Capítulo 4

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A delegacia de Bastos era do outro lado da praça da prefeitura. Consistia de duas salas grandes separadas por uma menor com janelões de vidro, uma sala de recepção e três celas estreitas. Desde que se tornara delegado, Marcos nunca vira as celas ocupadas ao mesmo tempo, nem durante o torneio.
A auxiliar de serviços gerais da delegacia mantinha o piso antigo muito bem encerado e os diversos vasos com plantas sempre regados. O ambiente claro e cheirando à cera de abelhas parecia muito mais o saguão de uma pousada do que uma delegacia. Mas nem mesmo a aparência limpa e tranquilizante acalmava o coração de Marcos.
Fizera plantão naquela noite e agora estava apenas preenchendo papelada, porém sua mente continuava na esquina da rua principal, vendo Alexandra.
Como pudera ficar sem vê-la por mais de cinco anos? Suas mãos pararam sobre o teclado do computador. Fechou os olhos por um instante. Era como se os anos não tivessem passado...
— Vai dobrar, delegado?
Abriu os olhos para ver o cabo Ramos parado à porta. Ele também era novo no trabalho, viera de Ribeirão Preto.
— Não. Ficarei só mais um pouco. Vou aproveitar pra colocar a papelada em dia.
— É a pior parte do trabalho.
— É, sim.
Ramos se sentou.
— Atendeu a ocorrência hoje cedinho. Poderia ter deixado para mim ou para o Rui.
Marcos esfregou o rosto.
— Rapaz, foi a segunda vez em  quinze dias.
— Ela não deveria viver sozinha naquela casa.
— Dona Martinha só sairá daquela casa dentro de um caixão.
Ramos deu três batidinhas na beira da mesa.
— Deus a conserve.
Marcos ainda ficou um bom tempo conversando com o policial, enquanto completava relatórios. A alternativa era ir para casa e ficar pensando em Alexandra.
De que adianta pensar? - concluiu.  Alexandra estava perdida para ele há alguns anos.
Mas como gostara de revê-la... O telefone de uma das salas tocou e viu Andressa, uma  investigadora atender. Pelo semblante dela imaginou que era algo desagradável. Ela fez sinal para ele pegar o telefone. Marcos pegou o telefone em sua mesa e atendeu a um importante pecuarista da cidade. Mesmo o delegado assistente tendo chegado, preferiu organizar seus relatórios e preferiu almoçar com os companheiros de trabalho.
Depois despediu-se da equipe e saiu da delegacia para encarar seu compromisso de algumas tardes. Dirigiu para uma rua afastada do centro da cidadezinha, para um condomínio murado. Aquele era um dos empreendimentos surgidos na cidade nos últimos anos, construído para receber cidadãos que fugiam da cidade grande em busca de uma melhor qualidade de vida. Cumprimentou o porteiro e entrou, dirigindo em baixa velocidade. Parou em frente à uma casa elegante de dois andares e saltou do carro, torcendo para não precisar se aborrecer.
Sua vontade, porém, não foi atendida. Antes que batesse à porta ela se abriu, revelando uma jovem mulher.
Marcos a encarou, insensível à beleza dela. Alta e esguia, tinha cabelos louros longos que cacheavam nas pontas, os olhos de um verde profundo iluminavam o rosto muito bonito e uma covinha no queixo lhe dava um ar juvenil.
— Eu pedi para você chegar mais cedo.
— Boa tarde, Maria Eduarda.
Ela franziu os lábios.
— Você tem que conversar com a orientadora.
— E vou conversar.
— O quê? Dois minutos?
— Se a orientadora quer falar comigo vai arranjar um tempinho.
A linda mulher bateu o pé no chão e ele olhou para baixo, vendo as pernas longas e bem feitas.
— Para você tudo é fácil, não é, Marcos?
Ele inspirou fundo, decidido a não entrar numa discussão.
— Pedro está pronto?
— Há muito tempo.
— Então o chame, por favor.
Ela cruzou os braços e bateu novamente o pé. Marcos tentou disfarçar a irritação. Era sempre a mesma coisa.
— Espero que você esteja indo de mente aberta. - ela falou.
— Pra quê?
— Para falar com a orientadora.
— Estou indo.
— Com esse ânimo? Tudo sobre sobre o Pedro Luís deveria ser prioridade para você.
