A Sala Precisa

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Hermione suspirou diante da parede no meio do corredor do sétimo andar antes de começar a caminhar de um lado para o outro. Precisava de um lugar para ficar sozinha. Precisava estar longe da alegria dos amigos. Precisava encontrar o lugar ao qual pertencia. Precisava entender como, exatamente, tinha mudado tanto em tão pouco tempo.

O som da parede mudando de forma chamou sua atenção e ela ergueu o rosto a tempo de ver a transformação se concluir. Estava diante, agora, de uma pequena porta de madeira, com um arco arredondado e ornamentada com arabescos dourados. Ela estendeu a mão para a maçaneta e girou. A porta se abriu sem emitir um ruído sequer, dava para uma saleta iluminada apenas pelo fogo que crepitava na imensa lareira atrás do sofá e das poltronas grandes e confortáveis. O teto era alto e escuro, salpicado por pontinhos de luz como uma noite estrelada. Estantes cobriam as paredes com livros, pergaminhos, penas e o que mais se precisasse para passar o tempo. Ela deu um passo adiante, estudando os títulos antigos nas lombadas surradas. A porta se fechou atrás dela num clique baixo e apesar de saber que estava segura ali dentro, a apreensão de estar num lugar que não podia ser encontrado fez seu estomago se apertar. Mesmo assim, passou a ponta dos dedos pela estante enquanto caminhava na direção da lareira crepitante, parando abruptamente quando descobriu que não estava sozinha.

Draco Malfoy estava jogado sobre os tapetes felpudos que recobriam todo o piso da sala. O colarinho da camisa estava aberto até o ponto onde suas clavículas se encontravam, a gravata verde e prateado estava amassada e fora do lugar, como se tivesse sido constantemente afrouxada no pescoço e caía de lado pelo peitoral esguio. O manto escuro com verde-esmeralda estava jogado sobre o braço do sofá. Ela o observou com cautela, a varinha em sua mão enquanto se aproximava. Mas Draco Malfoy dormia profundamente. Os cabelos loiros, quase brancos, estavam bagunçados e cobriam descontraidamente sua testa. Havia marcas escuras sob seus olhos, destacando a palidez da pele. Ele devia estar exausto.

Com um suspiro resignado, decidindo que ele não era uma ameaça e sem querer retornar nem para o salão comunal onde Ron gargalhava jogando cartas e nem para a biblioteca onde Harry e Ginny trocavam beijos rápidos, Hermione deixou-se cair sobre a poltrona mais próxima. A varinha ainda na mão.

Lançou mais um olhar cauteloso na direção do Malfoy completamente imóvel no chão e gesticulou com a varinha no ar. Um dos livros da estante se desprendeu da e flutuou até ela. Um romance bruxo. Ela acariciou a capa, apreciando o título e o abriu.

***

Malfoy ainda dormia quando ela cuidadosamente marcou a página em que parou com uma pena e fechou o livro, suspirando ruidosamente. Várias horas tinham se passado e Hermione considerou voltar para o dormitório.

Fez uma careta ao imaginar o grupo de garotas trocando risinhos e suspiros ao redor da cama de Ginny Weasley enquanto ela contava alguma história boba sobre algo romântico que Harry tinha lhe dito ou feito. Ela e Ginny ainda eram amigas, melhores amigas, mas Hermione não suportava mais a alegria brilhando nos olhos verdes de Harry quando olhava para a ruiva. Não aguentava vê-los se beijando furtivamente pelos corredores, rindo e trocando juras. Completamente despreocupados agora que a guerra tinha acabado, que Voldemort se fora – para sempre dessa vez.

Malfoy gemeu, movendo-se pela primeira vez desde que ela entrara na sala. Hermione o observou erguer desajeitadamente o braço – rígido pelo tempo imóvel – e esfregar a ponte do nariz com os dedos longos antes de suspirar e se sentar, inclinando a cabeça de um lado para o outro, estalando o pescoço e esfregando os músculos tensos dos ombros antes de finalmente abrir os olhos para o fogo na lareira. A luz refletiu vermelha no cinza enuviado pelo sono. E por um momento, pela primeira vez desde que o conhecera, Hermione se encantou com a beleza etérea daqueles olhos frios, muito diferentes do calor acolhedor no verde vibrante dos olhos de Harry.

