Capítulo 20.

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Bato a porta, quando o carro é estacionado. Permaneço em meu lugar, por segundos. Quase não sinto os pingos gelados nos ombros. Caminho até a frente do prédio. No entanto, quando passo pela porta, ouço uma voz. Sua voz.

- O que faz aqui de novo? - enrijeço. Sua voz é baixinha. Ligeiramente triste, o que faz meu peito trancar. - Não acha que me humilhei o suficiente, é isso? - viro-me para ela, prestes a negar.

Mas a visão retira meu fôlego. Embaraça minha capacidade de fala. Foram apenas dias, mas aparentam ter sido semanas. Semanas em que evitei pensar nela. Carolina está de capa de chuva, embora suas roupas estejam molhadas por baixo. Seu corpo está coberto por um plástico, aos pingos, molhando o carpete do local. Suas bochechas estão coradas, os lindos olhos esverdeados e traços finos sob a luz amarelada.

Veste uma camiseta bege, calça jeans e botas de salto baixo. Seus cabelos estão unidos em uma trança só, pequenos fios espalhados ao redor de seu rosto. Meu peito acelera com a imagem. Quero secá-la, debruçá-la e esquentá-la de coisas que não deveria querer.

Tento me concentrar.

- Ah. Você veio buscar o livro, não veio? - ela olha para uma caixa ao lado da porta.

Vai em direção à ela, tirando de dentro o livro que a dei. Percebo agora que o local está coberto por caixas. Ela se aproxima de mim, mas dois segundos depois, recua um passo longo. Sinto algo afiado no peito. Então, estende o objeto em minha direção. Mantenho as mãos paralisadas.

- Eu não...

- Você já tem seu livro, Crusher. - ela abaixa a cabeça de leve. - E eu já pedi desculpas pelo que eu fiz. Pode ter certeza de que eu me arrependo e sinto vergonha por aquele dia.

- Não vim pegar seu livro. - é só o que consigo dizer. Ela ergue o rosto, olhando para mim.

- Não? Então veio fazer o quê aqui?

Não lhe respondo nada. Não consigo, a princípio. E então, seus olhos começam a se tornar afiados. Esta é uma nova expressão vinda dela. Uma que nunca vi. Nunca presenciei. Nunca lhe proporcionei.

- Olha, eu agradeço mesmo que você tenha vindo aqui pegar seu livro, porque se não, eu mesma o teria lhe entregado e faria questão de deixá-lo com você, ainda mais depois daquela humilhação e do constrangimento e repulsa que eu lhe causei, porque não sou do tipo de pessoa que fica com a coisa dos outros mesmo depois de ter se colocado em uma situação como aquela, que foi te deixando desconfortável e completamente enojado. Então, se não se importa, poderia apenas pegar a droga do livro? Assim não precisaria adiar o nojo que é ficar em minha frente e tudo o mais. - ela empurra o livro para o meu peito, seus olhos queimando em fúria. E mais algo, que não consigo reconhecer. - Eu também posso me esquecer de que conheci você, se assim preferir, mas só pega logo essa merda. - ela fala, entredentes, seus olhos começando a lacrimejar.

Tenho um turbilhão de palavras lutando para sair, para ficar. Não consigo organizá-las.

Minha cabeça é uma série de engrenagens. Enferrujadas. Com dificuldade de se moverem. Organizarem palavras que devo dizer. As que tenho mais segurança ao dizer. As que não devo pronunciar. E, como é de se imaginar, quando estou perto dela, o resultado é um caos. Uma desordem. Olho para qualquer local, a pedido de ajuda.

Meus olhos pousam nas caixas. E a única frase que sai de meus lábios é:

- Foi despejada?

Seus olhos se tornam mais afiados ainda. Sinto que errei na escolha.

- Quer saber se eu fui despejada? Isso não é do seu interesse! Espera mesmo que eu me humilhe ainda mais na sua frente? Pega logo essa merda, e de preferência sai logo daqui! - ela me faz segurar o livro. Pega uma caixa do chão. E sai andando a passos largos e furiosos do prédio. Não consigo fazer outra coisa, se não segui-la. Quando vê que estou atrás de si, ela acelera. Está quase correndo. Pingos de chuva batem contra meu rosto. Consigo alcança-la a passos, mas ela se esforça cada vez mais para fugir de mim.

