Capítulo 12.

210 20 0
                                    

Todos já estão dormindo. São três horas da manhã, mas, poderia ser qualquer horário. Não me importaria. Não com o que farei.

Uma vez, cogitei queimar tudo o que fazia parte dele. Frederic Ramos estava morto. Não fazia sentido que seus pertences continuassem vagando pela terra.

Poderiam ter se fechado em um caixão, como ele. Se decomposto, junto ao seu corpo. Mas talvez, no fundo, eu soubesse. Soubesse que algo me traria a ele outra vez. Nem todo o passado pode ser mantido a décadas atrás. Nem tudo o que está enterrado, decomposto, pode lhe deixar em paz. Mesmo depois da morte. Alguns lhe assombram durante a noite. E quero fazer com que Billie se junte a seu pai, por ter feito-me trazer o passado ao presente.

Toco a maçaneta antes de abri-la. Mantive suas coisas num porão. Embora não possa ser chamado de um. Eu o fiz um local inabitável. Um cômodo abandonado, trancafiado ao subsolo da casa. O tranquei por mais de cinco anos. A porta se emperra com razão.

A empurro, o baque ecoando pelas paredes. Poeira visível flutua pelo local. Cheiro de maldade, de horror, de desumanidade pura infiltra por meu nariz. Desço degrau por degrau. Paro em frente a um quadro, coberto por um lençol bege. Eu o puxo, meu interior se revirando quando olho em seus olhos.

Se assemelha a um espelho. Talvez esteja olhando meu reflexo. Olhos escuros, como os meus. Traços fortes, italianos. Transmitiam-me terror. Deixo o resto do lençol cair. Ao lado dele, está uma mulher. Sua barriga está em formato oval, uma criança dentro dela. Indesejada, posso crer. Não houve um dia que seus olhos não repudiassem a criança.

- Por que não passeia com ele, porra? - meu pai não sabia falar baixo.

Talvez, por aquele motivo, seu silêncio temesse tanto as pessoas. Havia um braço fechado com força no pulso de minha mãe. O rosto retorcido em ódio puro. Os olhos indicando que estava prestes a socá-la outra vez, se ela não fizesse sua vontade. A pele de minha mãe era arroxeada. Não por natureza, mas talvez houvesse desistido de voltar ao normal.

- Vá fazer algum caralho com o garoto.

- Eu não quero. - a voz dela estava rouca. Trêmula. Cansada, como era seu normal. Olhou para mim apenas uma vez, e mesmo com seis anos de idade, consegui ver em seus olhos. Meus ombros recuaram. Meu peito doeu. Ela não gostava de mim. Me repudiava. Não estava disposta a sair para passear comigo. Não queria.

Meus olhos lacrimejaram.

- Não suporto nem olhá-lo direito, afinal, ele deu o azar de se parecer com você. - meu corpo pulou com o tapa dele. Não era a primeira vez. Mas era a primeira que ele batia nela, em minha frente.

- Não quero saber, Juliane. Vá passear com ele antes que eu lhe mostre o que fazer com mulheres desobedientes, porque um tapa em você sempre é pouco. Parece que pede mais.

Desvio o olhar do quadro. A lembrança do que ocorreu no mesmo dia não me agrada. Vou até uma caixa, a caixa onde coloquei seus arquivos dentro delas. Levanto as tampas, a poeira subindo pelos anos que fora deixada de lado. Há papéis grampeados, soltos, pedaços de informações se degradando. Tudo o que meu pai escrevera durante seu comando.

Acredito que tenha seus rivais, seus negócios, seus registros. Não espero que tenha escrito o que fez a eles. Escrevendo quem são, já me ajuda.

Recolho um punhado. O suficiente para ver pequenas fotos grampeadas a papéis e recolher o resto. Quando chego ao topo das escadas e fecho a porta, solto o ar. Não reconhecia que o estava prendendo, ou que algo apertava meu peito inconscientemente. Quando me viro, sinto um corpo ocupar o espaço e chuto uma perna antes prendê-lo na parede. Victor está ofegante e assustado quando me encara.

