Após o jantar, nos reunimos na sala de vídeo. Seguindo uma sugestão anterior de Inês, o almirante H. Nunes marcara uma sessão para as 20h30. Sendo assim, Inês separou dois filmes para assistirmos, retirados do acervo da estação. O primeiro filme, um documentário sobre a incrível história de Scott, terminou às 21h30. Alguns militares, que acompanharam a sessão, recolheram-se aos aposentos. Da turma de civis, o único a sair com eles, foi Ernani. Alegando cansaço, disse-nos boa noite e foi deitar-se.
Enquanto Inês preparava o segundo filme, Carlos comentou:
— Delegado, perdeu um grande passeio, hoje de tarde.
— Lamento, mas não estava a fim. Não gosto de passar frio.
— Uma oportunidade e tanto. Nunca mais terá outra!
— Não tem problema! Minha mãe sempre diz: "Mais vale um covarde vivo, do que um herói morto".
Em meio ao sorriso de Carlos, o almirante mostrou-se interessado sobre as andanças deles, principalmente ao ter sido informado que haviam estado na estação inglesa abandonada. Indagou:
— Falaram que vocês entraram na estação inglesa...
— Entramos sim, almirante — respondeu Ema.
O almirante estampou no rosto um ar de preocupação:
— Não falaram que não se deve entrar ali, pois pode desabar a qualquer hora?
Carlos reconheceu:
— Ernani falou. Realmente, a estação está nas últimas. Deviam então colocar algum aviso, uma tabuleta, pra ninguém entrar.
Inês perguntou, usando o advérbio para solicitar atenção, típico do povo mineiro:
— Aqui, encontraram algo de estranho por lá? O Ernani estava bem apavorado, quando chegou. Falou de alguém espreitando vocês. E falou de um livro da Agatha Christie: "E no Final a Morte".
Tive a impressão de que Ema pretendeu falar algo, mas um olhar de Carlos a fez não prosseguir, dando-me também a impressão de que buscou desviar o foco:
— Nunca vi um sujeito tão impressionável. O lugar, de fato, é tenebroso. Mas, afora esse livro, nada de especial.
— E sobre alguém espreitando vocês? — insistiu Inês.
Ele minimizou a importância do fato:
— Bobagem! Foi o vento e a contração térmica no piso de tábuas, nada mais.
Carlos voltou-se para o almirante, aparentemente tentando desviar o assunto e cortar logo o interesse de Inês, cujo motivo do receio eu só viria a saber bem mais tarde:
— E aí, almirante, é mesmo a primeira vez que vem na estação?
— Claro que não! — revidou de bate-pronto.
O almirante não ficou nem um pouco à vontade com a repentina mudança de assunto. Aquela embaraçosa pergunta, de certa forma, já fora motivo de entrevero, mais cedo, no auditório. Seguiu, irado:
— Já estive aqui, sim! Bando de fuxiqueiros. Pensam que só porque tenho residência em Punta Arenas, que tenho de montar acampamento na EACF? Esse chambão desse Humberto não sabe o que fala. Sou responsável pela Comissão Interministerial de Recursos do Mar e lá existem inúmeras outras questões. Não é só a EACF que é ligada nessa secretaria. Ademais, delego poderes, temos pessoas altamente qualificadas na Marinha. Outra: as equipes de retaguarda e cientistas mudam todos os anos, como podem saber se vim ou não? Não dê ouvidos a futriqueiros.
O que tudo parecia indicar, no entanto, era que o almirante jamais se empenhara, com a devida convicção, à frente da secretaria dos Recursos do Mar. A existência de fuxiqueiros, portanto, poderia ser creditada a ele próprio, quem sabe?
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Assassinato no Continente Gelado
Mystery / Thriller🏆1º Lugar no Concurso Caneta de Ouro (Melhor Cenário) 🏆2º Lugar no Concurso Jane Austen 2022 (Romance) 🏆3º lugar no Prêmio UBE/Scortecci, 2005 (Romance). Estação Antártica Comandante Ferraz: uma nevasca e um crime! Dezoito pessoas incomunicá...