MIGUEL

35 1 0
                                    

  Assim que abri a porta, logo notei que Catarina estava diferente, começando pela roupa, desde que a conhecera eu não tinha visto ela usar nada menos do que "extravagante e ousado", mas agora Catarina vestia um vestido simples demais para ela, e não era apenas suas roupas que não faziam jus a ela naquele dia, seu rosto também estava diferente.
Seus olhos pareciam levemente inchados, o nariz avermelhado e as bochechas também coradas, como se tivesse chorando há pouco. Não sabia se deveria comentar, não estava a fim de receber uma resposta grosseira, que certamente ela daria.
-Você... você está bem? _E por fim eu perguntei.
-Na medida do possível... _Ela comentou, jogando o celular no sofá. -Por quê? _Virou-se pra mim, com o rosto confuso.
-É que parece estranha, como se tivesse chorado litros!
Ela aproximou-se da mesinha de centro, que era de vidro espelhado e encarou-se de perto.
-Dior mío! _Disse alto, e eu não fazia ideia do que aquilo significava. -Foi por isso que seu Roberto perguntou se eu me sentia bem... Miguel, me diz que é secretamente uma drag queen e que tem maquiagem escondida pela casa! _Falou, com a mão tapando o rosto, como se aquilo fosse me fazer esquecer que a tinha visto sem maquiagem.
Eu ri da reação dela, não sabia se a rotulava como uma boba ou como alguém superficial, mas olhando-a naquele momento eu decidi que ela estava mais pra boba mesmo.
-Não seja boba, você ainda está lin... _Me interrompi, e observei quando ela ergueu as sobrancelhas, me encarando.
-Por que interrompeu o que dizia?
-Tenho certeza que ouve o que eu ia dizer com muita frequência, não fará falta que eu diga. _Brinquei.
-E o que exatamente você ia dizer? _Notei que ela estava instigando para que eu dissesse.
-Que continua linda, mesmo com o nariz de rena. _Comentei, indo até a cozinha. -Quer alguma coisa pra beber?
-A bebida mais forte que você tiver aí! _Ela murmurou, ajeitando o cabelo como se aquilo fosse fazê-la ficar mais bonita. E droga, de fato fez.
-Não sei se quero ensinar gestão para alguém bêbada, nem se tenho capacidade pra isso.
Ela fez uma careta, e pegou o copo de água que eu a ofereci.
-Vou até o quarto buscar o material para começarmos logo essa aula, antes que você roube todo o meu vinho. _Falei, indicando um armário cheio de vinhos que eu jamais tocaria, afinal, não eram meus.
Eu alugava alguns livros da biblioteca da cidade para estudar, e como a maioria eram sobre administração básica decidi que seriam suficientes para passar o raso conhecimento que eu tinha sobre o assunto.
-Pode postar a matéria amanhã mesmo, Romain te confirmará tudo o que te disse sobre o Jonas! Certifique-se de que a matéria soe mais que convincente possível, eu quero que aquele dementador deseje nunca ter cruzado o meu caminho! _Ouvi Catarina falar ao telefone, e fiquei confuso e surpreso com o que tinha acabado de ouvir. Jonas não era o namorado idiota dela? porque exatamente ela estaria tentando prejudicá-lo?
Enquanto me questionava e ponderava se seria uma boa ideia questioná-la a respeito, ela se virou e suspirou, jogando o celular de volta no sofá.
-Está tudo bem entre você e o seu namoradinho temperamental? _Perguntei, eu realmente não tinha controle sobre mim.
-Não, mas vai ficar assim que eu fazê-lo se arrepender amargamente por ter me usado! _Disse, jogando os cabelos ruivos para trás do ombro.
-Te usado? _Questionei, ainda confuso.
-Amanhã as pessoas dessa cidade, incluindo você, saberão uma historinha a respeito do Jon. Mas... acho que posso confiar em você e contar o que de fato aconteceu, certo?
-Hmm, certo. _Murmurei, colocando os livros em cima da mesinha que ficava no canto da sala e me sentando em uma das cadeiras.
-O imbecil só estava comigo para alavancar a carreira dele, porque ele é tão inútil que não seria capaz de fazer isso sozinho... usou meu nome e minha influência na cidade pra colocar o nome dele nas revistas e nas mídias.
-Que grande babaca! _Falei, surpreso, mas nem tanto, aquele tipo de coisa era típico de gente rica e inconsequente. -E como você descobriu?
-Ele me viu conversando com você na escola e teve uma crise de ciúmes, mais uma né, e terminou comigo, começou a jogar na minha cara o planinho dele.
-Isso é nojento, mas pela conversa que ouvi agora eu imagino que não vá deixar por isso mesmo, não é?
-De jeito nenhum, amanhã sairá na primeira página da revista FocusB que Jonas Reis se encontra secretamente com o estilista da senhorita Catarina Aires, e além de ter meu pequeno depoimento sobre a descoberta, ainda terá meu fiel estilista confirmando tudo! Não era fama que ele queria? pois ele terá!
