Com a promessa da lasanha, Carolina volta a comer, mais sorridente que antes.
- Por quantos dias ficou sem comer, desta vez?
Ela para de mastigar, lentamente. Afasta o palito e diz, despreocupada:
- Três dias, por quê? - a encaro. Sessenta horas sem ingerir nada sólido. E ainda consegue negar o que dou a ela. - Já fiquei uma semana, mas a Babi vira e mexe me oferecia um pouco de salgadinho ou me forçava a provar alguma coisa dela e eu podia comer, então deu para aguentar, apesar dos pesares.
Apesar dos pesares.
- Bárbara não sabe que passa fome?
- Não. Não fala pra ela, por favor. Inclusive, sobre o fato de eu ter sido despejada. - ela respira fundo. - Eu sei que não é coisa que se esconda de uma melhor amiga, mas a Babi já tem os problemas dela e eu não quero que fique preocupada com os meus. Na cabeça dela ainda estou no mesmo emprego de dez meses atrás, no mesmo apartamento e, mesmo que comendo comida congelada e macarrão instantâneo, não estou no ponto de passar fome. E acho melhor que ela pense isso. Não quero ser um fardo na vida dela. Na vida de ninguém.
Ela fica uma semana sem comer. Não tem mais casa. Foi traída. E não quer que se preocupem com ela. Enquanto isso, descobre os segredos da melhor amiga, faz questão de consolá-la, de dizer que está tudo bem. Ela cuida dos outros. Mas não há alguém que cuide dela. Porque não deixa. Não deixa que Bárbara saiba de seus problemas. Então, por que diz para mim?
A resposta vem rápida.
Porque sabe que não me importo com ela. Ou melhor, que não deveria.
- Onde vai morar, agora?
Ela olha para mim. Abaixa o olhar de leve.
- Promete não contar pra ninguém?
Promessas, na máfia...
- Prometo.
Atropelo meu senso. Algo como tristeza se apossa de suas íris.
- É com o Pedro.
A comida para no caminho. Enrijeço. Penso se ouvi bem.
- Nós não voltamos, mas eu meio que tive que passar a maior das minhas humilhações, e implorar pra que ele me deixasse ficar alguns dias na casa dele até que eu consiga pagar uma pousada. Passar meus dias com a pessoa que aleguei nunca mais querer ver é difícil, ainda mais agora que ele assumiu o namoro com a colega do trabalho, mas é o jeito. Eu já tentei mil vezes não ir por essa saída e já chorei outras trezentas debaixo da coberta, mas eu realmente... não tenho outra escolha. - ela consegue soltar um riso. - E eu sei que você não deve estar acostumado a presenciar tamanha pobreza vinda de alguém, mas essa é a realidade. A minha, pelo menos. Tenho que agradecer por não estar morando na rua.
Ela sorri. Mas o sorriso é triste.
Quase não consigo processar. Está prestes a morar com a pessoa que a traiu. Que a fez se sentir magoada. Algo agita meu peito. Afiado e perigoso. Não poderia ser raiva. Não de uma situação que não se trata de mim. Que não é de meu interesse. Tampouco de minha importância. Ela volta a comer. No entanto, sou em quem não consigo deixar de olhá-la.
E ela percebe. Ergue os olhos, ambos transbordados.
- Por favor, não me julga.
Não vou julgá-la. No entanto, não consigo dizer que está tudo bem. Eu deveria. Não me interessa onde irá morar. Se é com o ex que a deixou magoada. Que a traiu. Não me interessa. No entanto, não consigo. Encosto a mão no celular. Tiro-o do bolso. Ela não tira os olhos dos meus até que eu o vire. O deixe acima da mesa, em sua frente. Ela observa a imagem, confusa.
- O que é isso?
- Um apartamento meu.
Ela sorri, completamente inocente.
- É muito bonito. Onde fica?
- De frente para a Wornrock. Um pouco para o leste da minha casa. É a algumas montanhas de distância, uma praia rochosa de Los Angeles. Pouco conhecida. Justamente por isto que o comprei lá.
- Nossa... a praia é linda! Eu nunca tinha escutado falar dela nos meus vinte e um anos de existência nessa cidade, e olha que eu vivo pesquisando lugares pra ir daqui...mas só pesquisando mesmo, porque eu fico trancafiada na maior parte do tempo. E o apartamento é mais lindo ainda, mas por que é que... - ela para de falar. Seus olhos se fixam nos meus. No entanto, ela sai de admirada para irônica. Desacreditada. - Não. - solta um riso, mas é de descrença. Ela balança a cabeça. - Não, Crusher, isso é... meu Deus. Tipo, eu posso aceitar todas essas coisas, mas isso... isso não. É quase um absurdo aceitar uma coisa dessas sem te prometer o mínimo de uma coisa em troca, coisas que eu não tenho, e eu...
- Não quero nada seu.
Ela fica em silêncio. Seus olhos se infiltram nos meus, dois pedaços de florestas querendo decifrar algo dentro de mim. Suas bochechas coram um pouco. Ela pousa as mãos acima da mesa. As retira, e então as coloca de novo.
- Por quê? É que... do jeito que você faz, Crusher... - diz, baixinho. -... parece que se importa comigo.
Estou prestes a negar. No entanto, algo em meu interior se alarma.
Porque sei que, se eu negar, será mentira. No entanto, não me importo com ela. Não me importo com nada, nem ninguém. Não deveria importar-me com Carolina. Se está prestes a morar com seu ex. Se está sem casa. Se está dias sem comer. Se não está em meu sofá, debruçada, comendo pizza, lendo. Tirando uma soneca, como um anjo descansando em paz.
Com a única preocupação de querer ler meus pensamentos, com os olhos de felina que agora me fitam.
- Já entendi que não quer. - murmuro.
- Eu... eu agradeço muito, Crusher. Muito mesmo, mas... é demais.
Fico em silêncio. No entanto, isso não me impede de pensar. De quase dizer-lhe que demais é morar com o ex. É aceitar estar em seu mesmo ambiente. No de quem a traiu. Deveria virar as costas. Pouco me foder para seus problemas. Não são meus.
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Medicine | Volsher.
Romance"Ela não é uma droga. É minha medicina. Drogas te fazem esquecer dos seus problemas, mas medicina... cura. Ela me cura. Mas sem esquecer do que eu vivi."