Capítulo 15

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Alexandra desembaraçava o cabelo em frente à penteadeira, enquanto ouvia a última mensagem de Rodrigo. O namorado a enviara enquanto enfrentava o trânsito do início da noite em São Paulo. Ele explicava porque não poderia passar o final de semana com ela em Bastos, já que surgira um compromisso imprevisto.
Ela suspirou. A presença dele ali seria muito importante. Precisava se reconectar com sua vida em São Paulo, precisava sentir a felicidade por ter Rodrigo em sua vida.
A conversa mais cedo com Sophia a deixara incomodada. Era natural sentir-se aborrecida com a presença de Marcos, achava. Afinal, ele a magoara tanto que aquilo ficara marcado como fogo em seu coração. Era só desprezo o que sentia por ele.
Passou o pente com mais vigor nos cabelos crespos. Quando estava com Marcos seu cabelo era comprido e alisado, bem diferente do corte médio e dos cachos crespos de agora. Estalou a língua; não tinha nada que comparar sua vida de agora de quando era de Marcos.
Um arrepio a percorreu ao lembrar de como antigamente se considerara dele.
Marcos entrara em sua vida muito cedo. Ele era apenas mais uma criança que a avó patrocinava. Mas quando ele entrava em sua casa se via presa pelos olhos tristes e ombros curvados. Claro que conhecia a história dele, contudo isso só a fazia admirá-lo mais. Acostumara-se a vê-lo pela cidade, fazendo pequenos serviços aqui e ali e vira quase como uma vitória pessoal quando sua avó conseguira um emprego para ele no escritório de advocacia.
Quando completara dezesseis anos tomara coragem e todos os dias, quando voltava do colégio fazia questão de acenar para ele ao passar sob a janela do escritório. E sentia um calor no peito ao saber que ele estava à janela todos os dias quando ela passava.
Mais tarde, acostumara-se a encontrar as amigas todo final de tarde na praça e ele sempre se oferecia para acompanhá-la até em casa. Faziam semanas que estavam naquela rotina quando ela decidira dar o primeiro passo e o beijara quando se despediram no portão. Um tempo depois Marcos confessara que não se sentia à altura dela, por isso nunca tentara nada.
Alexandra segurou o pente no ar, uma pontada de dor vindo com a lembrança. Marcos se sentia diminuído diante dos diplomas e classe de sua família e ela sempre o incentivava dizendo que ele poderia ser quem quisesse.
Não queria aquelas lembranças, não queria pensar nele, não queria tê-lo encontrado. Voltou a desembaraçar os cabelos, com mais força do que precisava.
Você esqueceu mesmo o Marcos?
A pergunta de Sophia a aborrecera bastante e permaneceu chateada depois que a prima fora embora.
Era claro que tinha esquecido Marcos! E se pensava nele era apenas por tê-lo reencontrado.
Engoliu em seco. Não esperava ficar tão abalada como ficara. Quando começara a viagem para Bastos imaginara que o veria uma hora ou outra; um leve ressentimento seria esperado e nada a mais.
Sophia tinha razão? Ela fugira antes e continuava fugindo?
Uma imagem dele encheu sua mente. Marcos tirando os óculos na estrada deserta e o olhar intenso que ele enviou. Seu rosto mudou mais do que deveria em seis anos, a barba por fazer fazendo-o parecer com mais do que seus trinta anos.
Deu um gemido sofrido ao lembrar do quando ainda era bonito.
Quando começara a namorar Marcos sua tia Leandra dissera que deveria procurar um bom rapaz negro. Alexandra, porém sabia que não era a cor de Marcos que incomodava e sim pela miséria de onde ele viera. Ela superara todos os comentários enviesados, todas as menções à mãe dele e a todos os olhares preconceituosos que recebiam.
Para quê? Para ele me trair?
Quando soubera da traição, sua tia não deixara de mencionar que Maria Eduarda era branca e loura.
Uma das coisas que mais a machucara fora o fato da garota ter feito bullying com ela na escola e desrespeitá-lá ao dar em cima de Marcos. Era como se ele tivesse escolhido a garota que mais a humilharia ao traí-la.
Largou o pente e levantou-se da penteadeira; sentia-se sufocada. Decidiu dar uma volta pela cidade.
