Algum tempo antes, enquanto o delegado Basílio fazia a perícia, Ema, Ernani e Inês reuniram-se no refeitório, aguardando a liberação da ala dos civis.
— Que coisa horrível, Ema. Sinto muito.
— Obrigada, Inês. É terrível mesmo. Tantos anos planejando essa viagem... Não tenho nem cabeça pra continuar. Como é que vou para o Besnard? E preciso tratar do funeral do Carlos.
Ernani concordou:
— Claro! Precisa pedir dispensa, não tem jeito.
— Nem tivemos oportunidade de conversar... Quais são as pesquisas que vocês estão fazendo, lá no Besnard?
A pergunta de Inês pareceu a Ernani bem inapropriada para o momento, mas talvez fosse a tentativa de desviar os pensamentos da tragédia, daquela que supunham ser Ema. Por outro lado, era justamente o tipo de pergunta que Patrícia tanto temera. Precavida, lera anotações de Ema, que poderiam ajudar:
— As nossas pesquisas estão se restringindo... Às baleias-jubarte e ao krill... Você bem sabe, é a base da cadeia alimentar desta região.
— E como não saberia? E quanto aos cetáceos?
Patrícia pensou:
"Cetáceos? Ferrou! O que raios é isso"?
Fingiu-se distraída:
— Como?
— Cetáceos.
— Cetáceos?
— Sim, as baleias-jubarte.
— Ah, sim me desculpe. Sim, nossas pesquisas também envolvem as baleias-jubarte. Olha, me desculpa. Estou completamente fora do ar. Nunca imaginei em minha vida passar por uma situação dessas. Mas, falando das baleias, estamos estudando suas rotas migratórias, de acordo com os estoques de krill disponíveis.
O coração de Patrícia estava acelerado. Precisava escapar daquela sabatina. Tendo respondido sucintamente, dentro do possível, levantou-se e deu uma desculpa bem apropriada:
— Se me dão licença, preciso ir ao banheiro. Não estou passando muito bem.
Após ela ter se afastado, Ernani comentou:
— Essa mulher é muito esquisita, não acha? Não sinto firmeza nela. Ontem de tarde, lá fora, ela me deu a impressão de nem saber o que é um esqueleto de baleia... Mas, ouvi falar tão bem dela, como bióloga, uma mestra. Será que tá ficando maluca? Parece bem confusa. Vai ver que é porque o marido a estava traindo. Deve ser por isso que ela o matou.
— Não temos certeza disso, meu caro. Quanto a ser esquisita, não sei. Mal tive tempo de conversar com ela. Bem, não deve estar sendo fácil a situação. Eu, no lugar dela, já teria pirado. Que coisa! A violência chegou até aqui. Quem diria...
— Não fico surpreso. Onde estiverem os seres humanos, estará a violência. É só uma questão de tempo e oportunidade, aliada a um bom motivo. As baleias que o digam.
— Um mau motivo, você quer dizer — corrigiu Inês.
— Sinceramente, sabe o que eu acho? Este lugar ajuda também. Nunca mais quero voltar aqui. Graças a Deus nossa viagem está terminando. Em breve, voltaremos para casa.
Inês demonstrou certa indignação:
— Eu também não vejo a hora de voltar, pois não é fácil sobreviver nesse lugar. Mas penso também nas pesquisas, no quanto se aprende; também, no quanto lutei pra chegar até aqui. Estamos voltando, mas preferia voltar após o trabalho concluído. Ficará um vazio, algo que ficou por fazer. Pense nos sonhos e planos de todos aqueles que ficaram retidos no Rio de Janeiro. Quanta desilusão e frustração.
— É, eu sei. Lamento por eles. Mas, depois que se vem pra cá, a realidade é outra. As dificuldades são extremas. Além do que, existe todo esse clima pesado.
— Ora, Ernani... Sem dúvida que após algumas horas, já se percebe a fria, literalmente, mas o astral do lugar só depende da gente. Quando focamos nas pesquisas e no aprendizado, sentimos que vale a pena, aí o astral fica bom. Senão, fica igual ao seu agora, pois você só pensa em coisas ruins. Quanto ao aprendizado, há algo aqui que nos faz pessoas melhores: a conquista de valores morais.
"A solidariedade aqui é fundamental, diria imprescindível, nos faz aprender a valorizar a necessidade do convívio pacífico — e tolerante. Aqui são todos iguais, não importa a divisa, a patente, o título, a cor da pele, a começar pela divisão das tarefas, distribuídas de forma equitativa, desde preparar a comida, até lavar os banheiros. Isso nos dá a medida da verdadeira igualdade. Se todas as pessoas pudessem passar por essa experiência, o mundo seria bem melhor.
Ernani cerrou os lábios, concordando, porém não muito:
— É...
— Sabe o que te atrapalha?
— Não!
— É esse teu medo.
— E não é pra ter medo? Você que gosta de História, já reparou numa incrível coincidência? O Titanic afundou depois de bater num iceberg, em 15 de abril de 1912, a 600 quilômetros ao sul da ilha de Terra Nova. Agora, te pergunto, qual era o nome do navio do Robert Scott?
— Terra Nova!
— E qual era a distância que ele estava de Amundsen, na baía de Ross?
— Seiscentos quilômetros!
— Está vendo? Coincidências? E Scott morreu de frio e fome, em plena Antártida, a 21 de março de 1912, praticamente um mês antes do Titanic afundar. Por isso eu sempre digo, há coisas estranhas que rondam esses lugares gelados.
— Coincidências bobas.
— Tenho medo, mesmo. E daí?
— Daí que eu acho que você deveria procurar um psicólogo pra tratar disso. Todos nós temos medo, mas no seu caso é tão obsessivo que já é uma doença, uma fobia. Não me leve a mal. Falo para o seu próprio bem.
Ernani balançou a cabeça para os lados, fazendo um bico com os lábios, com uma expressão de desagrado. Fingiu, porém, admitir:
— Você pode ter razão. Vou pensar nisso.
Inês olhou bem para ele. Um sujeito baixo e franzino, uns trinta anos, cabelo loiro comprido e amarrado em forma de rabo de cavalo. Possuía olhos verdes e, seu traço marcante, era o nariz pontiagudo. Pensou:
"Parece haver algo que o incomoda, algum segredo, o que será?"
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Ah, Ernani, quanto medo. Mas não será tão somente uma fachada, toda essa aparente angústia? E, que segredo seria esse, intuído por Inês? Terá alguma relação com o crime? Bora continuar e conferir?
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Assassinato no Continente Gelado
Mystery / Thriller🏆1º Lugar no Concurso Caneta de Ouro (Melhor Cenário) 🏆2º Lugar no Concurso Jane Austen 2022 (Romance) 🏆3º lugar no Prêmio UBE/Scortecci, 2005 (Romance). Estação Antártica Comandante Ferraz: uma nevasca e um crime! Dezoito pessoas incomunicá...