Prólogo

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Há uma divisão quase incompreensível entre o momento em que o etéreo torna-se maligno

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Há uma divisão quase incompreensível entre o momento em que o etéreo torna-se maligno.

Um ruído inescrupuloso e inquietante invade o interior da minha alma corroída pela mágoa de não conseguir, mesmo tentando arduamente, me proteger do tipo de perversidade humana capaz de confinar a mente de uma mulher em torno de dolorosos galhos espinhosos, que ainda conservam o cheiro das suas rosas recém-colhidas, de um jardim agora destruído.

Houve um momento, que hoje parece tão longínquo e impensável diante do que me tornei, em que o futuro parecia encoberto por um véu de luzes policrômicas  que me transmitiam a certeza de que a vida poderia ser eternamente destinada à felicidade, nunca à desgraça. As luzes me cegaram. Corri com os pés descalços em direção às águas profundas, acreditando que estava em terra firme e, então, só me percebi mínima, dissoluta e perdida quando meus joelhos exaustos falharam e obrigaram-me a olhar para o reflexo no líquido cristalino em que estava me afogando. O sorriso daquela garota ingênua desapareceu do meu rosto e os sonhos, antes coloridos, se tornaram preto e branco. Foi nesse momento que eu soube que estava coberta em um pungente e doce néctar de fel.

Eu poderia escrever nas paredes  com o sangue das minhas feridas, mas não sangro mais palavras de desespero. Depois poderia lavá-la com as minhas próprias lágrimas, mas não choro mais pelo socorro que nunca chegou. E, enfim,  poderia  gritar silenciosamente como venho feito há tantos anos. Tudo o que transborda do meu corpo é o arrependimento por não ter me posto a correr quando a minha pele sentiu os arrepios do toque cruelmente amaldiçoado, dos olhos opulentos carregados de promessas feitas para serem quebradas, da devoção que borrou  a minha visão quando as mãos atrozes impuseram sua força sobre o meu âmago dócil. Fui incapaz de lutar contra os demônios que começaram a se esconder embaixo da cama e puseram-se a atormentar o meu infantil e delirante desejo de permanecer para sempre inviolável, para sempre comedida e para sempre esquiva diante do hostil destino que se projetava sobre mim.

Não sabia eu que permitir que alguém se abrigasse no interior desse forte espaço sanguinário que mantém a vida pulsante em meu corpo poderia ser a real ruína da minha crença de que só existiria uma coisa capaz de se manter etérea em meio a ordinariedade humana: o amor. Ele me fez acreditar nisso quando me convenceu de que não haveria limites e não haveria nada além da suavidade de uma brisa que me acolheria todos os dias enquanto estivesse em seus braços. Logo eu descobri que verdadeiros portões de aço se ergueriam diante de mim e eu estaria morta pelas suas mãos antes que eles fossem derrubados.

Agora sei que apenas um coração selvagem é capaz de sobreviver à destruição.

Eu não me acabaria em mim, não morreria enquanto estivesse viva.

Ao abrir os olhos, contemplo por alguns minutos a nebulosidade da noite mórbida que paira no céu, enquanto gotas pesadas da tempestade escorrem pelo meu rosto. Um sorriso brota em meus lábios tão genuinamente que sou incapaz de conter o sentimento de alívio que toma conta do meu corpo por completo; como se um peso fosse retirado do meu peito por um guindaste e eu pudesse, finalmente, recuperar o ar já se fazia escasso em meus pulmões.

Aproximo-me vagarosamente da varanda e direciono o meu olhar para baixo, encontrando o corpo de Otto caído no piso escuro e luxuoso da propriedade de inverno, adquirida a poucos dias como um presente para comemoração do nosso 11.º aniversário de casamento. Observo o sangue viscoso e de tom escarlate se espalhar ao redor da sua cabeça, a arma ainda está empunhada na mão esquerda, e ele parece cada vez mais próximo da morte. A vida parece se distanciar dele a cada minuto que se passa e eu nem sequer desci as escadas para socorrê-lo, algo completamente condenável para uma esposa aparentemente tão dedicada como tenho sido a todos esses anos. Meus pés parecem grudados ao chão, a única coisa que sou capaz de fazer é encarar a tez pálida do seu rosto inerte e recordar em minha mente todas as suas sujeiras sórdidas, suas palavras cortantes e a ardência cruel do seu temperamento brutal.

Ele nunca mais poderá me machucar, eu dei um fim a tudo de uma vez por todas.

Eu quero gritar.

Eu quero rir.

Eu quero chorar.

Vejo Dominik surgir em meio a chuva tempestiva, a ventania em volta dele, que está agasalhado com um grande sobretudo preto, torna a sua aproximação uma visão quase assustadora. Ele se abaixa diante de Otto e posiciona o dedo indicador e médio na lateral do seu pescoço, de modo a verificar a pulsação do seu patrão. Por entre os fios de cor obsidiana que recobrem o seu rosto, ele direciona o seu olhar repleto de uma espécie de frieza já intrínseca da sua alma, tão condenada quanto a minha se tornou a partir desse momento, e encara-me profundamente. Sei que ele se orgulha de mim, mas segue o seu script de fiel protetor. Para todos os efeitos, ele deve ser capaz de impedir qualquer dano ao seu chefe, já eu, devo chorar copiosamente em desespero pelo acidente do meu querido marido.

Giro sobre os calcanhares e retorno para dentro do quarto elegante, preciso me preparar para o que está por vir. Não demoraria para que a polícia chegasse ao local e as sirenes das ambulâncias ecoassem por todo o amplo ambiente lúgubre da residência.  Deslizo os dedos com delicadeza sobre o pingente repousado em meu colo, a pesada pedra de rubi birmanês a torna uma peça única e inigualável no mundo.

Dizia ele que a cor vermelha combinava como nenhuma outra com os meus olhos, talvez por isso gostasse tanto de marcá-la em minha pele, penso eu. Agarro com força o colar cravejado com pequenos diamantes de cor rubra, arrancando-o do meu pescoço em um movimento brusco. Observo ele se se desfazer no chão, tão estilhaçado quanto um eu fui.

Não sou terrível. Não sou ingênua, não depois de todos esses anos ao lado dele.

E agora ele está morto. Eu preciso que ele morra para que eu possa, finalmente, viver.

Neglectful LoverOnde histórias criam vida. Descubra agora