Retomo a narrativa, após um hiato em que apresentei fatos que não vivenciei (e não me perguntem porque narrei o que não vi, e por vezes o que vi, não narrei). Volto ao dia em que Patrícia e Carlos se encontraram no restaurante, em São Paulo. Naquele mesmo dia, decisões importantes selariam minha ida ao polo sul. Explico...
Para concretizar um sonho antigo, o de ter um sítio no interior de São Paulo. Tendo, porém, que contar com o aval da esposa para a assinatura dos documentos, foi-me imposta uma condição: a de que fizéssemos uma viagem a Punta Arenas. Na oportunidade, não pude conter o espanto:
— Punta Arenas? Onde fica isso?
— No sul do Chile, região da Patagônia...
E, para aumentar ainda mais meu espanto, ela arrematou:
— Próximo da Antártida.
— O quê? Antártida? Você só pode estar brincando.
— Antártida, não! Próximo dela.
— Se é próximo, é frio. E você sabe que não suporto lugares frios.
— Mas eu gosto! E por que somente as suas vontades devem prevalecer?
— Mas, Regina... Não dá para ser um lugar mais quente? Fernando de Noronha, por exemplo...
— Não!
Procurei contornar a situação:
— Tudo bem, vai, concordo com o frio, mas não poderia ser um lugar mais perto? Bariloche... Que tal?
— Não!
— Mas, que raios, por que Ponta Arenas?
— Ponta, não. Punta!
— Sim, ponta, punta, o que tem lá de tão especial?
— Dizem que a cidade é linda. E de lá, podemos ir ao parque Torres Del Paine, um dos mais belos do mundo. É pegar ou largar. Seu sítio em troca de Punta Arenas.
— Mas isso é uma coação!
— Basílio, ninguém está te forçando a nada.
— Mas...
— Nem mais, nem menos! Punta Arenas ou nada feito!
Como delegado de polícia, mesmo sabendo de muitas coisas erradas, nunca tirei proveito delas. Entendo que o bem mais precioso de um homem é sua integridade moral, porém, estaria eu aceitando um suborno pela primeira vez na vida?
Acabamos por comprar o sítio na pequena Taiaçupeba, cidade próxima de Mogi das Cruzes. Uma beleza de lugar, enfiado na mata atlântica e a meio caminho do litoral norte de São Paulo.
E, como não restasse a mim alternativa, enquanto Regina se encarregava dos detalhes com a agência de viagens, sentei-me ao computador e procurei inteirar-me sobre Punta Arenas.
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Tomamos um táxi em direção ao aeroporto de Cumbica, partindo da casa de minha mãe, no bairro da Penha. Minha mãe — uma senhora vivida, à época com 83 anos, mas ainda em vida ativa, era cheia de frases de efeito, como "Eu só não acerto na loteria", dita via de regra nas ocasiões em que suas desconfianças sobre uma pessoa se confirmavam. Outra: "Quem não arrisca não petisca", para nos incentivar a ter coragem. E a célebre "Deus vos pague, meu Deus", proferida apenas uma vez na vida, dada à excepcionalidade da situação (à primeira vista, redundante, mas com total sentido, a considerar Deus um Ser trino).
Colocamos as malas no carro ao som de diversas recomendações suas, insistindo para que o taxista aceitasse uma gorjeta. Minha mãe era a rainha das gorjetas. Todos a adoravam, frentistas, carteiros, lixeiros, entregadores de pizza. Desejou-nos boa sorte e pediu que telefonássemos assim que chegássemos, sacramentando: "Que Deus guie o piloto".
E assim, portanto, selou-se meu destino rumo ao frio antártico.
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Vinte e nove dias antes, no mesmo dia em que Patrícia e Carlos se encontraram furtivamente num restaurante da vida, o delegado Basílio começava a preparar suas malas... Estava escrito?*Não deixe de registrar seu voto e comentário. Grato.
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Assassinato no Continente Gelado
Mystery / Thriller🏆1º Lugar no Concurso Caneta de Ouro (Melhor Cenário) 🏆2º Lugar no Concurso Jane Austen 2022 (Romance) 🏆3º lugar no Prêmio UBE/Scortecci, 2005 (Romance). Estação Antártica Comandante Ferraz: uma nevasca e um crime! Dezoito pessoas incomunicá...