51. O almejante

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    A volta da consciência era realmente algo perturbador.
Eu podia escutar tudo em minha volta, de início, vozes e barulhos bem distantes, nada compreensível, estava tudo escuro e meus olhos pesados. Tentei abri-los, mas eu nada enxergava, minha visão continuava turva. Aos poucos, vozes e barulhos iam se tornando decifráveis, assim como as dores que corria por todo o meu corpo, minha visão se tornou nítida. E ao abrir meus olhos completamente, percebi Jenny em cima de mim, com os olhos assustados e molhados.
Embora agora eu entendesse o que estava acontecendo, ainda estava atordoado.
Harold avançou e tentou puxá-la, sem sucesso. Ela se debateu, e bateu seus punhos contra ele. Estava realmente decidida em não sair de cima de mim. Eu podia escutar o que pensavam, mas eram tantos pensamentos misturados que era impossível de entender. Ao menos, consegui decifrar o que Harold sentia naquele momento. Não era bem um arrependimento, não era pena. Ele até gostava de me ver naquela situação, mas por algum motivo ele sentia uma espécie de penitência, algo como uma reconsideração. Talvez por ver o que causou em sua filha.
— James, por favor, olha pra mim! — Ela segurava meu rosto com as duas mãos, ambas tremiam muito.
— Me desculpe, Jen... — Foi o que consegui dizer antes de tossir repetidas vezes, em golfadas de sangue.
— Shh! Não fala nada! Não fala nada.
A dor que eu sentia era absurda. A crise de asma por algum motivo havia passado, mas respirar era como ser apunhalado vinte vezes por segundo.
Olhei pra baixo e a estaca estava lá, cravada. Eu não sei se estava alucinando, mas podia jurar que ela se mexia. Se adentrava cada vez mais, chegando mais perto de meu coração.
— Precisa tirar, Jen... A estaca... — pedi.
Eu não sentia mais a presença de Harold na sala. Ele havia saído, não sabia exatamente há quanto tempo, mas isso só me preocupava mais.
Jenny olhava apavorada, no entanto, assentiu sem hesitar. Segurou a estaca com as duas mãos e não esperou pra puxar com força.
Não pude evitar o grito de dor, e como se não bastasse, logo em seguida expeli o sangue que nem sabia que ainda podia existir dentro de mim, perdi o ar quando tentei puxá-lo.
— Você precisa sair daqui, meu pai está louco, não sei do que ele é capaz! — Jenny apalpava minha blusa.
O que eu mais achava incrível, era que ela estava com medo do que o pai dela pudesse fazer comigo, quando o certo seria o inverso.
Estava confusa, talvez tão atordoada quanto eu, mas não se importava em estar em cima de uma criatura que ela sempre achou que fosse ficção, que mata e se alimenta de sangue.
Jenny achou meu celular e ligou para alguém. Talvez tivesse discado o primeiro número que achou. Ouvi a voz de Roy atender, e ela dizer algo. Por algum motivo, minha consciência tornou a se distanciar. Meus olhos começaram a pesar.
Jenny desligou o celular, e se levantou rapidamente. Ela percebera que eu estava perdendo a consciência, portanto não falou comigo, mas continuava assustada. Ela simplesmente se pôs atrás de mim, prendeu as mãos debaixo de meus braços e me arrastou até outro cômodo. Perdi a consciência quando ela me encostou numa parede e fechou a porta, trancando a passagem com algum móvel grande e pesado. Certamente ela pensara que algo muito pior estaria por vir.

(...)

Abri os olhos, não sei quanto tempo havia passado.
Quando recuperei totalmente a visão, pude ver Chance em minha frente. Atrás dele Roy contia Harold numa parede, com o antebraço em seu pescoço.
O móvel, grande e pesado, estava no chão; tudo o que havia dentro dele, estava quebrado e espalhado por todo o assoalho.
Também vi Matt, mas não sei ao certo o que ele fazia.
Jenny, num canto do cômodo, estalava impiedosamente os dedos. Fazia isso quando estava num estado muito grande de nervosismo. Seu rosto estava vermelho, mas as lágrimas já haviam secado. Ela permitia o que Roy fazia, embora não estivesse de fato machucando Harold, era difícil para um filho ver aquela cena. Ela apenas confiava.
