Capítulo 2

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A delegacia de Bastos era a única no município. Com menos de dez mil moradores, o delegado, o subdelegado, os três detetives e a meia dúzia de policiais militares davam conta do serviço que, geralmente, consistia de roubos à residências e detenção de usuários de drogas. Havia também uma boa parcela de conflitos familiares e pedidos inusitados.
Naquela início de manhã, o delegado Marcos Ribeira atendia ele mesmo um daqueles casos peculiares. Dona Martinha ligara pedindo que ele fosse até sua casa e expulsasse invasores. Não era a primeira vez que a imaginativa idosa pedia socorro; volta e meia a octogenária via andarilhos invadindo seu quintal e roubando sua horta. Ocorria que em todas as vezes que ela ligara não havia nenhum vestígio de andarilhos e a horta parecia a mesma de sempre.
Marcos atendia a velha senhora com todo o respeito possível. Aquela mulher o alimentara muitas vezes quando tudo que havia na pocilga que chamava de casa era uma garrafa de aguardente barata. Comera muitos ensopados com os vegetais da horta bem cuidada.
— Mas você olhou no barracão? – ela perguntou com olhinhos que pareciam duas jabuticabas.
— Olhei, dona Martinha.
—  Viu a saca de milho tombada?
— Acho que foi o Brejeiro.
— Meu cachorro não come milho! Pode anotar que mexeram no saco de milho!
Marcos fingiu anotar a informação, deixando a idosa trêmula mais segura. Os filhos dela haviam mudado da cidade há décadas, entretanto ela se negava a abandonar a casa onde vivia já por sessenta anos.
Ele sabia que alguns vizinhos davam o máximo de assistência à antiga moradora, mas ela realmente estava idosa demais para viver sozinha.
— Anotou, meu filho?
— Anotei, sim. – guardou a caderneta e passou a mão nos cabelos dourados. — A senhora quer que eu ligue para os seus filhos?
— Pra quê? Aqueles lá só querem uma desculpa para me tirar daqui!
— Mas não seria bom morar perto deles? Eu soube que a senhora ganhou mais um bisneto.
O rosto enrugadíssimo se esticou com um sorriso.
— É uma bisnetinha. Angélica.
E a boa senhora se perdeu em descrições do último bebê nascido na família. Marcos deu toda atenção à senhora. Por muitas e muitas vezes ele fora tratado como um neto por dona Martinha. Fez um esforço em não olhar para o relógio, afinal estava ainda no início do dia.
Ouviu mais um pouco sobre a família da velhinha, deu umas voltas no quintal e aceitou a xícara de café, que ele sabia que encerraria a diligência.
Levou aquela hora no ritmo de dona Martinha, anotando para si mesmo que ligaria mais tarde para um dos filhos dela.
Com muita pena, despediu-se da idosa e foi até o carro. Ligou o rádio e avisou que estava voltando para a delegacia.
Dona Martinha morava próximo do centro da cidade, onde estavam as casas centenárias com imensos quintais com árvores frutíferas e as hortas caseiras. Marcos percorreu a rua comprida sem pressa, como fazia há mais de duas décadas. Gostava das fachadas das casas, dos muros quase escondidos pelas trepadeiras floridas e dos entricados portões de ferro.
Nunca tivera vontade de deixar aquela cidade. Nem mesmo quando era um menino maltrapilho tratado com desdém por seus moradores.
Era delegado há quase dois anos e ainda havia pessoas que pensavam nele como o filho da bêbada Gilda.
Não conteve um suspiro ao pensar na mãe. Ela não era mais uma bêbada, porém ainda a chamavam daquilo. Os moradores que Marcos protegia eram as mesmas pessoas que o olhavam disfarçando um desprezo antigo.
Deu de ombros. Ninguém podia tirar dele o que havia conquistado.
Virou na direção do centro da cidade e viu uma figura correndo. Ficou alerta, contudo notou pelo ritmo sincronizado que era um corredor madrugador.
Está cedo pra ser um turista. - pensou, lembrando da festividade que aconteceria no final do mês. Uma vez por ano a cidadezinha promovia um torneio de peão de boiadeiro e era invadida por turistas e pelos estudantes da faculdade federal no município vizinho. Marcos reconhecia que a cidade se preparava um ano inteiro para aquela festa e que ela era uma importante fonte de renda, porém ficava arrepiado com o tumulto que vinha com ela.
