37. Dia de universitário

121 12 0
                                    




- Oi família - eu disse, entrando pela sala, voltando da caça.
- Está atrasado - disse Roy.
- Estou? Atrasado para que?
- Faculdade, cara. Você se matriculou; não lembra?
- Fala sério! É hoje?
- Sim, é hoje. E estamos atrasados por culpa sua.
- Eu não sabia que começava hoje.
- Pois é, percebemos! Vamos logo.
Ele me puxou para fora da casa; Ben e Liz vieram atrás.
Eu já não me sujava mais nas caças, e com os cabelos curtos, se tornou muito mais fácil.
- Tchau, pai - gritamos em coro, fora da casa.

Demorei pra encontrar a sala de aula da turma de Ciências Biológicas, quando entrei, todos já estavam sentados. Procurei uma carteira vazia, e a primeira que olhei estava no fundo da classe.
O professor começou com as apresentações. Um por um foi se apresentando, até chegar numa menina de cabelos loiros e curtos, que estava dormindo na carteira ao meu lado. Todos olhavam para ela, mas ela não estava consciente disto.
- Ei, garota. - A cutuquei devagar.
Ela fez uma careta ao acordar, piscou algumas vezes antes de abrir totalmente os olhos. Mas quando abriu, me fascinou; os olhos dela eram magníficos; um deles era verde claro e o outro castanho médio; a primeira impressão que me causou foi que fosse cega de um olho, mas depois percebi que não. Isso chamou muito a minha atenção, embora ela estivesse olhando para mim.
- É a sua vez de se apresentar. - Gesticulei com os olhos para o professor, e voltei a fitar seus lindos olhos. Ela não disse nada e olhou confusa para o professor.
- Senhorita, já pode começar a se apresentar - disse o prof.
- Eu... - Ela olhou para alguns que a encaravam, esperando - Eu me chamo Megan Barnes, tenho 18 anos e me mudei com a minha família para Juneau faz duas semanas. Bom... Tudo o que eu pretendo fazer agora é me formar em biologia... Eu acho que é só isso.
Sua voz era doce e o sotaque britânico.
- Seja bem vinda à nossa cidade, senhorita Barnes.
- Obrigada.

Não consegui prestar muita atenção na aula. Fiquei pensando se eu havia mesmo feito o certo em me matricular. Talvez a faculdade pudesse esperar um pouco mais, afinal, já se passaram tantos anos... Mas eu estava entediado, completamente entediado; sem Dakota, sem Jenny, e agora até a minha família estava mais distante, eu era o único estupidamente carente e sozinho. Então, sim, eu precisava me distrair e a faculdade seria uma ótima distração.
Também não pude evitar pensar em como seria se eu me esbarrasse com Dakota nos corredores, ou pior, com Alex...
Não um centro universitário grande, porém a maioria dos jovens de Juneau e algumas cidades vizinhas, estudavam lá, afinal, era uma das poucas que havia em Alasca.
Portanto seria muito fácil esbarrar com quem você gostaria ou odiaria...

