CATARINA

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   Depois de sairmos de dentro da piscina Miguel arranjou uma sacola onde eu coloquei meu vestido e depois me ofereceu uma blusa que tinha na sua mochila, por sorte ele era alto o suficiente para que apenas uma peça de roupa sua me servisse como um vestido. A verdade era que eu nunca estive tão mal vestida em toda a minha vida, mas me sentia tão bem, tão leve e em casa com aquela roupa, e a cada movimento que eu fazia podia sentir o cheiro de perfume masculino exalar dela. Miguel pegou uma blusa que estava jogada no vestiário masculino do clube e colocou a calça seca que ele tinha tirado antes de pular na piscina.
Já eram quase nove da noite e estávamos sentados no balcão de uma lanchonete, aguardando o nosso lanche, íamos comer ali mesmo mas então Miguel comentou que gostaria de comprar algo para sua vó e eu propus que levásssemos o lanche para casa dele e comêssemos todos juntos. Em uma de nossas conversas na piscina ele me contou que morava com a vó desde que a mãe saiu de casa para morar com o novo marido, Miguel tinha aberto mão de todo seu conforto para ficar ao lado da vó e apesar de isso ter lhe custado sua adolescência, já que precisou trabalhar cedo, ele não parecia nada arrependido por ter optado ficar ao lado dela. Minha admiração por ele apenas aumentava a cada fato novo que eu descobria sobre sua vida. Ele também me contou que nunca tinha namorado antes, mas que quase todas as netas das vizinhas dele já tinham tido o "prazer" de beijar aquela boca, palavras dele, é claro.
  Chegamos em uma pequena vila, as casas eram todas parecidas e minúsculas, tinham varais espalhados em frente a elas e algumas crianças jogavam bola na rua, e pelo visto todas conheciam Miguel, já que quando passamos elas assobiaram e fizeram piadinhas para ele, que fez uma careta e mandou que cuidassem de suas vidas. Eu apenas ri e fiquei feliz em ver como Miguel parecia ser querido por ali. Paramos em frente a uma porta verde de madeira e vi ele procurar as chaves na mochila, antes que ele as encontrasse a vó dele abriu a porta. A senhora imediatamente o abraçou e depois, sorridente, estendeu a mão para mim e beijou o dorso dela, senti meu coração aquecer, nunca tinha conhecido nenhuma das minhas avós por perto e teve um tempo em que aquilo me afetou demais.
-Que bom que trouxe sua amiga, é Catarina, certo? _Ela disse, indicando para que entrássemos.
-Isso mesmo, e a senhora é a famosa dona Marlene?!
-Euzinha! _Brincou. -Não repare a casa minha filha, eu deveria ter a arrumado hoje mas as dores não me deixaram.
-Tem tomado seus remédios? _Miguel perguntou, deixando a sacola de lanches na mesinha que ficava encostada em um dos cantos da sala.
-Eu tenho, mas você sabe, tem dias que são piores que outros. _Ela disse, dando de ombros.
-Tudo bem, amanhã nós faremos a faxina da casa juntos! Agora vamos comer porque eu estou faminto!
Sentamos à mesa e começamos a comer, dona Marlene começou a falar sobre sua vizinha ter roubado um de seus panos de prato que ela tinha deixado para secar lá fora, em seguida Miguel encontrou o pano bem em cima do sofá e demos risada da situação.
-Fico feliz que tenha ouvido tudo o que meu neto tinha para falar e entendido o lado dele, queria muito conhecê-la! _Marlene disse, enquanto Miguel lavava a louça.
-Não tinha como não entendê-lo, eu sinto o mesmo que ele e entendo que se não me contou o que sentia antes foi porque teve receio, eu também tive. _Falei.
-Eu disse para ele que se vocês tivessem sido feitos para ficarem juntos tudo se resolveria, e aqui está você! É tão linda quanto ele disse que era, e devo admitir que menos "madame" do que ele tanto falava!
Revirei os olhos, rindo.
-Onde fica o banheiro? acho que bebi suco demais! _Perguntei, quando Miguel se aproximou parar pegar meu copo.