Chance fez um sinal para Matt, e então se aproximaram e me carregaram pelos braços. Assim que começaram a correr, novamente perdi a consciência.

(...)

Acordei num grande suspiro, me inclinando pra frente, como se estivesse saindo de um pesadelo.
Rapidamente, alguém colocou a mão em meu peito, me impedindo de levantar.
— Hey! Sossega ai, menino.
Liz, como sempre, cuidava de meus ferimentos.
— O que aconteceu? — perguntei depressa.
— Não lembra de nada?
— Algumas partes... Quero dizer, aonde está Jenny? Roy, Chance, Matt...
— Os garotos estão lá embaixo. Jenny está aonde deveria estar, em sua casa.
— Ela não deveria...
— Deveria sim — interrompeu-me. — Harold é o pai dela, embora seja um caçador, não faria mal algum à sua filha. Lembre-se, somos nós a quem ela deveria temer.
Olhei pra ela e não disse nada. Liz continuava a passar em meus ferimentos, uma gaze embebedada em um líquido viscoso com cheiro forte; eu reprimia as caretas, mas aquilo continuava doendo demasiadamente, diferente de como estava acostumado.
Ela me olhava desconfiada, talvez soubesse que aquilo doía mesmo.
— Não está doendo, antes que pergunte.
É claro que eu não iria dizer a verdade. Com certeza ela iria querer me dar aquelas misturas com gosto de água suja.
— Deveria.
Franzi o cenho, e olhei pra baixo. Confesso que me assustei um pouco com o que vi.
—Se isso fosse possível, eu podia jurar que está infeccionado...— comentei.
— Está, James... — Ela olhou pra mim, e nem tentava disfarçar a preocupação. — Você ficou inconsciente por 17 horas, e seu ferimento só piora. Não teve sinal algum de melhora.
— Vai melhorar...
— Eu não contaria com isso... Estava só esperando você acordar pra ligar para nosso pai, afinal, você vai precisar de uma boa desculpa por toda essa confusão. Que bom que acordou, pois eu já havia decidido não esperar mais.
— Vai me encobrir?
Não era do feitio de Liz acobertar mentiras, dessa vez fiquei surpreso pela sugestão ter partido dela.
— Está ciente da bagunça que causou?
Desviei o olhar, notoriamente constrangido.
— Roy já consertou a bagunça com o pai de Jenny, o caçador. É claro que ele não nos daria paz depois disso, teríamos que nos mudar, talvez fugir por um bom tempo. Roy foi praticamente obrigado a apagar a memória do caçador, porém não sabemos quais riscos isso pode trazer. Quero dizer, não sabemos ao certo se existem brechas. Se a compulsão pode ser quebrada; afinal, ele é um caçador, quais as chances dele lembrar, se insistir no ponto falho de suas lembranças?
Quando eu digo que causou uma grande bagunça, estou me referindo á Jenny e à Dakota. Sabe que isso está errado, não sabe? Não podemos fazer com que nosso pai comece seu casamento com mentiras, desculpe, mas vai ter que resolver isso sozinho e encontrar uma maneira de que Kate também não saiba."
Eu queria pedir pra ela não ligar, queria convencê-la que eu iria melhorar sem que precisasse da intervenção de Robert. Mas é claro que ela me ignoraria e faria tudo do jeito dela. Então eu iria usar esse pouco tempo que eu tinha, pra pensar em algo.
Liz estava completamente certa. Eu não podia introduzir Robert nisso. O problema era meu; não tinha o direito de pedir que ele mentisse pra acobertar as minhas mentiras. Já haviam pessoas demais envolvidas nisso, e eu acabara de me dar conta que meu tempo estava se esgotando; precisava colocar logo um ponto final nisso antes que tudo ficasse ainda pior.
Eu não queria complicar ainda mais essa nossa conversa, mas eu precisava saber, precisava perguntar...
— Dakota ligou? — Fiz uma careta, esperando pela bronca.
— Não.
— Não? Nem mensagem na caixa postal?
— Nada, James. Desde o casamento não soube dela.