Após terminar a primeira aula, vieram nos avisar que não teria a segunda, pois o professor não poderia vir. Alguns se sentiram aliviados e foram os primeiros a se levantar e ir embora; não pude evitar em pensar que também seriam os primeiros a abandonar de vez o curso. Entretanto, eu estava gostando, porém me fez lembrar muito de Garry e pensar que hoje ele já teria se formado...
Me levantei e andei pra fora da sala; procurei a sala de Ben, Liz e Roy, mas como eu já havia imaginado, estavam tendo aula e pareciam tão entretidos que nem se deram conta que eu estava os observando de fora.
Os corredores e o pátio estavam desertos, haviam apenas algumas pessoas de passagem. Decidi ir embora andando, já que os três ainda iriam demorar pra sair e eu não estavam afim de esperar.
Andei sem pressa até o estacionamento, que era a única saída... Ouvi passos pelo meio dos carros estacionados, olhei para o lado com desconfiança.
Eram vários passos, e me seguiam por algum motivo. Franzi o cenho e parei no meio do caminho. Então apareceram.
- O que quer, Alex? - perguntei, despreocupado. Haviam mais dois o acompanhando; reconheci um deles, era Phil, amigo de Veronika também, e um dos que Roy mais odiava.
- Olha só, quem encontramos por aqui andando sozinho.
- Estão me seguindo.
- Não estamos te seguindo, James. Mas bacana te encontrar por aqui... Sozinho.
Ele forçou um sorriso de deboche. Franzi o cenho, queriam me bater?
Voltei a andar, desconsiderando as insinuações, mas Alex deu alguns passos depressa e parou em minha frente.
- Eu estava mesmo esperando por esse momento.
- Saia do meu caminho.
Ele forçou outro sorriso, o que me irritava muito.
Ignorei e passei desviando dele, mas ele segurou meu braço, não queria mesmo me deixar ir. Puxei meu braço inopinadamente e o empurrei, obrigando uma distância. Ele cambaleou pra trás, e sua expressão se tornou imediatamente enfurecida.
- Segurem ele! - ordenou para os demais.
Phil e o outro moleque vieram para cima de mim, tentaram me segurar, mas eu desviei. Alex se apressou e fechou os punhos para me socar, porém quando chegou próximo, atingi seu rosto com uma cotovelada, - não tão forte, aliás, fraco demais, pois ao contrário eu deformaria seu rosto.
Eu não queria apanhar calado, mas não podia demonstrar força também, era uma situação um tanto complicada, pois eu precisava parecer o mais humano possível. Precisava ao menos ficar com um hematoma depois de levar uma surra de três marmanjos. É claro que eu poderia revidar, que eu poderia evitar, mas de duas a uma, ou eu fugiria e levaria a fama de covarde, ou arrebentaria os três e levaria a fama de valente, porém essa última chamaria muita atenção, afinal, eram três que já estavam acostumados a esse tipo de situação, além de praticarem Muay thai há um bom tempo; eu não teria a menor chance.
Alex pareceu um pouco atordoado, mas logo se recompôs, e ainda mais enfurecido, voltou com uma mão cobrindo o nariz que sangrava.
Phil e o outro me agarraram por trás. Essa é a hora de me render, pensei. Então deixei que me segurassem; preferia que acabassem logo com isso. Era estranho, mas eu optei por me submeter a isso à correr.
Ele me deu um soco no rosto, enquanto os outros seguravam meus braços e riam. Me fizeram ajoelhar no chão, e então Alex deu uma joelhada em meu estômago. Sim, aquilo doía, e muito!
- Não tem coragem de me encarar sozinho? - perguntei, com o pouco de ar que havia me restado. - Não me surpreende, a sua covardia!
Ele me fez calar com outro soco na boca. Cuspi sangue no chão, e ele riu.
- Agora sim está ficando divertido! - disse com júbilo.
Abri a boca pra falar, porém antes mesmo que eu tentasse ele me deu o terceiro soco.
Estava começando a me tirar do sério.
Alex deu um sinal para Phil e o outro moleque, não entendi o que queria dizer, mas com certeza não era nada bom, pois ele sorria.
Então de repente me soltaram e Alex chutou a lateral de minhas costelas, me fazendo cair com as mãos no chão. Respirei fundo, engolindo a raiva, o desejo de revidar. Ele se preparou para dar outro chute, dessa vez mirava o estômago novamente.
- Ei! Vocês! - gritou alguém atrás de mim. - Larguem ele! Se não...
- Se não o que? Você vai bater em nós, princesa? - perguntou, Alex.
- Bater, eu não digo... - ela se aproximava, sem medo. Olhei pra cima e pude ver quem era. Megan, a garota que dormia ao meu lado, na sala de aula. - Mas garanto que derrubo um por um. - Ela tirou de dentro da blusa um taser, uma arma de eletrochoque, e apertou o botão, fazendo um estalo.
Vi o garoto ao lado de Phil dar um passo pra trás, e Alex estava visivelmente intimidado.
Qualquer avanço deles, eu teria que me desmascarar; por mais firme que eu estivesse tentando ser agora, não poderia deixar que encostassem a mão nela. Ela estava comprando minha briga, mas era apenas uma garota com um taser na mão.
- E aí? - desafiou ela.
- Não vale a pena mesmo - Alex fingiu dar de ombros, mas na verdade não tinha coragem o suficiente pra continuar. Ele olhou pra mim, e mais uma vez limpou o nariz que continuava sangrando. - Mas não pense que acabou - me intimou e se direcionou para seu carro que estava próximo; os outros dois foram juntos sem opinar.
Levantei-me e me apoiei num carro; minha boca ainda sangrava. Megan me segurou, afim de me ajudar.
- Você está bem... James, né?
- Estou - garanti. - Quero dizer, já estive melhor. - Olhei pra ela num meio sorriso.
Ela arregalou os olhos e se afastou de mim.
- Você é um vampiro! - Ela exclamou com asseveração.