-Pega esse corredor e entra na porta à esquerda. _Ele respondeu, e voltou sua atenção para a louça.
O corredor era curtinho, tinha uma porta do lado direito e duas do lado esquerdo. Que ótimo, qual era a do banheiro afinal de contas? entrei na primeira porta e assim que abri soube que não era o banheiro. Era o quarto de Miguel, era pequeno, só tinha uma estante e uma cama encostada na parede com alguns livros sobre ela. Fiquei parada na porta por alguns instantes, não queria passar dos limites e nem violar a privacidade dele, mas antes de fechar a porta vi um quadro na parede, era como um quadro de avisos, tinha uma foto muito bonita dele segurando algumas frutas, um papel que dizia os horários dos remédios da vó dele, uma foto minha com o... espera aí!
Entrei no quarto e me aproximei do quadro para ver de perto, por que tinha uma foto minha com quatorze anos segurando a Paris - minha cadela - que tinha morrido há dois anos?! uma foto que eu nunca nem tinha postado nas redes! Tirei a foto do quadro e virei o verso dela, tinha meu nome completo escrito, minha idade e o nome do meu colégio. Meu coração acelerou e por algum motivo senti meu estômago embrulhar, de repente eu nem sentia mais vontade de ir ao banheiro. Quando voltei meus olhos para o quadro vi um papel embaixo de onde a foto estava, precisei aproximar meu rosto já que nunca lembrava de colocar minhas lentes de contato.
"Terça: Aulas até a hora do almoço e vai para a academia às 15:00, chega em casa às 17:30 e depois estou livre do meu fardo, já que ela fica em casa devidamente protegida o resto do dia.
Quarta: Aulas até às 13:00, e manteve-se dentro da mansão pelo resto do dia (minha bunda está dormente de tanto ficar sentado naquela calçada)..."
O que diabos era aquilo? por que Miguel tinha todo meu intinerário anotado e uma foto minha?
Ele...
-Catarina? _Ouvi a voz dele atrás de mim, e senti minhas pernas fraquejarem. -O banheiro é na porta do lado, esqueci de falar.
Continuei em silêncio, a foto em minhas mãos tremiam e eu não conseguia me virar e olhar para ele.
Miguel estava me vigiando desde antes daquela festa a fantasia.
-O que você está... _Ele começou, e então se interrompeu. Provavelmente tinha se dado conta do que eu tinha acabado de descobrir.
Me forcei a virar e olhar pra ele. Miguel estava pálido e olhou para mim por muito tempo, ou nem tanto, mas para mim cada minuto se arrastou como se fosse uma eternidade.
-Então você... você realmente me persegue desde o início... a julgar pelas suas anotações arrisco dizer que até muito antes do "nosso início". _Eu ouvia minhas palavras saírem, mas era como se não tivesse total consciência delas.
-Catarina, não é nada disso, eu ia te explicar tudo hoje e...
-Então explica, explica porque raios você tem uma foto minha e segue todos os meus malditos passos, Miguel?! _Falei, aumentando o tom de voz.
-Eu não te persigo... _Começou a falar, sua voz estava tensa e vacilante, como se ele estivesse prestes a chorar. É, se tivessem descoberto que eu sou uma maníaca também estaria nervosa. -Eu, eu fui contratado pra te acompanhar e proteger você secretamente.
Franzi as sobrancelhas, enquanto tentava me concentrar naquela situação e não nos batimentos ensurdecedores do meu coração.
-Muito boa a tentativa, mas vou na polícia mesmo assim! _Falei sem pensar, tentando passar por ele que me segurou pelos ombros. -Me deixa sair, eu não quero ter que fazer um escândalo, sua vó não precisa saber o grande mentiroso psicopata que você é!
-Você precisa me escutar, precisa acreditar no que eu digo!
Eu ri, mas não estava feliz, foi o riso mais amargo que dei na vida.
-Acreditar em você? eu sinto te informar mas não vai me fazer de idiota pela segunda vez!
-Eu sinto muito ter escondido de você algo tão importante, mas eu realmente fui contratado pra ser um segurança, ou sei lá o que, eu juro!
