— Patrícia, preciso te dizer algo. Eu tenho de ir à Antártida de qualquer jeito.
— Por quê?
— É um negócio que tenho de resolver lá. Não posso te falar agora, mas sem a Ema junto, como vou embarcar? Aí pensei numa loucura... Você poderia ir comigo e continuar se passando por ela... Porém, isso é loucura, não acha?
— Confesso que também pensei em ir, mas por outra razão: te garantir um álibi perfeito. Mas como vou sustentar a farsa se não sou bióloga? Logo seria desmascarada. Vou pensar em algo, mas se não me contar o porquê dessa tua necessidade de ir, nada feito
— Tá certo, eu conto Tem a ver com um colecionador chileno e uma encomenda.
Continuar com a troca de identidade, portanto, tornou-se mais do que necessário. E, segundo ela, o terceiro clichê que aplicaria oriundo das novelas policiais. Passaram no hotel de Patrícia, onde ela tingiu os cabelos de loiro. Todavia, para que os funcionários não percebessem a mudança de cor, utilizou-se do mesmo expediente, lenço e chapéu, mas não os mesmos da fuga da outra hospedaria — aqueles deixaria para a ocasião de estar definitivamente na pele de Ema.
Fechada a conta, dirigiram-se à locadora do veículo e ali Carlos devolveu o automóvel. Tudo se justificava, a devolução do carro, o fechamento da conta na pousada — Ema e Carlos iriam viajar no dia seguinte, assim, supostamente tinham decidido passar a noite no hotel mais luxuoso da cidade, o Magallanes. E era nesse outro hotel que Patrícia começaria a garantir o álibi de Carlos.
Havia uma questão que lhe ocorrera, mas que ela ainda não falara ao amante. Era sobre a foto na carteira de identidade, que Ema levava na bolsa — seu registro geral. Doravante, Patrícia teria que o utilizar como seu. Esperava não ter que necessitar dele de maneira tão explícita, isto é, de forma que comparassem atentamente seu rosto com o da foto, mas ao ver o retrato no documento, tranquilizou-se: era de Ema muito jovem. Pela data de expedição, Ema tinha apenas 20 anos de idade. Mesmo assim, fez uma cópia não colorida do RG, que escureceu a foto. De repente, se pedissem, ela poderia tentar enfiar goela abaixo a fotocópia, dizendo que perdera o original.
Procurou algum outro documento com foto, como carteira de habilitação, mas não havia nenhum. Passaporte, Ema não trouxera, porque não era exigido pelo Mercosul.
Sobre as malas, Ema não era uma mulher vaidosa, Patrícia também não, e assim, ambas tinham apenas uma mala, que, mesmo grande, por conta das roupas de frio, não dificultaram muito os deslocamentos pela cidade.
Tomando um táxi, finalmente chegaram ao Magallanes, onde se hospedaram como marido e mulher. Patrícia não precisou ir muito longe para ter que apresentar o documento: a recepção do hotel solicitou-o! Corajosamente, entregou não a cópia, mas o original. Estava com óculos e chapéu, entendeu que ninguém desconfiaria, como de fato, não desconfiaram.
Instalados, desceram ao bar do hotel. Já eram 21h30. Quando adentraram o piano-bar, Patrícia abraçou-o e beijou-o deliciosamente, tudo para transparecer uma relação amorosa e tranquila, de um casal em viagem de férias ou de núpcias. Carlos tomou uma dose de uísque, puxando descaradamente seu cantil do bolso, mas que logo recolocou no lugar, advertido por um barman. Patrícia, por outro lado, chamou a atenção pela beleza. Os cabelos loiros tinham-lhe caído muito bem.
Sentaram-se próximo à lareira. Seu olhar cruzou rapidamente o de um homem de vasto bigode, acomodado numa das poltronas. Um segundo homem, um oficial da Marinha, vestindo garboso e irretocável uniforme, chegou, interrompendo sem querer a troca de olhares. Colocara-se de pé, entre Patrícia e o bigodudo, de costas para ela. Cerca de cinquenta anos, alto, costas largas e de ligeira curvatura. Cumprimentou o homem de bigode, sentando-se defronte a ele.
Algumas vezes, os beijos calorosos fizeram os dois cavalheiros voltarem os olhos para o casal. Patrícia, vez ou outra, lançava um olhar ao senhor bigodudo. Observou seus lábios carnudos e o rosto arredondado. Olhos argutos. Tinha o hábito de cofiar inúmeras vezes o bigode, como num ritual.
Em pouco tempo ali — ouvindo despistadamente a conversa, souberam que o homem de bigode era um delegado e se chamava Basílio. E o oficial, o almirante H. Nunes.
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Opa! Patrícia e Carlos encontraram-se casualmente com nosso delegado? Sim, aquele, lembram-se, lá do início do livro! O policial que estava preocupado com a Teoria do Caos e já querendo antecipar a cena do crime... Sim, eu sei, já está mais do que na hora dele assumir a narrativa novamente. Vamos verificar?
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Assassinato no Continente Gelado
Mystery / Thriller🏆1º Lugar no Concurso Caneta de Ouro (Melhor Cenário) 🏆2º Lugar no Concurso Jane Austen 2022 (Romance) 🏆3º lugar no Prêmio UBE/Scortecci, 2005 (Romance). Estação Antártica Comandante Ferraz: uma nevasca e um crime! Dezoito pessoas incomunicá...