Fiz outra careta, mas dessa vez de preocupação. Me lembrei que antes do meu dia virar um caos, Roy havia me digo algo sobre Dakota estar com dores de cabeça, poderia ser algo grave? Ou será que já haviam queimado meu filme? Não haviam chances de Dakota saber sobre Jenny, a menos que alguém em casa tivesse contado... Mas nao... Nao fariam isso.
Enquanto Liz fazia o curativo, de lá de baixo pudemos ouvir o som da campainha.
Em poucos instantes, Chance abriu a porta e a voz de Jenny me causou calafrios. Por um momento desejei que fosse Dakota.
Liz olhou seriamente pra mim, um olhar intimidador.
— Irá terminar com ela — disse.
— Isso não pareceu ser uma pergunta...
— Não foi uma pergunta. Precisa terminar com ela, James.
— Eu sei... Mas não posso, não agora, aqui, desse jeito...
— Está jogando tempo fora; está ferindo Jenny e a você mesmo.
— Não estou ferindo a Jenny.
— Está sim. Mas ela ainda não percebeu isso, e nem você. Vai chegar um dia, que o que está fazendo irá machucá-la muito, e isso irá te consumir.
— Por favor, Liz... Não torne isso pior...
— Não sou eu quem está tornando isso pior, James. — Ela me olhou pesarosamente. —Acho que sou sua amiga e posso dizer; estou tentando fazer com que enxergue o que já está na cara, e só você não percebe. Você tem que saber, que você é o único responsável de fazer o que está fazendo, e mais tarde isso irá te afetar de uma maneira nefasta.
— Vou colocar um fim nisso, Liz. Foi pra isso que fui na casa dela hoje, ou ontem, nao sei direito. Mas agora as circunstancias mudaram, preciso deixar a poeira abaixar e conversar com calma. Se ela sumir, não terei como ir até ela. Não quero magoá-la, quero fazer com que ela entenda meus motivos, e não quero que ela pense que só estou fazendo isso pelo o que aconteceu hoje, ontem, enfim, você entendeu.
Ela ergueu uma sobrancelha, muda. Levantou-se, arrumando sua maleta de primeiros socorros, enquanto ouvíamos passos pelo corredor, logo em seguida uma breve batida na porta.
— Está nas suas mãos. Não quero ser aquela pessoa chata que diz "eu avisei".
Liz abriu a porta, cumprimentou Jenny educadamente, e nos deixou a sós.
Jenny continuava parada na porta, me olhando com um sorriso bobo no rosto.
— Por favor, entre — pedi.
Em passos lentos ela entrou, fechou a porta e se aproximou.
Parou ao meu lado. Me olhava piedosamente, mas continuava com o mesmo sorriso.
— Por favor, Jen... Não estou morrendo.
Ela riu, e se sentou no canto da cama.
— Eu precisava saber como você estava e... — ela se interrompeu antes de terminar a frase e desviou o olhar.
— E...?
Voltou a me olhar nos olhos. Um olhar profundo, certeiro, sem medo. Senti um arrepio subir a espinha; não só pela sagacidade, mas por certo medo, geralmente logo em seguida a esse tipo de olhar, vinha um beijo. Eu não poderia desviar, evitar, mas... também não podia corresponder.
Claro, seria só um beijo... Mas, um beijo errado. Na pessoa errada, da forma errada.
Liz estava certa, eu não sabia de fato o que estava fazendo.
Seus olhos mudaram. Ela franziu levemente suas sobrancelhas.
— E certificar que pra mim nada mudou.
Apoiei minhas mãos na cama, enquanto tentava ficar, perto do que poderia dizer, sentado, encostado na cabeceira da cama. Desta forma, estava na altura de seu rosto.
— Sobre isso, Jen... Precisamos conversar.
— Sim, mas não agora. Vamos ter muito tempo pra isso.
— Não só sobre isso... Há outra coisas que eu preciso dizer...
Ela me olhou fixo nos olhos, séria.
— Jen... Eu não quero que pense que ontem tem algo a ver...
Seus olhos desviaram dos meus, tive a impressão de ver uma lagrima cair quando ela virou o rosto. Cara, como isso era difícil...