Assim que ele disse aquilo novamente a imagem de Roberta me veio a cabeça, talvez ele estivesse falando um pouco de verdade, o que não mudava nada, mas fazia sentido que a minha madrasta controladora colocasse alguém atrás de mim.
-Não acredito que aceitou fazer uma coisas dessas, é tão baixo quanto ela... _Murmurei, sentindo meus olhos arderem.
-Ela quem?
-Para de ser sonso, Miguel! Se é que esse é mesmo o seu nome! Você só está na minha vida porque recebe pra isso, só me salvou naquela maldita festa porque era seu dever! só me deu aulas porque provavelmente isso era parte do plano dela, é óbvio, você é fera na administração, poderia ajudar a burra aqui e ainda ficar próximo o suficiente para me impedir de cometer mais burradas! De certo só me beijou porque ela mandou também!
As lágrimas saltaram ardentes dos meus olhos, enquanto eu recuperava o fôlego.
-Pelo amor de Deus, eu nunca menti sobre meus sentimentos por vo...
Dei um tapa nele, que pareceu surpreso de imediato, mas em seguida voltou com a fisionomia desolada de antes. Ele era um ótimo ator.
-Você é como todos os outros! Não, você é pior... nunca ninguém se empenhou tanto em pisotear os meus sentimentos assim! _Gritei.
Dei outro tapa nele, e ele permitiu, ao passo que uma lágrima desceu por seu rosto. Eu quase podia ouvir meu coração se quebrar.
-Eu odeio você, Miguel! Você não tinha o direito de fazer isso comigo! _Continuei gritando.
Ele estava sem reação aos meus gritos, e aquilo só fazia minha raiva aumentar, seu silêncio significava que eu tinha razão sobre as coisas que dizia. Empurrei seu peito com as forças que ainda me restavam. Empurrei várias vezes, tentando desesperadamente fazê-lo sentir cada gota da dor que ele tinha acabado de criar em mim.
-Eu sinto muito... _Murmurou ele, enquanto mais uma lágrima descia por seu rosto transtornado.
-É, eu também sinto! _Disse, mas estava tão desapontada que quase não me ouvi falar. -Nunca mais apareça na minha frente!
Me afastei dele e esbarrei bruscamente em seu ombro, mas antes que passasse pela porta senti sua mão no meu pulso.
-Você não pode fazer isso, Catarina...
-Não me diga o que eu não posso fazer! _Falei, cortante, puxando meu braço. -E seu cargo estúpido de segurança acaba agora, não me siga ou eu vou chamar a polícia!
Cambaleei pelo corredor, vi a vó dele de pé na sala com uma expressão de preocupação.
-Foi... _Senti um poço de lágrimas bloquearem a minha garganta, mas me esforcei em terminar o que dizia. -Foi um prazer conhecê-la.
Peguei meu celular e minha bolsa que estavam no sofá e atravessei a porta, sentindo o vento frio me atingir ao chegar na rua. Ativei a tela do celular. 23:35. Até meu motorista chegar naquele fim de mundo eu teria congelado ali, ou pior, daria tempo para Miguel voltar a se aproximar de mim com suas mentiras infinitas.
  Entrei no táxi e fiquei a viagem inteira encarando a janela, tentava não soluçar alto para não chamar a atenção enquanto as lágrimas rolavam contínuas.
A sétima mensagem de Miguel chegou ao meu celular, e a cada "me perdoa" e "Está aonde? toma cuidado!" que eu lia, mais eu chorava. Parecia que o caminho até a minha casa tinha durado mais que uma vida, mas quando finalmente desci daquele carro Louise estava me esperando no jardim com uma fisionomia preocupada. Já devia ser quase uma da manhã, estava ventando frio, o que ela estava fazendo acordada e do lado de fora?
-Catarina! eu estava quase ligando pra polícia! _Ela falou, me alcançando e segurando meus ombros.
-O que aconteceu? _Perguntei, passando a mão no rosto ainda úmido pelas lágrimas.