- Calma, porra! Sou só eu. - retiro o braço de seu pescoço.

- Avise, quando estiver atrás das pessoas.

- Não avisei porque achei que se tratasse de um invasor. Você nunca entra nessa... portinha, que agora descubro que existe. É o lugar que guarda as coisas de seu pai? - assinto, e ele olha para a porta antes de me seguir. - Teria sido muito útil usá-las, sabia. Inclusive checar os antigos inimigos dele, porque, ninguém garantiu que eles ficariam na Itália mesmo depois de você ter saído de lá. Ainda mais se ele devia coisas. O que é algo interessante, considerando que ele era dono de milhões de reais por lá. Por que não pagaria as coisas que deveu? - não quero ouvir sua voz. Meu humor está nas faixas negativas, e não quero ouvir ninguém. Mas, infelizmente, devo ordenar minhas possibilidades.

- A não ser que tenha devido mais do que havia.

- Caralho, o que ele fez para dever milhões de reais?

- Talvez não seja isso. - subo as escadas. - É impossível dever uma quantia tão alta. Meu pai não deveria tudo isso. Não era burro de tal forma. - penso no que faria. No que faria contra outras máfias. - Meu pai tinha prazer em matar pessoas aleatoriamente. Não precisava de muito motivo; se o irritavam, ele matava. Numa dessas, pode ter matado alguém importante. - ando pelo corredor. Abro a porta do escritório e jogo as folhas acima da mesa. - Mas talvez, devêssemos começar por Billie. - Victor bufa.

- Isso é sério? Mesmo que ele tivesse alguma coisa a ver, mesmo que ele estivesse com os inimigos, por que nos avisaria isso? Ele ajudou a gente, nos deu um aviso que se não tivéssemos recebido estaríamos fodidos, achando que os únicos problemas a se resolver eram os do negócio.

- Meu pai matou o dele, Victor. Meu pai matou o pai de Billie quando ele tinha cinco anos de idade. Seu pai foi tirado dele, tudo isso porque o meu o matou. Por que nos daria uma informação como essa se quem deveria fazer algo contra mim, é ele?

- Porque ele não guarda mais rancor.

Algo ácido, como veneno, me faz sorrir.

- Claro. Um mafioso sem guardar rancor da morte de seu pai.

- Você não guardou. - ele faz minhas palavras sumirem. - Ou se não teria ido atrás de quem o matou. - estou a um passo de lhe dizer que, se eu de fato fosse atrás de quem fez isso, agradeceria. Mas não lhe devo satisfações. Apenas não confio em Billie.

Espalho cada papel pela mesa. Pequenas fotos estão grampeadas em cada uma delas. Rostos que nunca vi, mas com traços Italianos reconhecíveis. Pego qualquer um. Mattia Carvalho. Ao lado, há o nome da máfia que participava como sub-chefe. O histórico, quando foi fundada, os negócios que elabora... Percebo uma foto abaixo da de seu rosto.

Quando a levanto, vejo seu rosto outra vez. Mas com um tiro no meio testa. Está morto. Meu pai registrava a foto de quem matava. Tiro as duas fotos do grampo. Mostro-a para Victor. Ele as recolhe.

- Pesquise o nome da máfia e quem é o líder. - murmuro. Pego mais outro papel. A cada um deles, há duas fotos; uma onde o indivíduo está vivo, outra que registra sua morte. Crânios quebrados, órgãos retirados, tiros em locais desumanos. Algo revira meu estômago. No fim, não olho para mais nenhum papel. Simplesmente jogo todos na mão de Victor. - Pesquise todas as máfias, de cada um deles. - ele está paralisado.

Deve saber agora que tipo de homem meu pai era. E, da maneira que era, estou começando a perceber. Meu pai criou um exército de revoltas. Todos esperando que eu tomasse o comando da máfia. Esperando o melhor momento para atacar. Me pergunto qual será. Por que não antes, por que logo agora.

Medicine | Volsher.Onde histórias criam vida. Descubra agora