Os dias no hospital eram longos e monótonos, como se não existisse mais dias e noites, eu só sabia se era o sol ou a lua que estava no céu porque de vez em quando meu pai me obrigava a ir respirar um ar fora do CTI.
A vó de Miguel tinha chegado no dia seguinte após o acidente, ela chegou muito nervosa e precisou ser acompanhada de perto por um médico, já que desmaiou assim que viu o neto preso a fios e uma máscara de oxigênio.
No terceiro dia no hospital, meu pai decidiu que seria melhor transferir Miguel para um hospital em Blumenau, principalmente porque Dona Marlene não tinha como ficar indo e voltando para um hospital tão longe da casa dela.
No primeiro e no segundo dia sentada na sala de espera daquele novo hospital, esbocei vestidos em meu caderno na tentativa de relaxar, mas no quarto dia já não tinha mais folhas disponíveis e minha criatividade parecia ter ido para longe, assim como minhas esperanças de que Miguel fosse acordar. Deixava Dona Marlene passar mais tempo com ele, mas pelo menos por três horas do dia eu fazia questão de ficar no lugar dela. Eu já tinha criado uma rotina, de manhã eu ia em casa tomar banho e comer alguma coisa que prestasse, já que a comida que serviam no hospital era um afronte, depois voltava ao hospital para que a vó de Miguel pudesse ir em casa cuidar das próprias necessidades. Ficava com ele boa parte da tarde, contando sobre as novas coleções do mundo da moda, sobre como a volta do meu pai tinha colocado tudo nos eixos - ou quase tudo - contei também que seu amigo Léo tinha aparecido para vistá-lo, que Louise tinha mandado um cartão com coisas fofinhas escritas, e que eu tinha conhecido a mãe dele e o irmãzinho, que também tinham ido vê-lo. Mas na maioria dos nossos momentos entre aquelas quatro paredes vazias, apenas segurava sua mão fria, e chorava, imaginando como antes a mão dele costumava esquentar a minha e não o contrário. E assim se passaram mais sete torturantes dias, pelo hospital já víamos as decorações de Natal enfeitarem as portas, mas a verdade é que aos meus olhos a atmosfera mórbida ainda estava presente, sugando todo o meu espírito natalino.
Era segunda de manhã, eu estava me arrumando para ir ao hospital trocar de lugar com Dona Marlene, o dia estava frio e nublado exatamente como o meu humor dos últimos dias. Nos primeiros dias após o acidente eu era a mais otimista de todos nós, toda manhã assim que abria os olhos repetia para o quarto vazio que naquele dia Miguel acordaria, mas depois de recorrentes decepções ficou difícil manter a esperança.
-Droga! _Resmunguei jogando meu rímel na lata do lixo, e secando uma lágrima solitária que descia pelo meu rosto sem que eu tivesse qualquer controle sobre ela.
-Cats? _Louise murmurou, abrindo a porta. -Está tudo bem?
-O que você acha? preciso de um rímel novo!
-Que carinha é essa? estava chorando?
Não respondi, se abrisse a boca provavelmente iria irromper em lágrimas mais uma vez em meio há milhares.
-Amiga... _Ela se aproximou segurando meu queixo e me fazendo encará-la. -Vai ficar tudo bem, Miguel é forte, vai ver que quando menos esperarmos ele já vai estar adentrando essa casa com aqueles sapatos surrados e regatas velhas de bandas desconhecidas.
-Não acredito mais nisso. _Sussurrei. -Agora me deixa sozinha, estou atrasada.
-Cats, eu só quero ajudar...
-Eu não preciso de ajuda, preciso de um rímel! _Falei, e como se a palavra rímel tivesse um superpoder emotivo, comecei a chorar como um bebê.
Louise me abraçou forte e me deixou chorar por alguns minutos, e quando eu já não tinha nem mais lágrimas e os soluços começaram a diminuir, ela me soltou e sorriu.
-Vou pegar meu rímel pra você, volto logo. _Disse, e saiu do quarto.
Eu tinha sorte. Apesar de tudo.
Já faziam algumas horas desde que eu tinha trocado de lugar com a vó de Miguel. Naquele dia meu pai tinha saído da empresa e ido até o hospital fazer uma visita, ele entrou no cti para ver como Miguel estava e depois saiu porque tinha combinado de ir buscar a vó dele em casa e trazê-la, já que tinha alguns dias que sua saúde não andava das melhores. Tinha acabado de tomar um café quando entrei no leito e observei o rosto sereno de Miguel por alguns segundos, então puxei a cadeira e me sentei ao lado da cama, atenta a cada respiração, a cada movimento mínimo vindo de seu peito que me lembrava de que ele estava vivo.
