46. Degustar

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  Uma semana antes do casamento, Robert decidiu contar à Chance que num futuro bem próximo teria não só uma madrasta, como também duas novas irmãs morando em casa.
É claro que essa não seria uma conversa tão civilizada.
— Então eu mal volto pra casa e sou recebido com essa notícia? Que você já superou a morte de minha mãe? E detalhe, me conta isso uma semana antes de acontecer?
— Não superei, Chance. Só estou tentando seguir em frente. Deveria experimentar também.
Isso é superar!
— Ainda amo Marie! Ela sempre fará parte de nossas lembranças, mas não mais de nossas vidas. Tente entender.
— Ah, mas eu entendo. Eu entendo muito bem, meu pai. E eu só espero que você entenda que não estou, nem estarei de acordo. E a partir do momento em que ela entrar por aquela porta, eu sairei por outra.
Chance virou as costas e subiu as escadas.
— Chance... — Robert tentou falar.
— Sem mais. — Ele encerrou o assunto e sumiu pelo corredor.
Eu, Matt e Ben continuávamos calados, tentando inutilmente fingir que não estávamos prestando atenção na discussão.
— Eu sabia que ia ser assim — disse Rob. — Por isso evitei dizer antes.
Robert voltou para a cozinha e eu fui até ele.
— Ele não conhece Kate... — comecei a dizer. — Talvez se você a apresentar antes...
— E você não conhece Chance — Robert me interrompeu.
Olhei para o lado. Robert preparava vários pratos e entradas; eu sabia que aquela era uma preparação para o casamento, que talvez agora não acontecesse mais.
Roy entra acompanhado de Veronika pela porta da sala; ela corre até a cozinha para comprimentar Robert.
— Tudo bem, querida? — Ele dá um beijo em sua testa.
— Estou ótima, e você?
— Vou bem.
— Oi, James!
— Oi, Veronika — respondi.
— O que é isso? — Ela olhou em uma das entradas que Robert preparava. — Parece bom.
— Experimente! — propôs Robert.
— O gosto é tão agradável quanto a aparência — disse, ainda mastigando. Ele riu.
— É um blini de batata com salmão. Aprovado, então?
— Aprovadíssimo! É para o casamento, não é? Quem sabe assim, Roy se acostume com o gosto de salmão e aceite ir comigo à restaurantes japonês.
— Jamais — murmurou Roy, ao lado dela.
Reprimi um riso, me lembrando de como Roy acreditava erroneamente que os efeitos da Centoph era devido a comida japonesa que ele havia comido dias antes. Ele ainda acredita que tem um pouco a ver.
— Hey! Você vai sim! — Veronika empurrou Roy, brincando. Neste momento, ele esbarrou num prato, que se despedaçou ao cair no chão.
Roy olhou aturdido para baixo, haviam cacos de vidro por toda parte. Veronika colocou as duas mãos na boca, sobressaltada.
— Me desculpe! Eu limpo! — Ela correu pegar os cacos espalhados.
— Não se preocupe, não foi nada — Robert se abaixou ao lado dela e colocou uma mão em seu ombro, a tranquilizando.
— Ai! — exclamou ela.
Estreitei os olhos e vi um corte em seu dedo. Era mínimo, mas eu podia sentir o cheiro de sangue que estava por sair. Parei de respirar.
Percebi Robert olhando instantaneamente para mim, mas eu não conseguia desviar os olhos da mão de Veronika; ele voltou os olhos no mesmo ponto que eu quando ela apertou o dedo cortado — que ainda não sangrava.
— Não faça isso! — disse Rob, quando logo percebeu que com a pressão no dedo, havia começado a sangrar. Mas ele entendia, que essa era uma ação reflexa de quem se corta. — Venha, vamos fazer um curativo nisso.
Robert a tirou dali às pressas, mas Veronika estava bem tranquila com a situação, provavelmente por que Robert a fazia sentir assim. Não era nada demais, era um pequeno corte, mas que poderia estragar tudo. Roy, olhou pra mim antes de segui-los, porém nem imaginava o que se passava em minha cabeça naquele momento, só estranhou o modo como eu nem piscava.
Eu ainda estava paralisado. Ha tanto tempo não via sangue; eu me sentia como se estivesse num choque anafilático. Quando voltei a respirar, percebi que o cheiro ficara. Veronika já estava no segundo andar, provavelmente com algo tampando a saída de sangue, por que eu ainda sentia o cheiro?
Olhei pra baixo e entendi. Havia uma gota de sangue perto dos cacos de vidro. A fitei por alguns segundos, meu corpo ficara rígido.
Me chamava. Aquele sangue me chamava de todas as maneiras possíveis. Era uma simples gota, e chegava a ser ridículo a maneira como estava me controlando.
Pestanejei antes de dar um passo adiante. Minhas mãos estavam tão rígidas fechadas em punho, que até doíam.
A poucos centímetros daquele sangue, olhei pra sala e lá só estava Matt; mas estava tão distraído que não perceberia o que eu estava por fazer.
Me aproximei e passei o dedo indicador; olhei fixamente para o sangue em meu dedo. Seria tão errado experimentar? Era apenas uma gota, quão mal isso poderia fazer?
Então, sem pensar mais uma vez, eu provei.
Não pude evitar o arrepio que senti pelo corpo; eu nem me lembrava mais do gosto, era mil vezes melhor do que o sangue que eu estava acostumado a beber. Por que passei tanto tempo rejeitando algo tão bom? Afinal, eu ainda me sentia eu mesmo; nada mudou. Uma gota era inofensiva.
Foi como uma espécie de retrospectiva, ao sentir o gosto, mesmo que superficial; voltei no tempo, no dia em que senti esse mesmo gosto... E me lembrei de Gary.
Gary, meu melhor amigo, o qual eu assassinei fria e incalculavelmente. Me levantei do chão num salto, e me lembrei qual era o motivo por eu nunca ter feito isso antes.
Fitei meus dedos, agora limpos; o chão que só haviam pedaços de vidro. A culpa me atingiu como uma flecha. Olhei imediatamente para a sala, Matt continuava distraído. Subitamente comecei a me sentir mal naquele ambiente e decidi ir pra fora; fingindo nada ter acontecido, mas se sentindo tão culpado quanto um ladrão que enxerga um policial em cada sombra.
Na maioria das vezes em que eu me sentia um pouco atordoado, sem saber como reagir em determinada situação, eu tinha o costume de andar por aí, espairecer.
Olhei para o céu, logo começaria a escurecer. Fui até o centro da cidade e por lá fiquei um bom tempo.