-Você é louca! _Disse, sem conseguir acreditar no plano dela.
-Você não faz ideia do quanto! _Ela sorriu, quase diabólica, se não fosse pelo seu maldito rosto de anjo!
-Agora faz sentido a forma como você estava estranha quando chegou... imagino como se sentiu péssima. _Tentei reconfortá-la de alguma forma, era notório que mesmo tentando esconder e demonstrar superioridade, ela estava magoada com aquilo.
-É, fiquei um pouco ressentida sim, mas ficaria surpreso se soubesse como isso é comum na minha vida... eu nunca sei se as pessoas se interessam por mim pelo o que sou, pela minha aparência ou pelo o que eu tenho, já perdi a conta de quantas vezes me enganei com as intenções dos outros.
-Aparentemente seu mundo também tem grandes problemas! _Tentei não soar irônico, mas acho que foi inevitável, por sorte ela não pareceu notar.
-Eu sei que parece que sou uma doida, e que fico te perseguindo, mas é que quando conversamos de fato pela primeira vez notei que você nem sequer sabia quem eu era, e que não ficava me bajulando como todos os outros, a verdade é que eu só queria uma amizade... sincera, pra variar. _Ela disse, sem me olhar nos olhos, e se sentando na cadeira a minha frente.
Senti uma pontada no peito, e um sentimento de culpa me assolou pela primeira vez desde que comecei a vigiá-la, de fato eu não sabia quem ela era antes de ser contratado, e também não me importava com nada que ela tinha, mas a real é que eu sentia como se estivesse a enganando, assim como todas aquelas pessoas que ela havia citado.
Sem saber o que falar, apenas pigarreei e abri um dos livros, buscando mudar o assunto e focar no que importava.
-Trouxe algum caderno para fazer anotações? _Perguntei.
-Não serve o bloco de notas do meu celular? _Ela indagou, dando um sorrisinho cínico.
-Não madame... _Disse, arrancando uma folha do meu caderno e colocando na mesa. -Por hoje você faz anotações nessa folha, mas nos outros dias espero que traga um caderno, não vou gastar minhas preciosas folhas com você!
-Mão de vaca! _Ela cantarolou, puxando um lápis do meu estojo.
  Catarina tinha se esforçado para entender as primeiras informações que eu tinha passado na aula, empenhou-se tanto que só foi embora quando o sol se pôs. Após ligar e falar com a vovó, fiquei mais tranquilo em saber que ela estava bem e que até andava chamando amigas para jogar cartas com ela, aquilo me deixou com a consciência menos pesada de estar cuidando de uma adolescente ao invés de estar ao lado da minha vó. Antes de ir me deitar fui até a varanda para fechar a porta, e fiquei estático ao ver uma luz vinda do quintal da mansão de Catarina. Era o chafariz. Nunca tinha visto ele funcionando, parecia ainda maior, a luz espelhava na água e parecia uma explosão de cores. Olhei para a casa com atenção, desde que comecei a vigiar aquela garota eu não tinha parado para perceber que a riqueza que ela tinha ia além das minhas expectativas, quando o homem que me recrutou disse que a família era rica eu não imaginei que fosse tanto.
O terreno ocupava boa parte da rua, o jardim era vasto e eu já tinha notado pelo menos dois jardineiros trabalhando durante o dia, tinham alguns bancos de madeira e aquele chafariz gigante perfeitamente esculpido. Antes de chegar na casa tinha uma grande escadaria, e logo após vinha uma varanda comprida que parecia circundar a casa, onde eu já tinha visto Catarina passar a tarde algumas vezes. Fiquei imaginando como seria lá dentro, e o que teria nos fundos da casa, talvez um dos parques da Disney? eu não me surpreenderia.
Desde que Catarina saiu daqui hoje fiquei me sentindo mal por estar escondendo o que eu realmente estava fazendo ao entrar na vida dela, não tinha nada a ver com quem ela era, nem com o que ela tinha, eu só precisava do dinheiro, estava me sentindo péssimo, como se tivesse a usando de alguma forma, mas agora olhando aquela casa, aqueles três carros em sua garagem, imaginando como ela nunca passou necessidade de nada, me senti um pouco melhor, afinal, ela era linda, rica e logo seria uma empresária, de modo algum ela se importaria com o fato de eu estar próximo dela só pelo trabalho, talvez ela também só estivesse me usando para ser uma boa empresária afinal.
  No dia seguinte tive que apresentar dois trabalhos, e antes do fim da aula teria um teste, mal tive tempo de me certificar se Catarina já estava no colégio, precisava me esforçar infinitamente mais que os outros alunos do supletivo, já que tinha entrado atrasado na turma, e definitivamente não queria perder aquela oportunidade de terminar o ensino médio. Na hora do intervalo fui para o pátio e me sentei no gramado cheio de folhas com anotações sobre o assunto do meu teste, estava uma pilha de nervos, precisava de uma boa nota ou não poderia fazer a prova final.
-Oi. _Ouvi a voz de Catarina, e quando levantei os olhos lá estava ela ao lado de sua amiga de cabelo azul.