-Eu quem te pergunto, Miguel me mandou mensagem e disse que você saiu da casa dele muito irritada e foi sozinha pra rua, fiquei em pânico!
-Ah... _Murmurei, me afastando e seguindo o caminho pelo jardim.
-Como assim "ah"? o que aconteceu? você está com a cara inchada, estava chorando... e por que não deixou que Miguel te trouxesse até aqui?
-Nunca mais quero ouvir o nome desse cara na minha vida. _Falei, ainda andando. 
Minha cabeça latejava e meus olhos ainda queimavam, só precisava do meu quarto.
-Não vai me contar o que houve? Você saiu daqui toda feliz...
-É, mas sabe o que Miguel fez com a minha felicidade? com a minha confiança? com tudo o que eu sinto por ele? ele esmagou e ainda pisou em cima com aqueles tênis surrados de liquidação! _Gritei, sentindo as lágrimas voltarem com um novo ímpeto.
-Shh, tudo bem... vamos falar sobre isso depois, minha mãe pode escutar e acabar piorando a situação, vamos entrar. _Louise disse, colocando um braço em volta dos meus ombros e me seguindo para dentro.
Entrei no meu quarto e joguei minha bolsa num canto escuro, e foi o máximo de reação que consegui ter.
-Quer que eu te traga uma água com açúcar? _Ela sussurrou, me ajudando a tirar as botas.
-Não, eu estou bem, só preciso ficar sozinha, por favor. _Pedi, exausta.
-Tudo bem, amanhã conversamos. _Falou, me dando um abraço repentino. Eu não fazia ideia do quanto precisava daquilo até aquele momento. -Fica bem.
Quando ouvi a porta fechar, desabei. Louise sempre me via chorar, era a única, mas eu me sentia idiota, humilhada e sentimentalmente violada, nem mesmo à minha melhor amiga eu iria mostrar aquilo. Parecia que estava presa em um pesadelo, como se tudo aquilo que aconteceu há menos de duas horas atrás não tivesse de fato acontecido. Há algumas horas eu estava mais feliz do que jamais pensei ser capaz, tinha entregado tudo nas mãos de Miguel, o meu amor, minha confiança, minha amizade, e agora eu não tinha nada. Me arrastei até a varanda, e lentamente, como se tivesse medo de vê-lo, levei meu olhos até o apartamento dele, apesar da escuridão, a luz do poste iluminava sua varanda. A varanda com vista privilegiada para a minha casa. Como eu fui burra!
Lembrei da primeira vez que o vi ali naquela varanda, eu não sabia quem ele era, mas algo dentro de mim gritou para que eu fosse até lá e descobrisse, e era alarmante como minha falta de razão sempre me metia em grandes merdas.
Senti minhas pernas cederem, e me vi sentada no piso frio, com as mãos na cerca da sacada, várias imagens dos últimos dois meses invadiram a minha mente, por mais que eu lutasse contra. Chorei desolada por alguns minutos, mas depois que vi minha imagem pelo reflexo do vidro, levantei a cabeça, resoluta.
Não era nem a primeira e nem a última vez que eu era usada, que me jogava de cabeça em algo e depois acabava com ela rachada. Me levantei, fechei as portas e antes de me deitar, olhei no espelho. Meus cabelos estavam um pouco bagunçados, o cloro iria acabar com eles se eu não os lavasse, mas não tinha força pra fazer aquilo, notei que eu tinha perdido um brinco, e usava apenas uma... _Antes de concluir meu pensamento tirei a camisa dele do meu corpo com toda a fúria que estava dentro de mim e joguei longe. Troquei de lingerie e coloquei a primeira camisola que vi, algo que não tivesse o cheiro dele já seria suficiente. Custei a pegar no sono, as imagens, as falas, tudo passava como um filme na minha cabeça, as lágrimas pareceram querer me sufocar por várias vezes durante as tentativas de sono, mas enfim, em algum momento entre nosso último selinho na mesa da casa dele e o momento em que eu sai pela porta desolada, adormeci.

Aquela jaqueta de couroOnde histórias criam vida. Descubra agora