O ar denso e frio invadia os pulmões dos três. Ernani ia um pouco à frente, apreciando o aspecto lunar da paisagem. Enquanto caminhava, andando sobre o duro e pedregoso solo vulcânico, observava a vegetação quase inexistente, apenas musgos, liquens e fungos, encontrados tanto na praia quanto nos morros. O contraste entre estes vegetais e as rochas escuras, de origem vulcânica, era muito belo, ainda mais com a neve recobrindo partes da colina. Era uma beleza exótica.
Em vários locais, principalmente na praia, avistavam-se muitos ossos de baleia, fruto da matança que houvera na região. Ali mesmo, onde estava assentada a base brasileira, estivera instalada uma base norueguesa de pesca, cujo tratado antártico havia proibido desde 1959.
— Quantos ossos! São de baleia, Ernani?
Ernani olhou para Patrícia, na pele de Ema, estranhando a pergunta:
— Sim, Ema! Mas há também de elefantes-marinhos e focas.
Patrícia pegou um pedaço de osso no chão, parte de uma vértebra, que lembrava um punhal de tamanho médio, muito pontiagudo e afiado na ponta.
— Parece um punhal, não acham?
Brincando, empunhou o osso, erguendo-o com a mão, como a desferir um golpe mortal. Dirigiu-se ao amante:
— Eu podia matá-lo, viu? Mas não na frente de testemunhas!
Ernani franziu o cenho:
— Ema, não brinque com isso! Esse lugar já é sinistro... E não se pode levar nada daqui, ok? É proibido!
Ele acelerou um pouco o passo:
— Aliás, não sei como é que você aguenta sem luvas, com um frio desses!
Ela riu, guardando o osso dentro do casaco sem que ele percebesse, depois enfiando as mãos nos bolsos para protegê-las do frio. Havia esquecido as luvas dentro da estação. Carlos diminuiu o passo, forçando a amante a fazer o mesmo, recriminando-a:
— Patrícia, viu a pergunta idiota que você fez? Imagina, se a Ema não saberia que são ossos de baleia! Cuidado!
— Tenho que tomar cuidado mesmo, mas não vou conseguir enganar essa gente por muito tempo. Li as anotações da Ema, fiz umas pesquisas lá em Punta Arenas, mas já já vão me desmascarar. E não me chame de Patrícia! Cuidado, você também! E que ideia foi essa de vir aqui fora? Tem a ver com a tal encomenda do colecionador?
— Claro, né? Preciso desse idiota pra me levar no local certo.
— Você está se revelando um perfeito bandido, mas estou mais preocupada é em te garantir o álibi. O que pode ferrar é essa porcaria de tempestade. Isso não estava nos planos.
— Pois é!
A ideia de Patrícia se delineara após ela e Carlos ouvirem causalmente parte da conversa entre Basílio e o almirante, no hotel Magallanes. Ouviram o suficiente: que o almirante iria à estação antártica e voltaria um dia depois. Embora Carlos não conhecesse o militar, tinha sido orientado, pela USP, a procurar o almirante H. Nunes, na área de embarque do aeroporto. E, parecia coisa do destino: o almirante H. Nunes praticamente materializara-se diante deles, como num estalar de dedos, no piano-bar do hotel. Um grande golpe de sorte!
— E essa sua ideia de fingir uma doença renal, será que vai dar certo?
— Já estava dando! Mas, se tivermos que ficar aqui mais tempo do que o planejado, aí não sei. Os remédios estão me dando sono!