Que ótimo!
-E aí, beleza? _Perguntei, só por educação, tudo que mais queria era voltar meu foco ao estudo.
-Beleza! _Ela falou, e após um milésimo de segundo eu pensei que ela se calaria e iria embora, mas não... -Ah, essa aqui é minha amiga, Louise, Lise esse é o Miguel!
-Prazer. _Disse.
-O prazer é meu, Catarina fala mu... Aí! _Ouvi a garota reclamar ao Catarina dar uma cotovelada nela.
-Miguel, eu não quero atrapalhar você, mas é que eu tenho uma reunião na empresa hoje e preciso me sair bem ou a minha madrasta vai me comer viva, mas fiquei com dúvidas sobre aquela última planilha que me passou ontem, pode repassá-la comigo rapidinho?
-Olha Catarina, eu posso fazer isso depois da minha aula? eu meio que estou tentando estudar agora.
-Mas a reunião é em meia hora! _Ela falou, suspirando. -Nem é tanto tempo assim, em 10 minutos você me explica e eu te deixo em paz!
-Em 10 minutos eu entro para fazer um teste importante!
-Tenho certeza que já sabe tudo desse teste aí, qual é Miguel, é importante pra mim essa reunião!
Quando dei por mim a paciência se esgotou, ela era mimada e estava nítido que tinha tudo na hora que queria, não queria ser grosseiro, mas ela não desistiria caso eu não fosse incisivo.
-Eu sei que sempre fazem suas vontades prontamente, mas eu não sou um dos seus seguidores, não tenho a vida fácil e perfeita que você tem, senhorita Aires! _Ironizei. -Esse teste é muito importante e não posso atendê-la agora, madame, mas se quiser esperar em 1 hora eu encontro com você e te ajudo!
Assim que vi o olhar dela surpreso e talvez... aquilo era decepção? eu não soube dizer, mas me arrependi da forma como falei.
-Idiota, agradeço os seus serviços, mas não os quero mais, acho que posso me virar sozinha na minha vidinha perfeita! Foi um prazer, conhecê-lo! _Ela falou, e simplesmente se virou e saiu apressada em direção ao carro que a esperava do lado de fora do colégio.
-Que imbecil, você não deveria ter falado daquele jeito!
Agora a amiga dela ia me fuzilar também. Ótimo.
-Desculpa se sua amiga não está acostumada a receber um não ou a ter imprevistos na vida.
-Você não sabe nada da vida dela, que está longe de ser "perfeita", eu sei que parece que ela vive um conto de fadas, eu também pensava isso antes de conhecê-la melhor, mas Catarina já passou por muita coisa, os problemas dela apenas são diferentes do seu, mas ainda são problemas!
-Claro que sim, provavelmente ela deve ter perdido algum sapato caro dentro de sua mansão gigante, ou um par de brincos de pérolas no banheiro!
-Primeiro, ela odeia pérolas. Segundo, ela perdeu muito mais que isso, um pai e uma mãe está bom pra você?
Pela primeira vez naquele dia tinha ficado sem palavras. Eu sabia que Catarina tinha uma madrasta, mas até aí nada me esclarecia que ela não tinha os pais, ela sabia passar com maestria uma imagem de perfeição.
-Eu... não sabia disso, os pais dela morreram? _Perguntei, odiaria dar mais um deslize daquele, não que eu fosse ter a chance já que aparentemente Catarina nunca mais olharia na minha cara.
-A mãe morreu assim que ela nasceu, e o pai... sumiu quando ela tinha 14 anos, em um belo dia ele simplesmente saiu e não voltou mais.
-Sem nenhuma notícia ou explicação? _Indaguei, chocado com aquilo, no final das contas não era só eu que tinha um grande azar com pai ausente.
-Nada, simplesmente desapareceu.
-Eu sinto muito por ter falado aquilo pra ela, eu não devia julgar sua vida só pelo pouco que conheci.
-Acho melhor que se desculpe com ela, foi a ela que você magoou.
-Claro, eu farei isso... _Murmurei, profundamente chateado comigo mesmo.
Queria poder consertar a idiotice que tinha feito naquele instante, mas em dois minutos meu teste começaria, não tinha nada que eu pudesse fazer a não ser esperar, a menos que...
-Ei, Louise! _Chamei a garota, que já estava voltando para dentro da escola.
Ela apenas virou-se para mim, aguardando.
-Você poderia me passar o número dela?
-Ela vai me matar por isso, mas se for para consertar as coisas, tudo bem... de alguma forma ela parece se importar com o novo amigo! _Ela falou fazendo uma careta e mexendo no celular. -Aqui.
Anotei rapidamente o número na minha lista de contatos, e após me despedir de Louise, corri para o banheiro e abri o chat de mensagens. Eu deveria simplesmente esquecer aquilo, afinal, quanto mais distante Catarina estivesse de mim, melhor, mas por algum motivo eu não tinha mais tanta certeza disso.

Aquela jaqueta de couroOnde histórias criam vida. Descubra agora