira quando ouvi alguém bater na porta do banheiro.
-Entra! _Disse, sabendo que só poderia ser Louise ou Tina, já que eram as únicas autorizadas a entrar no meu quarto sem bater.
Estiquei o pescoço e vi Tina parada na porta com uma fisionomia estranha.
-O que foi? _Perguntei.
-Roberta acabou de ligar. _Respondeu, intensificando sua expressão quase indecifrável.
-Que chata, cadê o telefone? _Murmurei.
-Ela não queria falar com você, apenas comigo...
-Como assim, Tina? o que ela queria afinal? _Questionei, impaciente.
-Parece que ela ligou para o senhor Félix para saber sobre a reunião que tiveram hoje, e ele disse que você precisa melhorar muito e que não está levando os assuntos da empresa a sério, que não está apta para o cargo.
Ao ouvir aquilo me sentei rapidamente, jogando espuma e água para fora da banheira.
-Meu tio disse isso? ele ficou louco? eu fui melhor do que jamais pensei que seria nessa reunião! _Falei, quase sem ar de tamanha indignação. -Nós conversamos antes de eu sair da empresa, ele não me disse nada sobre mal desempenho, pelo contrário, ficou até surpreso.
-Eu fiquei confusa quando a senhora Roberta falou isso ao telefone, você tinha chegado tão confiante da reunião!
-Amanhã mesmo eu vou tirar essa história a limpo com meu tio, ele deve ter enlouquecido! _Falei, me levantando e puxando a toalha.
-Então, tem mais uma coisinha... _Tina começou a falar, me ajudando a secar o chão que eu tinha molhado. -Ela mandou que eu a colocasse de castigo, disse que não era pra você sair de casa até a próxima reunião, que você vai usar todo o seu tempo para se dedicar aos assuntos administrativos, então sua rotina será de casa para o colégio, e do colégio para casa.
Fiquei encarando Tina por um instante, sem conseguir acreditar no que ela estava me dizendo. Quis esganar Roberta e meu tio Félix. Quis sumir, deixar de ser uma Aires. Quis a minha mãe de volta. Quis o meu pai de volta, afinal, a culpa era toda dele, se não tivesse me deixado nada disso estaria acontecendo, ele ainda seria um empresário de prestígio, e só saíria da presidência aposentado, e eu seria uma grande estilista. Naquele momento odiei a minha vida mais que tudo.
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Aquela jaqueta de couro
RomanceCatarina Aires mora em Blumenau desde que nasceu, é herdeira das empresas de sua família, escrava de uma posição que não quer ocupar e correndo um risco que desconhece, a jovem impetuosa será salva por um motoqueiro misterioso, o que ela não sabe é...