— Eu não sei por onde começar, ou o que dizer... Quando começamos a namorar você sabia sobre os meus sentimentos pela...
— Sim, eu sabia — ela me interrompeu, agora olhando em meus olhos. — Mas não precisa ser assim, James. Ainda não vivemos tudo que temos pra viver, não tivemos tempo pra isso.
Os olhos dela sofriam tanto, que eu não conseguia ver sem sofrer junto. Olhei pra baixo, pra não precisar fechá-los, só dessa maneira iria conseguir terminar essa conversa.
— Jen, você é perfeita, tenho um carinho por você que não consigo medir, mas...
— Por favor, James, não faz isso...
— Eu ainda a amo, Jen...
Olhei pra ela, precisava saber como reagiria a isso. Seus olhos nadavam em lagrimas, e ela não tentava mais esconder, nem conseguiria.
— Por que está fazendo isso comigo? — Sua voz trêmula, indagava.
— Me perdoe...
— Eu te amo, James. Preciso de você. Por favor, dê uma chance pra nós, aonde é que ela esta agora? Eu estou aqui... Posso não ter tudo o que ela tem, mas posso ser tudo o que ela não foi pra você.
— Jen, o problema não está em você, não diga isso. Você é perfeita como é.
— Então me deixa tentar te fazer esquecer ela.
— Não é assim tão simples...
Ela se aproximou repentinamente, colocou as duas mãos em meu rosto e me olhou de uma maneira profunda e sutil.
— Me deixa te mostrar, meu amor, que posso ser quem você sempre quis.
Não pude desviar de seus olhos. Também não pude deixar de reparar que o que ela queria de mim, foi o que eu sempre quis de Dakota: apenas uma chance de mostrar quem posso ser. Irônico, não? Agora que eu finalmente tinha a anuência de Dakota, Jenny me pedia exatamente a mesma coisa. Eu não queria ser injusto com ela, mas não podia permitir que isso estragasse tudo agora.
Por outro lado, eu estava de frente com uma nova Jenny, diferente daquela que eu estava acostumado. Frente aos meus olhos eu via uma garota amargurada, com medo. Implorando por uma chance. Logo ela, que sempre se mostrou mais forte em assuntos delicados.
Embora me castigasse impiedosamente por nutrir seus sentimentos, me lembrei de quando minha intenção era fazer com que nada, nem mesmo Dakota, estragasse o que havia construído com Jen. Nessa missão, falhei com excelência.
Jen esperava por uma resposta, mas o que eu poderia dizer? Ela pedia mais do que eu podia dar, e em todo caso, dizer sobre o que aconteceu entre eu e D. no casamento, chegava a ser maldade. Ela não precisava saber, não agora.
Então, sem mais esperar, seus lábios tocaram os meus. Continuei imóvel, não sei se aquele beijo poderia ser considerado recíproco, mesmo assim pesou em mim.
Ela se afastou com delicadeza e analisou meus olhos. Eu não conseguia proferir nenhuma palavra, estava anestesiado.
Eu sabia que seria difícil, mas de maneira alguma imaginei o quanto poderia ser.
Depois desse longo momento sem conseguir reagir, arruinei todo o processo. Seus olhos já não produziam mais lágrimas; sua expressão, embora ainda amargurada, havia dado espaço à esperança. Como pudera eu, despedaçar seu coração duas vezes em um só dia?
Tamanha confusão estava dentro da cabeça de Jenny. Ela acabara de descobrir que se relacionava com um vampiro durante meses; que seu pai, não caçava animais, mas outros como eu; acabara de presenciar cenas forte aonde eu poderia ter morrido em seus braços; seu pai sendo contido por outros vampiros; acabara de ter a confirmação do meu amor pertinaz pela D. Lidar com um término de namoro não seria nada simples agora.
Ela lutaria. E era isso o que eu temia. Ela não se importaria em prostrar-se diante a mim, iria até o fim, não importa o que eu dissesse.
Por fim, abaixei meus olhos, decepcionado comigo mesmo por ter deixado ir tão longe, por não ter percebido que isso um dia poderia, muito provavelmente, acontecer. Não por que Dakota, de fato, seria minha. Mas porque se um dia eu tivesse a oportunidade de escolher, seria Dakota.

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