A hora seguinte foi gasta na charmosa praça da cidade, recebendo conforto pela doença da avó e dando notícias sobre ela. Andando pela calçada antiga, curtindo o ar fresco e perfumado pelos arbustos floridos, Alexandra sentiu que era como nunca ter saído de Bastos. Era bom reconhecer quase todos os rostos na praça, saber que haveria uma missa dali a pouco e de que o sorveteiro lembrava que ela adorava picolé de milho-verde.
Esqueceu a vida agitada e excitante em São Paulo para usufruir da mansidão da cidade pequena.
— Alexandra?
Interrompeu sua caminhada pela praça quando ouviu a voz rouca. Um desejo de fugir quase a vez se virar correndo, porém se controlou. Olhou para a mulher que a chamara e tomou um susto. A mulher na sua frente tinha a mesma voz da mãe de Marcos, mas não poderia ser tão diferente.
—  Gilda?  – perguntou, surpresa.
— Como vai, minha filha?
A mulher a abraçou pelo pescoço e beijou seu rosto. Alexandra foi envolvida por um delicado perfume floral, tão diferente do cheiro acre de bebida que sempre envolvera aquela mulher.
Gilda se afastou, mas continuou segurando Alexandra pelos cotovelos.
— Como você está bonita, Alexandra!
— Obrigada. – murmurou, ainda impactada pelas mudanças na mulher à sua frente.
Diferente do antigo cabelo curto e ensebado, Gilda usava um penteado simples e bonito; as ondas de seus cabelos loiros brilhando com mechas grisalhas. O corpo que fora esquelético agora mostrava curvas nos lugares certos e o  rosto outrora encovado e macilento revelava uma pele saudável e bem cuidada. Uma maquiagem leve cobria sua boca e olhos e Alexandra percebeu que ela era muito bonita.
— Você está ótima, Gilda!
— É, os anos foram bons comigo.
— Foram... Você está muito bonita.
Gilda deu um sorriso e Alexandra comparou os dentes claros com os manchados de cigarro do passado.
Ela apontou para uma rua lateral.
— Acabei de sair da igreja. Decidi comprar um picolé e te vi.
—  Ah... – Alexandra olhou para a rua onde sabia que havia uma igreja evangélica pentecostal. Gilda estava em uma igreja?
—  Como está sua avó?
— Hoje ela acordou e falou um pouquinho. Estamos esperançosas.
— Graças a Deus! – Gilda a admirou, mostrando um prazer real. — Que bom te ver, minha filha!
Alexandra lembrou-se que sua interação com Gilda sempre fora resumida a visitas severamente controladas por Marcos e encontros na rua quando ela estava totalmente bêbada. Lembrava-se que Gilda a chamava de norinha inteligente.
A mulher a olhou de cima a baixo.
— Marcos já te viu, não é?
O rosto de Alexandra pegou fogo.
— Ah... já.
— Fico tão feliz que tenham se visto! Vocês precisam resolver essa história. É muito amor envolvido. – tomada de surpresa, Alexandra não soube o que responder. — Vocês conversaram?
— Sim. –respondeu, muito sem graça.
— Eu sonhei que vocês iam se ver novamente. – juntou as mãos, como se orasse. — E agora você está aqui!
— Vim por causa da minha avó. – replicou secamente.
— Eu sei, eu sei. Mas Deus age de maneiras que não entendemos sempre. – Gilda esfregou as mãos. — Precisamos nos encontrar pra conversar.
— Hã...
— Quero te falar da minha transformação... E de Marcos.
— Eu não sei se...
— Amanhã, que tal? Posso ir na sua casa?
— Bem...
— Ou você pode ir na minha. – Gilda observou o rosto espantado de Alexandra. – Eu não moro mais com meu filho, não se preocupe.
Constrangida por não ter uma negativa ao convite da mulher, Alexandra concordou.
— Pode ser na casa da vovó.
— Ótimo! – Gilda curvou-se e a beijou nas bochechas. — Vou amanhã de tarde .
— Às duas horas visitarei minha avó.
A mulher deu um sorriso feliz.
— Eu vou tomar o café da tarde com você. Avise a Fernanda que vou esperar a broa de fubá. Agora vou atrás do meu picolé. Beijos!
Gilda atravessou a praça e Alexandra ficou parada por um bom tempo, surpresa demais para se mexer. Viu Gilda comprar um picolé e sair andando alegremente. Aquela, sim, era uma incrível novidade!
Voltou para casa refletindo que a vida gostava de nos surpreender.

Lembranças de uma paixão  ( concluída)Onde histórias criam vida. Descubra agora