Voltei pra casa horas mais tarde. Agora que Veronika não estava mais lá e minha cabeça estava um pouco menos pesada, me sentiria mais tranquilo lá dentro.
— Precisa parar de sumir assim — murmurou Roy, passando ao meu lado.
Olhei confuso pra ele, tentando entender sobre o que ele queria dizer.
— Não entendi — falei no mesmo tom que ele.
Roy olhou em volta, checando que estávamos sozinhos na sala.
— Acha que Robert não sabe que quando você some, você está indo se encontrar com alguém? — ele continuou a falar baixinho.
— Eu não estava com ninguém — garanti. — Não desta vez.
— Aonde estava? — perguntou como quem não quer nada, tentando disfarçar a curiosidade.
— Deixa pra lá. — Subi para o meu quarto, também tentando disfarçar; no meu caso, a tensão.
Naquele momento, ir me encontrar com Jenny seria a última coisa que eu faria. Não havia olhado por este ângulo, mas nem pensei em fazer isso; se ela me ligasse, talvez eu nem a atenderia... Estranho que mesmo irracional ou não, eu ainda sentia o dever de protegê-la... às vezes, até de mim mesmo.
Liz bateu na porta e entrou.
— Nosso pai está pedindo que todos desçam, pois ele tem um comunicado importante — disse.
Estranhei, mas fiz o que ela dizia.
Todos nós estávamos na sala esperando pelo assunto tão importante de Robert.
— Quero informar a todos vocês que apesar dos pesares, o casamento irá acontecer.
Tenho certeza que não fui o único a ficar surpreso. Olhei com o canto dos olhos para Chance, e ele ficara visivelmente incomodado.
— Ótimo! — Chance se manifestou. — Me diga quando ela virá, pra eu fazer as minhas malas.
Chance se levantou e começou a subir as escadas.
— Chance, eu não disse que podia se levantar — disse Rob, sem pestanejar.
— O senhor fez a sua escolha, meu pai. Farei a minha.
— Volte a se sentar, eu não terminei.
Chance o fitou, decidindo se obedeceria ou não.
— Por favor — acrescentou, Rob. Foi quando Chance voltou ao seu lugar, mesmo com a cara fechada— Como já planejado, o casamento será no próximo sábado — disse Rob, olhando para mim e os outros. — Mas eu não disse que ela irá vir morar conosco — terminou a frase, olhando para Chance.
Chance franziu o cenho, pensativo.
— Faremos a cerimônia, casarei com Kate de maneira solene, mas ela continuará morando em sua casa enquanto eu continuarei aqui. — continuou Rob. — Não quero falhar com você e nem com ela. E não quero perder nenhum dos dois. Já te perdi uma vez, Chance; não quero perder de novo. Eu entendo que no momento não queira outra mulher aqui em casa, no lugar de sua mãe; mas não posso deixar que controle a minha vida também. Irei respeitar a sua intolerância, mas você precisa também respeitar e entender que enquanto ela não pisar aqui, o meu relacionamento com ela não irá se tratar de você. — Ele fez uma pausa e olhou para nós. — Eu quero ver isso. Todos nós juntos aqui, reunidos. E eu espero que um dia, eu possa ver neste meio a mulher que eu amo, com as filhas dela.
Depois que claramente Robert terminou o que queria dizer, houve uma grande pausa em silêncio.
— Era só isso o que eu queria dizer — completou. — Já podem voltar ao que estavam fazendo.
Demoramos para sairmos do lugar, mas então todos começaram a se levantar e sair em silêncio da sala. Menos Chance.
Quando só os dois ficaram lá, ainda podíamos ouvir a conversa, Chance começou a dizer.
— Obrigado.
— Entendo se não quiser comparecer, mas fica aqui o convite — disse Robert.




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