E qual fora a brilhante ideia? Assim que chegassem, ela fingiria uma cólica renal. Com certeza, seria medicada. Passado algum tempo, a dor voltaria — e voltaria forte! Quando o almirante fosse embora, no dia seguinte, ela pediria para voltar com ele, a fim de ir a um hospital. Naturalmente, o pedido seria aceito. Carlos fingiria querer voltar com ela, mas ela insistiria para que ele ficasse, afinal "ele lutara tanto para estar ali, não poderia perder a chance de uma vida"; e ela não poderia arriscar, ficar na EACF com aquele problema de saúde tão instável; era prudente voltar e cuidar-se. Já em Punta Arenas, Ema seria vista saindo do hospital, após ter alta, e... Nunca mais! Quando encontrassem seu corpo, que Patrícia torcia para que demorasse muito, deduziriam que fora morta por alguém que a assaltara. Ema, reagindo ao assalto, supostamente fora esbofeteada e caíra, batendo a cabeça, com o meliante desovando o corpo naquela ribanceira. Decorrido muito tempo, seria difícil determinar a hora da morte. Iriam supor, então, que o óbito só poderia ter ocorrido depois dela ter saído do hospital, enquanto Carlos estava a 1000 quilômetros de distância do local do delito, ali na EACF, separando-o de Punta Arenas, simplesmente, o mar de Drake. Um álibi mais que perfeito!
— Tudo muito arriscado! E quanto tempo será que essa tempestade vai durar?
— Não sei! Mas vamos manter a calma — sugeriu ela.
— E ter cuidado com o delegado Basílio! — ponderou ele.
Patrícia desdenhou:
— Que nada! Apesar da fama dele, já está aposentado. Veio aqui passear.
— Sei não!
Aproximaram-se novamente de Ernani, que estacionara próximo a uma carcaça de baleia azul, de quase trinta metros de comprimento. Estavam ainda na praia, a menos de 100 metros da EACF. O meteorologista comentou:
— Foi Jacques Cousteau quem montou o esqueleto, com ossos que estavam espalhados na praia.
O famoso oceanógrafo e cineasta francês, em uma de suas incontáveis viagens, passara por ali, em 1972. O esqueleto era considerado como um grande chamado à humanidade, no que tangia à necessidade da preservação das espécies, não só pelos aspectos ecológicos, mas, fundamentalmente, pelo respeito que se deve a qualquer ser vivo.
Os três, agora, caminhando pelo lado de cima da estação, avistaram cinco cruzes. Ernani conduziu-os até elas, explicando que ali estavam enterrados membros de uma estação inglesa, desativada em 1961. E também um brasileiro, morto em 1990. As cruzes, de madeira tosca, fincadas em montes de pedras, traziam descrições sobre o acontecido, com os nomes e as datas de nascimento dos falecidos ingleses.
— A morte ronda esse lugar! — declarou Ernani solenemente.
— Crendices, Ernani! Mas é por causa dessas cruzes que esse morro é chamado de Morro da Cruz?
— Não, Carlos. Morro da Cruz se deve ao fato de haver uma cruz lá no alto.
A cruz fora colocada no morro após a primeira missa, celebrada em 5 de fevereiro de 1984, um dia antes da inauguração da EACF.
— Fizeram uma via-sacra ao longo da montanha, carregando a cruz, que depois foi colocada lá no topo.
Patrícia comentou:
— Você está por dentro de tudo, hem?
— Vocês também deviam! Não estudaram nada a respeito, antes de virem para cá?
Os dois deram de ombros. Ernani, intimamente, considerou uma total falta de respeito, o desconhecimento deles sobre a história do lugar.
— Que instalações são aquelas?
Carlos apontou para um antigo galpão de madeira, comprido e amarelo, estilo inglês, que ficava não muito longe da EACF. Se observado da enseada, ficava do lado direito da estação Comandante Ferraz. Ernani explicou:
— É a tal estação inglesa, desativada em 1961. Era uma estação de meteorologia, inclusive. Os sujeitos das cruzes... Trabalhavam lá!
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Nunca vi um meteorologista tão medroso! Que coisa! Vai ser covarde assim, lá adiante! Mas, essa Antártida é para bravos, mesmo! Nunca vi! Vamos prosseguir, nesse lugar inóspito? Sigam-me os bons!
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Assassinato no Continente Gelado
Mystery / Thriller🏆1º Lugar no Concurso Caneta de Ouro (Melhor Cenário) 🏆2º Lugar no Concurso Jane Austen 2022 (Romance) 🏆3º lugar no Prêmio UBE/Scortecci, 2005 (Romance). Estação Antártica Comandante Ferraz: uma nevasca e um crime! Dezoito pessoas incomunicá...