Dei um passo para trás, na defensiva. O que antes estávamos perto demais, agora nos afastávamos com a mesma insegurança. Olhei diretamente em suas mãos, procurando por algo que me atingisse, que me afetasse de verdade, e não um taser que não me faria nem cócegas.
Nos olhávamos com hesitação, era visível que tínhamos medo um do outro. Se ela sabia que sou um vampiro, provavelmente poderia saber muito mais além disso, talvez até pudesse ser uma caçadora e eu não ia arriscar.
Entretanto, ela não se movia; e não parecia ter nada além de um taser sobre mãos.
- Não vou te machucar - garanti, avançando um passo.
- Se afaste! - vociferou. Parei imediatamente. - Encoste um dedo sequer em mim e Lester irá atrás de você até o inferno!
Ergui as sobrancelhas, perplexo. Não sabia o que me surpreendia mais, o modo como gritava corajosamente comigo ou o fato de conhecer Lester e saber sobre nós.
- Lester é um amigo da família - assegurei.
Ela franziu o cenho, e sem demora tirou um celular do bolso e discou um número. Ela era esperta.
"Megan, está tudo bem?" - Pude ouvir Lester perguntando do outro lado da linha.
- Sim, Lester, está tudo bem. Só liguei pra perguntar se conhece um rapaz chamado James, daqui de Juneau.
"Sim, conheço. Ele faz parte da família de um grande amigo meu. Mas por que a pergunta? Está em Juneau?"
- Longa história, te explico depois. Só mais uma pergunta... Ele é confiável?
"O que está aprontando, Megan?" - Ele riu. "Sim, é um bom rapaz."
- Ok. Era só isso mesmo, te ligo mais tarde. Beijos! - Ela desligou o celular.
Esperei, mais aliviado agora, assim como ela.
- Sabe como é, não dá pra confiar em qualquer um - tentou se explicar.
- Como... você sabia? Como soube que sou um vampiro?
- Já se olhou no espelho hoje? - Ela deu uma risadinha.
Vinquei a testa. Me virei e olhei meu reflexo no vidro de um carro. Me aproximei mais quando vi meus olhos vermelhos.
- Não pode ser.
- O que? - perguntou curiosa.
- Não era para os meus olhos estarem vermelhos - respondi, mas na verdade eu estava pensando alto.
- Bom, pelo o que eu saiba, Scarlys tem olhos vermelhos, e se você é um, não poderiam ser de outra cor. A menos que não seja um Scarly... Ai sim seria preocupante.
Olhei abismado pra ela. O que mais ela sabia?
- O que? - perguntou ao ver minha expressão. - Eu sei algumas coisas.
- Aposto que não sabe por que estou com os olhos vermelhos depois de ter caçado um lince.
Ela não respondeu, por que não sabia, assim como eu.
- Isso já aconteceu antes? - perguntou.
- Uma vez... Achei que eu estava precisando caçar de novo... Mas agora não faz sentido.
- Estranho...
- Meu pai deve saber o que está acontecendo. Não deve ser nada demais, se não ele já teria me alertado e precavido de alguma maneira.
- Seu pai deve ser bem legal...
Assenti sorrindo, mas vi que seu olhar havia mudado, havia algo a mais por trás dessa frase, porém eu não quis perguntar.
- Devo estar te prendendo aqui... Você quer ir embora né?
- Não - dei de ombros. - Não estou com pressa... Mas e você? Aonde está seu carro?
- Eu não tenho carro. - Ela riu. - Moro aqui perto mesmo, vou andando.
- Eu te acompanho; mesmo perto é perigoso.
- Sei me cuidar.
- É, eu percebi. - Nós rimos. - Mas eu insisto.
- Ok, já que insiste.
Andamos pelas ruas desertas de Juneau, enquanto ela me contava como havia conhecido Lester e o motivo por ser tão próxima a ele. Megan foi atacada por um vampiro, e este era seu próprio pai; Lester chegou a tempo de impedir que algo pior acontecesse a ela, mas como consequência tirou a vida de seu pai. E então eu entendi seu olhar estranho minutos antes dessa conversa.
Lester poderia ter feito ela esquecer daquele drama, poderia ter colocado outra história em sua cabeça e nunca saber que seu pai foi morto por aquele motivo. Mas Megan fugiu antes que ele pudesse fazer isso, e foi tão esperta ao ponto de fugir dele durante uma semana, o que deu tempo pra ela assimilar a situação e decidir convencê-lo para que ela continuasse a saber da verdade. É claro que não foi uma tarefa tão fácil, mas Megan provou ser confiável e merecer. Lester nunca havia feito isso com ninguém, mas Megan não era qualquer pessoa.
- Eu tinha quinze anos.
- Ele gostou mesmo de você.
- E eu dele. Lester é incrível, às vezes me sinto filha dele.
Sorri pra ela e acabou o assunto. Continuamos andando sem dizer nada, até que ela quebrou o silêncio.
- Ainda não entendi por que estava apanhando daqueles caras.
- Nem queira entender... É ridículo.
Ela riu.
- Fiquei mais curiosa agora.
- É uma longa história, e já chegamos em sua casa.
Parei e ela parou depois de mim.
- Belo olfato - observou. - Amanhã teremos tempo pra você contar.
Não contive um riso.
- Até amanhã! - disse caminhando até a porta.
Acenei com a mão e ela entrou.
Vi um garoto de aproximadamente 14 anos puxando a cortina e olhando curioso pela janela, ele ergueu uma sobrancelha e soltou a cortina.
- Já fez amigos novos? - o garoto perguntava surpreso.
- Isso é hora de estar acordado? Já pra cama, pirralho!
Da janela ela acenou mais uma vez e apagou a luz. Então voltei todo o caminho em direção à minha casa.
Chegando, procurei por Robert. Ele parou os olhos nos meus por alguns segundos e já sabia qual era o assunto.
- A última vez que cacei foi hoje a tarde.
Ele coçou a testa e comprimiu os lábios, pensativo.
- O que está acontecendo comigo?
- O que você caçou hoje?
- Um lince... Foi o que eu encontrei.
- Precisa se alimentar de outros animais. A quantia de sangue que está bebendo não está sendo o suficiente. Precisa caçar ursos, muskox, animais grandes.
Caçar animais grandes não era problema pra mim, o problema estava em encontrá-los.

