— Acho que perdi a mão. Fiquei como um pugilista encurralado: nas cordas!
— Que nada!
— Ela me acuou!
Inês buscou gentilmente me consolar:
— Ema é muito esperta e soube se defender. Tem raciocínio rápido. Mas no que irão acreditar, na palavra dela ou na sua?
— Um bom advogado facilmente me engolirá — respondi. — Realmente, ela tem razão. Já não enxergo tão bem assim. Preciso de óculos para longe há algum tempo.
O almirante estava realmente solidário a mim, numa grande mostra de empatia:
— Não desanime, Basílio. Pra mim, foi ela. Ela matou o marido. Talvez tu até precise de óculos, mas se diz que não viu pegadas, eu acredito.
— E não vi mesmo!
E já titubeando:
— Quero dizer, acho que não vi.
O almirante estava um tanto quanto inconformado com a audácia de Ema e o fez transparecer:
— Não te deixe abater por causa dessa bióloga metida a promotor público! Acalme-se. Vamos interrogar o Ernani e dar por encerrado esse inquérito. Não quero mais desgastá-lo. Vamos terminar isso e deixar o resto por conta da Polícia Federal. O helicóptero talvez já possa decolar amanhã e as comunicações logo estarão reestabelecidas, essa é a nossa expectativa.
Senti que a confiança do almirante em mim, apesar do sentimento empático, fora ligeiramente arranhada pelo debate com Ema. Procurei retomar o fôlego e o domínio da situação:
— Meu amigo, não é tão simples assim. Houve um crime. Ninguém poderá sair daqui até a polícia liberar. Pode ser que nos retenham aqui, para averiguações.
O almirante posicionou-se reflexivo:
— Bem, vamos aguardar... Sabe, Basílio, naquela questão da fantasia sexual... Devo ter deixado a porta do meu alojamento entreaberta, o que facilitou o sujeito ver meu uniforme sobre a cadeira, embora não me lembre. E acredito nessa história de fantasia sexual. Era um garotão ao lado de uma mulher bonita — e como é linda, não é? Ele pode ter feito isso mesmo. Por isso, não acredito que adiaram a festinha. Para mim, ela o matou! Desde o primeiro instante, pensei nisso e continuarei pensando.
As evidências eram boas nesse sentido, mas eu buscava sempre a prudência. Queria estar certo — e não convicto. O almirante, empolgado, teceu uma teoria:
— Mesmo não podendo dizer como se deram os fatos dentro daquele quarto, o que acho que aconteceu foi o seguinte: Carlos tinha vestido o jaquetão para criar um clima de fantasia. Num dado instante, num movimento sensual, ela vem por trás dele e tampa sua boca, maliciosamente, com a mão esquerda e o apunhala com a direita. Carlos estava dominado por ela, pensando ser algum jogo sensual. E após o golpe, fraquejou.
Realmente, tive de aplaudir:
— Bravo, muito bom. E depois?
— Ela saiu do quarto, destrancou a porta de saída, para justificar a fuga de um suposto assassino e aí gritou. A ida ao banheiro só foi necessária para dar a ela o ensejo de dizer que vira alguém fugir.
— Excelente, meu caro. Mas temos que resolver a todas as dificuldades da questão.
O almirante mostrou-se, como algumas vezes, impaciente:
— E quais são as dificuldades no que propus?
— Por que ela não limpou as digitais do osso?
— Nem se lembrou disso. Usou o lenço na hora do crime — e o sangue prova sua utilização, mas se esqueceu de limpar as digitais, deixadas mais cedo.
— Ok, pode não ter se lembrado. Há o vinho da sala de vídeo, não podemos esquecer. Concordo. E a ausência de pegadas, dão-se justamente porque o vulto visto por ela, jamais existiu. Muito bom, almirante. É uma ideia boa. Mas, e o cantil? Por que ela o atirou fora?
O almirante bufou, como de costume:
— Basílio, tu sempre tem um inoportuno entrave. Assim fica difícil. Por que não foi ao oculista, antes de viajar?
Sorri, um sorriso apagado, porém:
— E pense noutra coisa: com vinho na cabeça, dificilmente teriam sido silenciosos, num jogo sensual, concorda?
O almirante disse:
— E você ainda diz que perdeu a mão? Bah!
Inês, que estivera apenas ouvindo nossa conversa, numa extrema demonstração de independência mental, pois ouvia e ao mesmo tempo já ia traduzindo para letra cursiva, os caracteres estenográficos, comentou:
— Sabem o que eu acho? Quando ficamos muito tempo pensando sobre uma coisa, parece que a nossa mente se embaralha e acabamos por não enxergar mais nada. Mas basta a gente se levantar e dar uma volta, quando retomamos, parece que tudo se resolve, num passe de mágica. Até dizemos: "Como é que não pensei nisso antes"?
— Em outras palavras, almirante, Inês está nos convidando para tomar um café. Já conheço a mesa de bar mais próxima, vamos?
Փ
Falando em cantil, havia esquecido de perguntar a Ema se o cantil encontrado na neve era mesmo de Carlos Eduardo. Procurei-a depois. Ela disse que sim e que as iniciais "CEA" significavam, de fato, "Carlos Eduardo Aranha". Ainda me apresentou uma teoria: o assassino o furtou para tomar um trago, afinal, estava bem frio lá fora. Depois, se desfizera dele, ao fugir pela porta. Seria até uma explicação razoável, não fosse a falta das pegadas. A menos, contudo, que eu realmente estivesse precisando de óculos!
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Tá vendo, o que dá a gente ser resistente ao envelhecimento? Agora, o coitado está quase na lona. Mas, enquanto esperamos, que tal tomar um cafezinho com o delegado?
*Registe seu voto e comentário. Grato.
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Assassinato no Continente Gelado
Mystery / Thriller🏆1º Lugar no Concurso Caneta de Ouro (Melhor Cenário) 🏆2º Lugar no Concurso Jane Austen 2022 (Romance) 🏆3º lugar no Prêmio UBE/Scortecci, 2005 (Romance). Estação Antártica Comandante Ferraz: uma nevasca e um crime! Dezoito pessoas incomunicá...