-Queria que pudesse ver como nossas famílias estão unidas e se dando bem, acho que nem se quiser você vai ter como se livrar de mim. Sua vó me ama e meu pai está super apegado a ela também, devia ver... os dois tomam café na lanchonete do hospital quase todos os dias. _Pausei, minha voz embargada na última frase, eu nunca conseguia trocar mais que duas palavras sem chorar. -Preciso de você, sabe que eu odeio ser ignorada, tem sido frustrante falar sozinha...
Permiti que as lágrimas fluíssem, enquanto me inclinei e deitei a cabeça ao lado do corpo dele, sem soltar sua mão.
Despertei do breve cochilo com o meu celular vibrando na minha bolsa, era meu pai dizendo que a avó de Miguel já estava lá para me render, o que me deixou um pouco frustrada apesar de eu estar com a minha coluna moída e com o estômago roncando. Dei um beijo no rosto de Miguel e antes de sair vi que a tv estava com a imagem granulada, e me perguntei se aquele hospital não tinha dinheiro para pequenos reparos, o que imaginei impossível levando em conta o preço que era apenas uma consulta naquele lugar. Comecei a tentar ajeitá-la, podia parecer patético já que Miguel nem mesmo estava acordado para assisti-la, mas essa era a minha pequena dose de esperança do dia, deixar a tv ligada para que caso ele acordasse não se sentisse esquecido ali.
-Você vai... _Dei uma batida na lateral. -Funcionar... sua tv idiota... merda! _E mais uma batida nada cuidadosa.
-Isso aqui é um hospício?
Essa voz. Senti meu corpo formigar e meu coração bater, ou melhor, voltar a bater, a sensação que eu tinha é que ele também estava em coma todo esse tempo. Me virei devagar, quase que com medo de olhar e ver que era apenas mais um dos meus devaneios. Mas então lá estava os olhos verdes, confusos e atentos me observando.
E então, adivinhem? eu comecei a chorar. A primeira lágrima correu, mas eu não estava triste. O alívio transbordou, me dominou por inteira e precisei de um momento para que não desmaiasse ali mesmo. Coloquei a mão no rosto enquanto me permitia desaguar, enquanto repetia para o meu cérebro que Miguel realmente estava ali, me observando. Lúcido. Desperto. Vivo.
-Isso não é justo... eu não consigo sair daqui e te abraçar, seja lá por qual for o motivo do seu choro. _E então mais uma vez a voz rouca e levemente enfraquecida tomou todo o ambiente, incluindo cada célula do meu corpo trêmulo.
Levantei a cabeça, e o observei, ele estava com uma expressão engraçada, as sobrancelhas negras franzidas, enquanto me olhava e segurava o respirador longe do rosto. Esfreguei as mãos na bochecha, limpando as lágrimas que continuavam a descer uma após a outra.
-Eu acho que devia chamar alguma enfermeira agora, mas... eu não quero parar de olhar pra você. _Disse, me aproximando devagar, como se o menor dos erros pudesse me fazer perdê-lo outra vez.
-Eu não faço ideia do que está acontecendo, mas também não quero parar de olhar pra você. _Ele fez uma pausa, engolindo com dificuldade. -É como se... não te visse há tempos...
Observei a mão dele se estender em busca da minha, e assim que senti seu toque eu me joguei e envolvi o corpo dele em um abraço.
-Obrigada por ter voltado, eu amo você.
-Eu também te amo, mas você está machucando meu braço. _Ele disse rindo, e eu me afastei na hora ao notar que estava apertando a ferida de bala.
-Oh me desculpe!
Ele não respondeu, apenas parou de rir e observou o curativo no braço por um tempo, parecendo confuso.
-Eu... vou chamar o médico, e avisar a sua vó, ela vai ficar feliz em saber que você acordou.
-Catarina! _Ouvi ele chamar e antes que eu saísse, me virei. -Eu não estou conseguindo juntar os acontecimentos na minha cabeça, mas as últimas cenas não me parecem nada boas, só preciso saber se está tudo bem?!
Não pude evitar dar risada, ele estava mesmo perguntando aquilo para mim? era ele que estava todo ferrado em cima de uma cama de hospital.
-Agora está. _Disse, dando um breve sorriso e saindo.

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Aquela jaqueta de couro
RomanceCatarina Aires mora em Blumenau desde que nasceu, é herdeira das empresas de sua família, escrava de uma posição que não quer ocupar e correndo um risco que desconhece, a jovem impetuosa será salva por um motoqueiro misterioso, o que ela não sabe é...