Sentindo-se culpada, mas ainda fortemente impressionada pelo ato do amante, algo que ela jamais poderia esperar, pegou na mala um livro no qual vinha trabalhando, revisando-o para uma futura reedição.
"Crime em dois Atos". Aquele havia sido seu primeiro livro, uma produção independente, escrito há 15 anos. Tinha recuperado o exemplar em um sebo, uma vez não possuir mais nenhum. Pegou-o, porque, coincidentemente, o livro tinha como mote um ato de estupro. Antes de iniciar a revisão, ela nem se lembrava dos detalhes da história, mas havia uma passagem, em especial, que fora marcante e era essa que ela buscava agora no texto, quase num sentimento masoquista. O personagem em questão chamava-se Célio e, numa das cenas, violentava sua mulher, Helena. Célio acabaria tendo um trágico fim na prisão, uma vez que Patrícia abominava o estupro, sob qualquer pretexto, não só pelas razões óbvias, mas também por ter sido vítima de um. Assim, fez o personagem dar-se mal. O estupro não podia ser abonado, tampouco justificado, não podia nem ser perdoado, dizia ela, no livro.
"Segundo o relato de Carlos, não houve estupro. Apesar disso, será que o fato dele ter matado Ema com um ato tão brutal, não pode ser considerado tão ultrajante quanto a um estupro? O fato de não ter havido violência sexual, atenua o crime?", pensou.
A verdade é que, desde o dia anterior, ela vinha buscando apoiar-se em qualquer coisa que justificasse prosseguir com toda aquela insensatez. Pensava no dinheiro dele, mas, valeria a pena? Lembrou-se da música de Tom Jobim, que a pianista tocava no piano-bar do Magallanes, na noite anterior:
Ah, insensatez, que você fez?
Coração mais sem cuidado
Fez chorar de dor o seu amor
Um amor tão delicado
Ah, por que você foi fraco assim?
Assim tão desalmado
Ah, meu coração
Quem nunca amou não merece ser amado
Vai, meu coração
Ouve a razão, usa só sinceridade
Quem semeia vento, diz a razão
Colhe sempre tempestade
Por ora, a justificativa que escolhera era a de que, depois de tudo, não havia mesmo mais qualquer outra escolha, a não ser prosseguir.
"Liberdade de escolha, sempre há!", disse-lhe a consciência. "Mas o ato dele foi impensado, não? Um estupro nunca é. O estupro sempre é premeditado, ainda que, da decisão à ação, possa haver um espaço ínfimo de tempo."
A cena descrita em seu livro há tanto tempo, ainda martelava em sua cabeça. Releu-a, mais uma vez: "Célio empurrou sua mulher sobre a cama, desafivelando o cinto, baixando as calças, enquanto Helena, indefesa e imóvel, paralisada pelo medo, esperava pelo pior. Ele então deitou-se sobre ela, rasgando seu vestido, arrancando com brutalidade a roupa íntima. Ela esboçou um grito, que ele impediu com uma das mãos, grandes e fortes. Ela mal respirava, Célio tampava sua boca e narinas, enquanto abusava dela, como um animal sobre sua presa".
A releitura da cena a fez ter um estalo! Recuou no tempo, para a tarde anterior, quando estivera examinando o corpo de Ema, na pousada. Murmurou:
— A marca nos lábios...
Uma suspeita terrível pairou em sua mente. Repetiu:
— O roxo nos lábios de Ema... Será? Não, não é possível!
Mas, a considerar o que acabara de ocorrer ali, ou seja, o que Carlos pretendera fazer, sim, era plenamente possível. Quando ele retornou, ela, de chofre, perguntou:
— Carlos, você forçou Ema a fazer sexo?
Fora nítida a surpresa dele, como quem é pego em delito e não consegue esconder. Suas faces ruborizaram-se. Patrícia era inteligente e sabia observar os sinais do corpo. O subsequente baixar da cabeça, o não fitar dos olhos, a pequena hesitação. Tudo parecia dizer que sim, que ele violentara a esposa! E ela não utilizara a palavra "estupro", tendo a reação dele sido como se a tivesse utilizado.
— De onde você tirou essa ideia?
— Você esteve a ponto de fazer isso comigo, não?
— Patrícia, deixa de bobagem. Pelo amor de Deus, não busque pelo em ovo!
Ele estava estranha e acusadoramente hesitante:
— Olha, desculpa... Eu sei que ia fazendo uma coisa bem errada, mas, se você pensar bem, tudo o que estamos fazendo juntos, já é bem horrível, também.
Patrícia demonstrou-se indignada com a relativização que ele pretendeu:
— Está buscando uma justificativa? Quer relativizar o ato de estupro? Talvez até pretenda romantizá-lo, quem sabe? Há coisas para as quais não há justificativa, fique sabendo.
— Foi o uísque.
— Não busque justificar. O álcool só faz a gente botar pra fora, mais facilmente, o que a gente já é.
Ele estava se enrolando e resolveu encontrar uma forma de escapar. Pegou uma toalha, para enxugar o rosto e parte dos cabelos. O fato de ter ido ao banheiro, para jogar água na cabeça, a fim de esfriá-la, parecia mostrar toda a sua culpa. E também fora uma tentativa inútil de despertar do efeito do álcool. Falou, meio sem jeito:
— Acho melhor irmos jantar.
Patrícia estava arrasada. Em seu íntimo, crescia uma certeza: o hematoma nos lábios de Ema nada tinha a ver com o tapa no rosto. E Carlos estivera prestes a fazer com ela, o que já fizera com a esposa. Recuara na hora "h", mas acabaria por fazer, algum dia. Seria tão somente uma questão de tempo. Por um instante, pensou em desistir, ir ao delegado e contar tudo. Noutro, sentiu nojo e teve vontade de matá-lo!
— Pode ir jantar. Vou daqui a pouco.
Ainda que soubesse que estava também encrencada e que, portanto, precisava manter o equilíbrio emocional, sentia-se sendo dominada por emoções muito fortes. Não sabia se conseguiria manter-se tão gélida quanto a região do planeta em que se encontravam.
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Como todo ser humano, Patrícia é uma pessoa dividida entre o bem e o mal, esse dualismo maniqueísta, que está presente em todos nós. Antes fora Ema, agora também Patrícia, com vontade de matar Carlos Eduardo. Com Ema já fora de ação, será que nossa linda Patrícia vai fazer alguma coisa, para vingar as duas? Eu não perderia a continuação...
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Assassinato no Continente Gelado
Mystery / Thriller🏆1º Lugar no Concurso Caneta de Ouro (Melhor Cenário) 🏆2º Lugar no Concurso Jane Austen 2022 (Romance) 🏆3º lugar no Prêmio UBE/Scortecci, 2005 (Romance). Estação Antártica Comandante Ferraz: uma nevasca e um crime! Dezoito pessoas incomunicá...