Ele abriu a boca num bocejo, olhando despreocupadamente ao redor na sala e interrompendo-se bruscamente quando seus olhos pousaram sobre Hermione.

Os dois se encararam em silêncio por longos segundos, sem sequer piscarem.

- Feche a boca, Malfoy. – Hermione disse finalmente.

Ele corou e fechou a boca e Hermione assistiu seus olhos escurecerem e sua expressão se fechar como se um véu caísse sobre ele.

- O que faz aqui, Granger? – ele não olhou para ela quando falou, fechando os botões da camisa, ajeitando a gravata no lugar – Como conseguiu entrar?

Ela deu de ombros.

- Não sei como vim parar aqui. – ela ergueu as pernas que estavam apoiadas no braço da poltrona e girou para encará-lo melhor – Com você. – acrescentou deixando escapar um pouco do desprezo.

Um sorriso debochado brincou nos lábios dele ao ouvir e compreender o tom que ela usou e ele se arrastou para recostar no sofá, ainda sentado no chão antes de olhar para ela, pouco incomodado com sua reação.

- A essa altura eu já devia saber que não se pode confiar nessa sala. – seus olhos se desviaram de volta para o fogo com uma tristeza profunda contida neles – Precisava ficar sozinho e mesmo assim... aqui está você.

- Nott e Goyle o deixaram de lado? – bufou ela.

Ele ergueu os olhos para encará-la de novo.

- Harry e Ginny a excluíram do triângulo amoroso? – ele retrucou.

Hermione sentiu o rosto arder e os lábios entreabrirem de surpresa e Malfoy sorriu, satisfeito por conseguir o efeito desejado. Sabia exatamente onde cutucar.

- Não sou cego. – disse ele à guisa de explicação – Vejo o modo como olha para ele. Como sempre olhou para ele.

- Não sabia que era tão observador. – ela estreitou os olhos enquanto afundava no veludo da poltrona, erguendo as pernas para abraçar os joelhos.

- Você é óbvia. – ele sorriu maliciosamente – Me admira muito que Potter não saiba.

- Não faria diferença mesmo que soubesse. – Hermione murmurou.

Draco a observou.

- E Weasley? Durante a Batalha de Hogwarts vocês pareciam muito próximos.

- Foi só um beijo no calor do momento. – ela deu de ombros, então se lembrou de com quem estava falando e franziu o cenho – Por que...

- Porque – ele a interrompeu – Nós dois precisávamos ficar sozinhos quando entramos nessa sala. – disse – E acabamos juntos aqui. – ele deitou a cabeça na poltrona onde se recostara para fitar o teto estrelado – Talvez apenas precisasse de alguém tão solitário quanto. A magia sempre tem um propósito.

Hermione baixou os olhos, assimilando a insinuação dele. A magia sempre tem um propósito. Mas aquele era Draco Malfoy.

- Estou surpresa por ainda não ter me chamado de sangue-ruim. – admitiu ela, ignorando a fisgada de dor na cicatriz em seu braço, agora oculta por uma bela tatuagem sob a manga comprida do uniforme.

Ele ergueu a cabeça, mas não olhou para ela, continuou fitando a lareira, mordendo o lábio, perdido nas próprias lembranças, os olhos escurecendo enquanto os demônios tomavam conta.

- Eu sinto muito por isso. – disse com sinceridade – por ter acreditado nisso por tanto tempo. Por ter usado isso contra você como se significasse alguma coisa. – ele cobriu os olhos com os dedos, esfregando as sobrancelhas claras – Me sinto ridículo por isso. – admitiu.

Ela o fitou sem dizer nada até ele afastar a mão do rosto, os olhos ainda evitando os dela, escurecidos como uma tempestade.

- Você mudou, Malfoy.

Os olhos furtivos dele encontraram os dela por um instante, mas ela sentiu como se ele não pudesse realmente vê-la.

-Espero que sim. – ele murmurou antes de voltar a olhar as chamas na lareira.

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