- Carolina.

- Não me segue, Crusher.

- Eu...

Ela solta a caixa inteira no chão, virando-se abruptamente. Seus olhos estão pegando fogo.

- Poderia por favor, parar de me seguir?!

No entanto, quando está prestes a sair andando outra vez, agarro seu pulso.

Não sei o que me faz virá-la, puxá-la, grudá-la em meu corpo. Sei apenas que, em um segundo, estou com meus dedos em sua pele. No outro, seu corpo se encaixa ao meu. Uma peça na medida certa. Ofego, a onda de calor subindo por meus braços e pele. Minha visão turvando com o cheiro dela. Os lábios dela se entreabrindo, o que me faz querer pegar um pedaço. Sua respiração falhando. A chuva pincelando seus traços lindos.

- Desculpa. - pronuncio, rouco.

A palavra escorre de meus lábios. Incapazes de se manter em silêncio.

- Desculpa. Eu não... não senti repulsa por você, Carolina. Apenas... há coisas que... que carrego comigo, e eu... não pude fazer aquilo com você. - olho em seus olhos, duas florestas esfriando e escurecendo. Duas esmeraldas piscando lentamente para mim, tentando compreender. Ela sabe o que não pude fazer com ela. Beijá-la. Coisa que não suporto pensar. Não quando seus lábios estão a centímetros. - Não posso. Não senti nojo de você, senti nojo de mim. Não quis que se sentisse dessa forma. - pego sua mão. Tão delicada quanto uma pluma.

A quentura de seus dedos faz meu peito esquentar. Meus dedos formigam, algo elétrico os ultrapassando. Se espalhando por dentro de mim. Quero fazer como no sonho. Colocá-la em meu rosto, mas, ao invés disto, a coloco acima da capa do livro.

- E não estou aqui para pegar seu livro. Porque é seu. Eu lhe dei. Não é mais coisa minha.

Seus olhos permanecem observando-me. Em um silêncio eterno. O único barulho como o da chuva. Estou quase caindo aos joelhos quando diz algo.

- Tudo bem. - sussurra. - Tudo bem, eu também peço desculpas pelo escândalo. Muita coisa aconteceu comigo essa semana e eu não estou conseguindo processar tudo de uma vez, eu acho. - ela dá um meio sorriso. Algo sai de dentro de mim, lentamente. Um peso. Ela voltou ao normal. Nós voltamos ao normal. Por mais que não possa haver nós. - E sim, eu realmente fui despejada, mas não se preocupe comigo porque já arranjei um lugar. Quer dizer, como se você realmente se preocupasse, mas em fim...

- Onde é?

Ela sorri de leve. Parte divertida, parte curiosa.

- Para você me perseguir lá também? - fico mudo.

Não era isto, exatamente. Gostaria apenas de... analisar. Se o lugar para o qual está indo é favorável. Porque, se for pior que este, será horrível. No entanto, não nego. Eu usaria da informação para persegui-la. A menos que começasse a colocar minha sanidade como prioridade. Para parar de cometer loucuras. Como esta. Seus olhos continuam me observando.

O silêncio toma conta do espaço. Deveria ir embora. Já vim fazer o que deveria. Desculpar-me. Mas não consigo me mover.

- Está com fome?

Ela olha para mim. Sei que vai negar. Depois do que me dissera, era o que eu esperava. Depois de eu ter feito tantas coisas a ela, Carolina não irá aceitar mais uma.

Ela acha que precisa fazer algo por mim. E não sei por que acho este fato ridículo. Talvez porque ela ache que tudo o que faço a ela, é porque quero algo em troca. Seus lábios se entreabrem, prestes a dizer não. No entanto, se fecham. Ela me olha outra vez. Mas desta, não é com curiosidade. É com convicção. Acaba de descobrir algo sobre mim. Seus olhos brilham, e ela abre um sorriso largo.

Como se entendesse algum funcionamento de meu cérebro.

Isso me assusta.

- Na verdade, estou morrendo de fome.

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