- Tá, tô nervosa. E já adianto que sou péssima no fogão.
Entramos na cozinha. Vou até a dispensa. Pego os ingredientes. Aponto para a geladeira enquanto os coloco no balcão.
- Cebola, manteiga, leite, requeijão, tomate, presunto...
- Calma, calma! - ela abre a geladeira, apressada. - Pode repetir, por favor? - eu repito. A observo tirando as coisas da geladeira. Ela as coloca ao lado das minhas no balcão. - Pronto. Nossa, cadê a massa pronta? - recolho um ovo. O quebro o jogo em cima do balcão. Faço o mesmo para os outros quatro. Abro o pacote de farinha de trigo e afundo uma xícara no pacote. Jogo a farinha junto com os ovos. Carolina está chocada. - O quê?! Você faz sua própria massa?
- Faço. Agora venha.
- Tipo, colocar a mão aí?
- Sim. - ela se aproxima e afunda a mão com cuidado. Sorri enquanto move a mão devagar dentro da mistura. - Com convicção. - me aproximo por trás dela. Pressiono seu corpo contra o meu, e quase perco a linha de raciocínio. Quase. Cubro sua mão com a minha e a guio. - Sem medo. Logo vai se transformar em uma massa. - quando penso que vai fazer certo, percebo sua mão mole.
Seu corpo se move um pouco para trás. Como se aconchegasse no meu. Seu calor me cobre feito uma calda. Seu cheiro nubla meus pensamentos. Minha boca cai para perto de seu ouvido.
- Vai. - espero que ela faça. Demora um pouco, mas as mãos agora vão com mais força na massa. - Isso... assim mesmo. - murmuro. - Não para... até eu mandar. - sinto seu corpo estremecer contra o meu. Ela faz que sim. Me afasto lentamente. Vou para o lado dela, começar a fazer o molho. Lavo a mão e começo a ralar a cebola. - Está deixando farinha aqui. - aponto para o amontoado que ela está deixando de lado.
Ela sorri.
- Perdão.
Termino a cebola e começo a picar o alho. Pico todos os temperos e deixo de lado. Ligo o fogo e coloco a panela em uma das bocas. Jogo alguns fios de óleo, a cebola e o alho. Pego um tomate e o pico em cubos. Jogo no liquidificador junto dos temperos que piquei.
Fecho a tampa e giro o botão. Enquanto bate, jogo a carne moída na panela. Agarro a garrafa de vinho branco seco, derramando-o na carne. Movo tudo na panela. Tampo e abaixo o fogo. Vou ver a massa de Carolina, quando percebo-a parada. Ela está me olhando fixamente. Seus lábios estão ligeiramente entreabertos, como se buscassem ar.
- C-como você... - ela tosse de leve. - Você cozinha de um jeito bem... astuto, né?
Inclino os lábios de leve. Me aproximo dela, murmurando em seu ouvido:
- E você, de um jeito mole.
- Chato. - ela dá risada. - A massa já tá boa?
Olho para ela.
- Já. Vem cá.
Ela vem. Desligo o liquidificador.
- Coloca o molho na panela com carne e mexa.
- Tá bom. - ela retira o liquidificador. O pega e o inclina, jogando o molho dentro da panela. Acaba deixando um pouco cair acima do fogão. De fato é um desastre na cozinha. - Ai, perdão. - ela ri. O deixa de lado. Então começa a mexer o molho com cuidado. Pego a massa e a moldo, em retângulos médios para colocar na forma. - Você já teve algum melhor amigo? - Carolina pergunta, de repente.
Demoro um pouco para processar.
No entanto, não preciso lembrar demais. Faço que não.
- Nunca. Você já?
- Ah, na vida sim, a Babi. Mas foi só depois de entrar na faculdade. Eu quis dizer do colegial, da infância... você nunca teve?
- Não estudei em escolas. Tive ensino domiciliar. - ela para de mexer na panela.
Não gosto de quando o assunto se vira para mim. Tenho apenas relatos ruins para lhe contar. Não tive uma vida como a dela. Prefiro ouvi-la a ter que lhe contar pedaços meus, por mais que eu queira para saber o que ela tem a me falar. Ela permanece em silêncio.