— E é. Pode chamar ele?
Maria Eduarda apertou os lábios, mas se virou. Andou até um corredor e chamou o filho. Marcos deu um pequeno sorriso quando ouviu a voz do menino, que surgiu de uma porta e percorreu o corredor saltitando. Marcos estendeu os braços para o filho.
— Pronto pra ir, campeão?
— Prontinho!
O menino se jogou em seus braços e ele o ergueu.
— Caramba! Alguém aqui está super pesado!
— Eu comi muito hoje.
— Foi macarrão?
— Como é que você sabe?
— Tenho poderes de adivinhação.
— Duvido!
— Pode acreditar.
Marcos olhou para a mãe do menino.
— Eu vou buscá-lo também.
— Ele tem natação.
— Eu posso levar.
Ela se aproximou e beijou o menino.
— Estude direitinho, viu?
— Tá.
Marcos fez um aceno com a cabeça para Maria Eduarda e se virou. Não ouviu a porta fechar e imaginou que ela os estivesse observando.
Foi conversando com o filho durante toda a pequena viagem. Chegou na escola particular, comparando-a com as escolas públicas do município; a maioria dos alunos era filho dos grandes pecuaristas da região. Não havia lugar para pobres naquela instituição. Ele mesmo jamais poderia ter sequer entrado numa escola como aquela.
Entregou o menino na portaria e esperou até um inspetor levá-lo até a sala da orientadora.
O homem bateu na porta e, instantes depois a mulher sorridente e maternal abriu a porta.
— Boa tarde, delegado.
— Só Marcos, por favor, Ilma.
A mulher baixinha sorriu mais uma vez. Ela sabia muito bem quem ele era.
— Claro, Marcos.
Ela apontou para uma cadeira e ele sentou-se de frente a uma mesa sentindo-se desconfortável com os sorrisos dela e logo entendeu o motivo.
Sem economizar palavras, porém com  gentileza, relatou o comportamento do filho nas últimas semanas.
Marcos a ouvia sentindo o rosto queimar. Ouviu-a falar da agressividade de Pedro com alguns coleguinhas, das palavras duras direcionadas até mesmo a ela e de como o menino ganharia se tivesse ajuda de um terapeuta. Ele ouviu e ouviu, entretanto confuso, perguntou:
— Desculpe, mas a mãe dele está sabendo disso tudo?
— Está, sim. - ela o olhou simpaticamente. — E como o relacionamento de vocês parecer ser a fonte dos problemas do Pedro...
Marcos ergueu as sobrancelhas.
— Como é?
— Desculpe falar de um assunto tão delicado. - juntou as mãos. A Maria Eduarda explicou que como estão separados... Isso mexe muito com a cabecinha da criança.
— Eu e a mãe do Pedro não somos separados.
Ilma o encarou, constrangida.
— Bem, pelo que ela falou eu pensei que vocês tinham... A Maria Eduarda disse que ele sente muito a sua falta em casa.
A orelha de Marcos pegou fogo.
— Eu e a mãe dele nunca moramos juntos. - remexeu-se no banco. — Não vivi com o Pedro.
Ela fez uma expressão de confusão e começou a desculpar-se.
— Eu pensei, pelo que a mãe me disse, que estavam juntos. Me perdoe, Marcos. Maria Eduarda pediu que eu conversasse com você para que soubesse das dificuldades do seu filho. Será que entendei errado?
Marcos tentou deixar Ilma menos constrangida. Não  era a primeira vez que alguém da cidade  pensava que ele e Maria Eduarda estavam juntos.
— Não. Não entendeu, não.
Com o rosto muito vermelho, Ilma sugeriu que ele conversasse com a mãe de Pedro Luiz. Logo tratou de encerrar a conversa.
Marcos  saiu da escola desanimado, sabendo que aquela situação era mais uma das estratégias de Maria Eduarda para perturbá-lo. Como o menino sentia sua falta em casa se nunca moraram juntos?
Entrou na viatura e saiu pelas ruas da cidade chateado por Maria Eduarda, contudo principalmente furioso com ele mesmo, porque uma noite  não soubera manter as calças fechadas.
Pensou em Alexandra, sentindo-se patético. Ela nunca, nunca iria perdoa-lo.

Lembranças de uma paixão  ( concluída)Onde histórias criam vida. Descubra agora