18 - Nevasca

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As horas que antecederam o crime foram muito agitadas

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As horas que antecederam o crime foram muito agitadas. Tudo aparentemente começou com a reunião no auditório. O almirante reuniu um grupo de 16 pessoas — dez militares (nove residentes, mais o piloto do helicóptero), cinco cientistas (entre eles, Ema e Carlos) e um visitante (eu). Naquela manhã, portanto — e incluindo-se o almirante, éramos 17 pessoas na EACF. Posteriormente, chegaria mais um capitão, completando 18 pessoas.

Explicou a todos, até com mais detalhes, tudo o que me contara na hora do café. Todos já sabiam, notificados via rádio, da medida provisória do governo federal, que suspendera as atividades e impedira o Ary Rongel de zarpar no porto do Rio.

Quanto aos três cientistas que já estavam na estação, eram figuras ímpares, cada qual com características únicas.

Inês Silveira, bióloga e oceanógrafa, pertencente à equipe de Ciências da Vida, envolvida nos "estudos da histofisiologia do peixe antártico, o notothenia neglecta".

Ernani Vidigal, meteorologista, da equipe de Ciências da Atmosfera, engajado no "estudo da variação diurna do campo geomagnético da ionosfera da Terra".

Humberto Romero de Souza, geólogo, da equipe de Ciências da Terra, empenhado nos "estudos hidrodinâmicos da circulação d'água da enseada no verão".

Ficava evidente, por essa amostragem, o porquê do impasse ideológico acerca de qual tipo de pesquisa adotar, se básica ou aplicada. Como convencer os investidores (o pessoal do dinheiro), das aplicações práticas do "estudo histofisiológico do peixe notothenia neglecta", por exemplo?

Falando em peixe, eu era um — e fora d'água, portanto, permaneci calado o tempo todo. Disperso, assustei-me quando um dos cientistas exaltou-se e levantou a voz para o almirante, tendo partido para as vias de fato. Havia sido o tal Humberto! Dada à força e pelo tamanho que possuía, difícil fora segurá-lo. Detido pelos militares, o almirante determinou que fosse confinado em seu alojamento, de onde não poderia sair, até nova ordem.

Eu o compreendia. Ele brigava por algo que sonhara por longo tempo e que agora se desfazia assim, sem prévio aviso. Todo o planejamento de meses, todo o tempo gasto em estudos e horas sem sono; o sonho de uma vida, tudo indo por água abaixo. Suas últimas palavras, antes de ser encarcerado, tinham sido:

— Incompetente! É isso que o senhor é. Nunca esteve engajado de verdade nesse projeto! Em um ano no cargo, pisou quantas vezes aqui? Um ilustre desconhecido, na EACF. Quem te conhece? Ninguém! Um absurdo! Tudo isso está acontecendo por sua causa. Custava levar a cabo, ao menos, as pesquisas desse verão austral? Palhaçada!

O almirante ordenou:

— Levem-no!

Humberto bradou:

— Desgraçado! Você vai me pagar!

A ação desequilibrada de Humberto era plenamente justificável, mas não podia ser abonada. Nada abona a violência, mesmo que ela se justifique! Humberto tinha razão em questionar o governo. Por que não levar a programação até o final do verão? Já não estavam todos ali, mesmo? A atitude do governo parecia mais uma retaliação à comunidade científica, do que uma real contenção de custos. O almirante, por outro lado, nunca pusera os pés na EACF? Se fosse verdade, outro aspecto no qual Humberto teria razão, embora a tivesse perdido, ao desacatar o militar.

Teria culpa, o almirante? Provavelmente sim, mas ele era tão somente uma das engrenagens do sistema, engrenagem esta já visivelmente desgastada, por sinal.

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Fui informado que um segundo Hércules C-130, proveniente de Punta Arenas — e que trazia mais carga para a base Presidente Frei, já enfrentava dificuldades, devido a uma tempestade que se aproximava. Felizmente, a viagem transcorria dentro do aceitável, com o pouso previsto para as 15h30, mas a informação sobre uma nevasca, avizinhando-se de nós, deixou-me de antenas ligadas, embora nada pudesse fazer a respeito.

Quanto ao helicóptero da EACF, após nos deixar na enseada Martel, retornara a Presidente Frei. Além de medicamentos, fora buscar um capitão da Marinha, que chegaria no segundo Hércules. Ele vinha substituir, provisoriamente, o chefe efetivo da estação, chamado às pressas em São Paulo, para resolver um problema particular. Segundo soube, a estação encontrava-se sem um líder oficial, há quase dez dias, o que indicava que a secretaria de Recursos do Mar designara o substituto com bastante atraso. Seria essa mais uma pisada na bola do almirante? Será que ele era do tipo de zagueiro, que sempre chega atrasado na bola, atropelando tudo?

O retorno do helicóptero estava previsto para as 16h30. O almirante, por sinal, estava apreensivo com o regresso da aeronave, pois, apesar de ser um voo de apenas meia hora, num percurso de, segundo ele, apenas 60 km, essa não era uma distância a ser desconsiderada, diante de uma nevasca.O que eu ficava pasmo de ver, no entanto, era a naturalidade com que as palavras "tempestade e nevasca" eram mencionadas por ali, não sabendo se isso poderia ser traduzido por "estamos seguros". E aturdia-me ainda mais, o fato do recurso mais próximo estar a 'apenas' sessenta quilômetros de nós! Um tiro de espingarda, como Torres del Paine! 

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Enfim, tudo o que o delegado temia, confirmando-se! A neve e o crime, ambos aproximando-se, traiçoeiramente! Eu não deixaria de continuar sob hipótese alguma! E o amigo leitor, o que fará?

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Assassinato no Continente GeladoOnde histórias criam vida. Descubra agora