- Meu pai contratava alguns professores. Não gostava que eu saísse de casa. Não apenas pelo perigo. Creio que para que eu não visse que era diferente. As professoras iriam perceber, também. Que eu não teria comportamento de uma criança. Não havia a inocência de uma. Seria dor de cabeça demais para ele. E apenas aos dezoito percebi. Não me lembrava de agir feito as crianças que via. Então, não. Nunca tive um melhor amigo. Porque nunca frequentei uma escola. - continuo a moldar a massa.
Ela continua paralisada. Não tenho coragem de olhar em seus olhos.
- Só fui ter algo parecido a um melhor amigo, quando meu pai passou a criar contato com alguns dos melhores mafiosos ao redor dele. Consequentemente, convivi mais com os filhos deles. Deve conhecer alguns dos imbecis: GS, Victor, Mob... - ela ri abafado.
Quando acho que dispersei o assunto, Carolina desliga o fogo. Perco o ritmo da respiração. O movimento das mãos. Ela está com a mesma expressão de ontem, quando estava me olhando no espelho. Os olhos convidativos demais. Como se me convidassem a deitar no colo dela. Fechar os olhos. Desenterrar cada uma das lembranças que sonho à noite.
No entanto, assim que toca minhas costas, balanço a cabeça em negativa.
Ela não sabe, mas não é para ela. É para mim. Não posso falar sobre ele.
O que me assusta? É que preciso segurar.
Carolina não se afasta. Envolve a palma da mão inteira em minhas costas. Meu corpo se inunda em calor quando as duas mãos voltam a envolver minha cintura. Minha mente esvazia. Só consigo senti-la. A necessidade pesada de mais. Quase insuportável. Ela me abraça outra vez. A bochecha pousa em minha pele.
- Eu também não tive uma infância muito boa. - ela diz.
Certamente, não faz sentido. Carolina não tem problemas. Ao menos, não mentais. É linda, tímida, curiosa. Devia ser a garota mais doce na infância.
- Era muito magrinha. Tipo, muito mesmo. Ao que tudo indicava era pela falta de comida, mas descobri a poucos anos que não passava de genética. Talvez a fome tenha intensificado, mas em fim. Isso não impediu que eu fosse apelidada de... coisas cruéis. As poucas pessoas que chegavam perto de mim não ficavam por tanto tempo sendo amigas minhas, porque acabavam virando motivo de chacota também. Lembro de ter excedido o limite de faltas, porque me recusava a ir para a escola. Não me sentia bem comigo mesma. Achava que eu tinha alguma doença, que ninguém no mundo me aceitaria do jeito que eu era. Então... eu também não tive muitos melhores amigos.
Permaneço parado. Encarando a massa. Não costumo gostar de como a raiva se manifesta em mim. Não quando meus olhos ficam daquela maneira. No entanto, não estou me importando com o sentimento que nubla minha consciência.
- Se lembra do nome das crianças?
Ela ri.
- Eu não deixaria você ir atrás de uma sala de aula inteira que hoje em dia nem deve mais lembrar da menininha que fizeram bullying no passado.
- Mas você lembra. De cada sensação ruim, não lembra?
Ela fica em silêncio. Não preciso que me responda.
- Mas já passou. E eu até que lido bem com meu corpo hoje em dia. - ela sorri, voltando ao fogão. Luto para não deixar que meus olhos vaguem por seu corpo. No entanto, falho. Eu também lidaria bem com o corpo dela. Do jeitinho que ele é. Sem mudança alguma. Não quero mudança alguma. A única que quero é que, ao invés de estar longe, ele esteja enrolado no meu. Inclinado sob a bancada. Ou esparramado em minha cama.
Obrigo-me a voltar a olhar a massa.
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Medicine | Volsher.
Romance"Ela não é uma droga. É minha medicina. Drogas te fazem esquecer dos seus problemas, mas medicina... cura. Ela me cura. Mas sem esquecer do que eu vivi."