Capítulo 6

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Marcos procurava levar sua vida na mais completa calma e organização. Passara a infância e adolescência no meio do caos que era a convivência com  sua mãe. Não conhecera seu pai, mas tivera mais padrastos do que conseguia se lembrar, tantos foram os amantes da mãe. A fome fora sua companheira de quase todos os dias. Tudo o que tinha, roupas, sapatos, comida, vinha da caridade dos moradores de Bastos. A melhor parte de seus dias eram passados na escola, mas suas noites eram controladas por quanto sua mãe havia bebido. Aos onze anos descobrira que podia ganhar dinheiro fazendo alguns pequenos trabalhos e assim fez por anos.
Para a cidade, nada seria mais esperado do que tornar-se um bêbado como sua mãe, entretanto no seu caminho acontecera dona Lídice e suas amigas da igreja. A senhora não só se preocupara com sua sobrevivência como com seu  desenvolvimento como pessoa.
Marcos se acostumara a ser considerado o lixo branco da cidadezinha, um ninguém gerado por sabe lá quem e criado por uma mulher viciada e promíscua. No entanto, dona Lídice abrira a porta de sua casa para ele, permitira que convivesse com sua neta. A neta que ele amara mais do que a própria vida, a neta que o amara apesar da sua origem. A garota que ele traíra.
Respirou fundo diante da oportunidade de vê-la e falar com ela. Alexandra estava mais bonita do que se lembrava e o olhava com o queixo erguido, parecendo ser o que era de fato, uma mulher bem sucedida da cidade grande. Naquele instante se sentia novamente o garoto que vivia num barracão no meio do lixo.
Passou a mão nos cabelos antes de falar.
— Eu quis te encontrar todos esses anos. Te liguei várias vezes ao dia, todos os dias, até a linha ser desativada.– ela apenas o encarou. — Antes disso, fui te procurar em São Paulo, mas você havia mudado. Tentei convencer sua avó a me dar seu endereço ou pelo menos o número do seu telefone; implorei à Sophia, mas só me responderam que você não queria me ver.  – Alexandra franziu os lábios, mostrando impaciência. —  Quero que entenda que eu fiz de tudo para te encontrar.
-— Ok. Entendi.
Marcos resolveu desconsiderar o olhar frio que ela lhe dava.
— Preciso que me perdoe.
— Isso ficou no passado.
— Não pra mim. Penso em você todos os dias.
— Sua esposa sabe disso?
— Esposa? – ele a olhou, surpreso. — Eu não tenho esposa.
Alexandra piscou rapidamente e ele percebeu que ela também ficou surpresa.
— A mãe do seu filho. Aliás , é um menino mesmo? – balançando os ombros ela descruzou os braços. —  Esquece, não me interessa.
— É um menino, sim. E ele mora com a mãe.
Erguendo as mãos, Alexandra deu um passo para trás.
— Não me interessa. – repetiu.
— Eu nunca me casei.
—  Eu já disse que...
— Já sei que não te interessa. – ele se aproximou dela. — Eu preciso que me perdoe, senão eu nunca terei paz.
Alexandra o olhou de cima a baixo.
— Você me parece muito bem.
— Pareço? Eu me sinto um nada...
Ela recuou novamente.
— Então assumiu quem sempre foi?
Marcos sentiu uma onda de calor tomá-lo e sabia que até suas orelhas estavam vermelhas. Apertou os punhos e inspirou, procurando se reequilibrar. O garoto sujo e abandonado voltou com força total.
Ela engoliu em seco e balançou a cabeça.
— Me desculpe... – tirou o elástico dos cabelos e os soltou, apenas para tornar a torcê-los e prender num coque.  —  Olha, a gente não tem nada mesmo para conversar.
Ele apertou os lábios e, apesar do bolo que sentia na garganta, continuou a falar.
— Eu peço que me perdoe pelo que eu fiz. Você não merecia.
— Não merecia mesmo.
— Se eu pudesse voltar atrás...
— Mas não pode.  – ela encheu o peito de ar. —  Deixe isso para lá.
—Você me odeia. – ele afirmou.
Alexandra franziu as sobrancelhas e ele notou um brilho molhado em seus olhos.
— É, eu te odeio.
Marcos acreditou nela, mas doeu ouvir.
— Sinto muito.
Os lábios de Alexandra tremeram e ele sentiu vontade de abraçá-la.
— Agora podemos encerrar esta conversa?
— Alexandra...
Deu um passo para ela que ergueu as mãos, como se pudesse pará-lo.
— Marcos, só... – apertou os lábios. — Só me deixe em paz, ok? Vá viver sua vida e seja muito feliz.
Desconcertado, Marcos deu mais um passo, porém o elevador se abriu e dona Leandra saiu. A  elegante senhora o encarou e marchou até ele.
— Ainda está aqui, rapaz? – perguntou, sem disfarçar o desprezo.
— Estou conversando com Alexandra.
A senhora olhou de um para o outro.Alexandra se aproximou dela.
— A conversa já terminou, tia.
— Que bom! O delegado deve ter trabalho para fazer.
— Me dá licença, Marcos. – Alexandra segurou a tia pelo braço e se afastou.
Ele quis seguí-la, mas notou que todos no saguão da recepção os olhavam. Imaginou que não seria digno o delegado da cidade fazer uma cena em público. Acenou para Sophia, que devolveu o gesto com um olhar de compaixão.
Saiu do hospital sem saber se estava com mais raiva ou mais  vergonha. Vergonha por ter sido rejeitado e raiva pelo menosprezo de Alexandra e sua tia. Há muitos anos aquelas pessoas o receberam como um igual, entretanto naquele momento o trataram como um ser inferior!
Diabos, ele conseguira construir sua vida naquela cidade! Deixara de ser um marginalizado para ser um jovem trabalhador e estudante esforçado. Fora aprovado numa faculdade pública e depois passara com destaque no concurso para delegado da Polícia Civil. A Câmara de Vereadores o havia homenageado, caramba!
Entrou na viatura, batendo a porta com força. Ela não queria falar com ele e tinha seus motivos, mas o fizera se sentir um lixo.
Então assumiu quem sempre foi?
Dirigiu para fora do centro da cidade, passando em alta velocidade pelas ruas de barro.
Um dia Alexandra o convencera que ele tinha um grande valor. Ela o incentivara a estudar e se afastar do título do filho da bêbada da cidade. E ela nunca o olhara com a frieza daquela tarde. Antes seu olhar era de admiração e depois de amor e desejo. Ele não fora um nada para ela.
Diminuiu a velocidade e estacionou debaixo de uma mangueira. Cruzou os braços sobre o volante e descansou a cabeça sobre eles.
Onde estava o homem tranquilo e seguro que era?
Fechou os olhos e lembrou de suas palavras.
É, eu te odeio.
E ele provocara aquilo. Ele que numa noite de bebedeira, ciúmes e insegurança fizera sexo com outra mulher e traíra a mulher que amava tanto. E Alexandra o amara, tinha certeza daquilo. Alexandra esperava o melhor dele e reconhecia que continuara a lutar aqueles últimos anos para provar que podia ser o homem que ela acreditara que ele seria.
Ergueu a cabeça e se sentou direito. Ela não o amava mais; era passado. Ligou o carro e decidiu que precisava trabalhar um pouco.

Lembranças de uma paixão  ( concluída)Onde histórias criam vida. Descubra agora