A semana passou correndo. De início eu era o único amigo de Megan, mas com o passar dos dias meus irmãos e até Veronika ganhou sua simpatia.
Megan era bem discreta, mesmo se tornando amiga de Veronika, sabia disfarçar bem na frente dela, como quem não sabia sobre nós, sobre sermos quem somos. Ela entendia o motivo por qual preferíamos não contar.
Enquanto andávamos, ela contava sobre sua vida e eu sobre a minha. Aos poucos nos tornamos mais próximos; era estranho falar para uma humana - que eu acabara de conhecer - verdades sobre meu passado e meu presente. A forma como trocávamos palavras era como se já fossemos amigos há muito tempo, mas era estranho como sua vida simples e normal me deixava à vontade.
Cada segundo da minha vida era tão medido e pressionado que falar com um humano sobre coisas sem importância era o meu momento de lazer. Saber que ela tinha um gato chamado Freddie; que quando ela tinha dez anos e a mãe foi levá-la tomar vacina, ela chorou e ficou manhosa desde às nove da manhã até ás dez horas da noite, quando dormiu. Que quando tinha 14 anos, ela teve uma briga com a mãe e foi resgatada por dois policiais depois de três dias; que deu um soco na boca do irmão quando ele havia roubado seu diário, e fez seus dentes da frente amolecer; que já quebrou o mesmo braço três vezes; que já achou um relógio de ouro na rua e o tem até hoje. Que já comprou a briga de uma amiga e apanhou; que batia a cabeça na porta de vidro de sua casa todos os dias pela manhã, e que achava que o motivo era que metade do seu cérebro ainda estava dormindo; que derrubou e quebrou um vaso de cristal de um museu e depois saiu correndo; que tem vários toc e que um deles é coçar a cabeça e morder a ponta da caneta antes de escrever; que fez um garoto de sua escola ir parar no hospital por que colocou cola em sua cadeira e a cola ultrapassou a calça do garoto; que foi suspensa da escola durante uma semana por levar cinqüenta filhotes de cães e gatos para doação; que fez seu irmão urinar na calça quando disse que o monstro do sótão estava em seus pés; que invadiu no meio da noite a casa do padeiro de sua rua para roubar-lhe o cachorro por motivos de maus-tratos; que tudo o que ela queria fazer naquele momento era tomar um Milk-shake e comer um cheeseburguer. - Tudo o que ela dizia, o modo como ela dizia, me levava para mais perto do "humano" que existia dentro de mim; por que mesmo sabendo que sou um vampiro, ela não se importava, ela apenas me tratava como um alguém qualquer, e eu tinha medo que Jenny não agisse dessa forma se soubesse a verdade, e medo maior que Dakota não agisse assim.



Entre Nossas DiferençasOnde histórias criam vida. Descubra agora