A viatura se aproximou do corredor solitário. Percebeu que era uma mulher negra. Um short de ginástica revelava as curvas de um traseiro bem feito e coxas roliças. Um rabo de cavalo escapulia por um boné e ele já conseguia distinguir os cachos escuros. Uma sensação incômoda o tomou. Ele conhecia aquele corpo, aqueles ombros erguidos. Segurou o volante com força, reparando nas passadas curtas, mas rápidas da corredora. Sentiu seu intestino se retorcendo e notou que a corredora subia na calçada. Com os olhos arregalados e o coração martelando no peito, acelerou e jogou o carro na esquina, cortando a corrida ao amanhecer.
A mulher parou assustada e ergueu os braços como se pudesse parar o automóvel.
Marcos freou e abriu a porta, sem desligar a viatura.
Foi então que a mulher o olhou. Ele reconheceu imediatamente os olhos grandes e amendoados, as maçãs do rosto altas e a boca - Meu Deus aquela boca! - que estava aberta em espanto.
— Alexandra! - conseguiu falar, a voz estrangulada como se estivesse sem ar. — Alexandra... – murmurou, impactado demais.
Ela também o reconheceu.
— Marcos...
— O-oi. – gaguejou.
— Oi.
—  Eu não sabia... N-não sabia que estava na cidade.
Ela apenas o encarou. Marcos podia ver seus seios subindo e descendo e parecia mais sem fôlego do que a corrida causaria.
Ele colocou as mãos na cintura, porque não sabia o que fazer com elas. Seis anos, seis anos que não a via!
Seus olhos correram por ela toda. Parecia tão igual, entretanto tão diferente do que a vira pela última vez. Ele a observou com atenção, tentando descobrir o que havia de tão diferente. Alexandra o fitava como se fosse um fantasma.
Percebeu quando ela notou o carro.
— Você é um policial?
— Eu sou o delegado. – ela abriu a boca, surpresa. — Você não sabia?
— Claro que não. – declarou, olhando-o com desconfiança. — Você terminou a faculdade?
— Eu terminei... Achou que eu não faria?
Ela abriu a boca como se fosse dizer algo, mas desistiu. Olhou-o com as sobrancelhas franzidas, como se estivesse intrigada.
Marcos deu um passo em sua direção e ela recuou. Ele estendeu a mão para Alexandra.
— Q-quanto... – inspirou, tentando controlar a gageira. — Quanto tempo.
—  É.
— Quando chegou?
— Ontem.
Ontem? Ela estava na cidade desde ontem?
— Estive no hospital ontem... Sophia não me disse que tinha chegado.
Um portão se abriu e um homem idoso colocou a cabeça para fora. Olhou- os com interesse.
— Bom dia, delegado.
—  Bom dia, seu Damasceno.
O velhote arregalou os olhos quando a viu.
— Bom dia, Alexandra.
Ela teve um pequeno sobressalto ao ouvir seu nome.
— Ah... Bom dia.
—  E como está a sua avó?
— Estável.
— Rezei por ela ontem.
— Muito obrigada.
O velhote permaneceu no portão, olhando de um para o outro. Ela balançou a cabeça.
— Eu vou indo...
—  Quer uma carona? - Marcos perguntou, procurando um motivo para continuar perto dela.
— Hã... Ah, não... Obrigada. É só mais uma quadra. - olhou para o vizinho curioso. - Bom dia, seu Damasceno. Até logo. - deu um rápido olhar para Marcos. - Bom dia.
E saiu correndo.
Ele a acompanhou com o olhar até ela dobrar a próxima esquina e desaparecer de vista.
A manhã, de repente, lhe pareceu muito fria. Encarou Damasceno, fez um aceno com a cabeça e entrou no carro. Manobrou para voltar ao seu caminho.
Dirigiu de volta à delegacia, sentindo-se estranhamente entorpecido. Desde que soubera do infarto de dona Lídice, cogitara a possibilidade de Alexandra vir à cidade, mas aquilo lhe parecia improvável. Agora ela estava ali, tão perto.
Diminuiu a velocidade e encostou a viatura no meio fio. Desligou o carro e, cruzando os braços sobre o volante, descansou a cabeça sobre eles. Ela estava ali.
Meu Deus...

Lembranças de uma paixão  ( concluída)Onde histórias criam vida. Descubra agora