45. Com a mão no fogo

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— Dakota está no jardim — sussurrei. — Vocês podem fingir que estão dormindo pelo menos até a hora de ela ir embora?
— Quem é Dakota? — perguntou Chance.
Olhei para Roy, lembrando-me de repente de quando Robert pediu para não cometer nada sobre Kate ou qualquer uma de suas filhas. Ele estava esperando o momento certo pra dizer ao seu filho que se casaria em menos de três semanas.
— Vamos lá pra cima — disse Roy. — É uma longa história.
Ouvi os passos subindo a escada enquanto eu ia até o jardim, dei uma olhadela para trás e vi Roy com um sorriso travesso no rosto.
— Dakota?! O que está fazendo aqui numa hora dessas?
Ela me abraçou e fiquei sem reação. Senti suas lágrimas molharem meu braço.
— Alex, não é? O que ele fez dessa vez?
Ela olhou pra cima e me encarou. Seus olhos eram sonolentos e estavam bem vermelhos, havia algo errado.
— Posso ficar aqui? Essa noite...? — perguntou.
— Dakota... Você... — Olhei mais de perto. — Você andou bebendo?
— Eu? Só um pouquinho...
— Deixe-me olhar pra você. — Afastei ela, examinando seu estado. — Pouquinho? Você está bêbada! Dakota, você não é assim, o que está acontecendo?
— Se é pra me criticar, eu vou embora! — Ela se virou pra ir mesmo, e provavelmente tudo deve ter girado, pelo modo como ia cair, se eu não a segurasse a tempo.
— Não vai à lugar algum desse jeito. Até por que sua mãe não iria gostar nada de ter ver assim.
— Vai me acobertar da futura mulher do seu pai? — Ela soluçou. — Você é legal, James.
— Vamos. — Continuei segurando-a e ajudei que entrasse em casa. 
O que estava acontecendo com essas garotas? Megan fumando, Dakota bebendo; ou eu que era careta demais ou elas estavam mesmo ficando doidas.
Após colocá-la no sofá, fui para a cozinha e oscilei para os lados. Em minha curta experiência com pessoas alcoolizadas, aprendi dois meios de deixá-las sã; o primeiro era colocá-la debaixo de um chuveiro com água gelada, e o segundo era dar café puro para beber. Como a primeira opção estava fora de cogitação, coloquei a máquina de café para funcionar.
Voltei, inseguro em chegar perto dela.
— Beba — eu disse, passando-lhe o copo.  

Ela pegou o copo e começou a beber. Sentei-me ao seu lado, e limpei as lágrimas que haviam escorridos por sua face.
— Tudo bem. Agora me conte o que foi que aconteceu.
Vi uma lágrima rolar por sua maçã do rosto; não esperei para secá-la. Ela me olhou de uma maneira que me deixava sem jeito. Seus olhos eram inofensivos, mas capazes de trazer a dor. Ela continuava calada; queria dizer, mas não conseguia.
— Conte-me, Dakota. Qual o motivos de todas essas lágrimas?
— Ele fez... de novo... — disse, por fim. Percebi que ela tinha dificuldade em lidar com as palavras.
Não era preciso perguntar, eu já sabia do que se tratava. Será que isso já havia virado um vicio? Ele realmente não se importava em quebrar o compromisso.
— James, eu não tenho mais ninguém. Eu abandonei tudo pra seguir minhas próprias ilusões. Percebe que você é o único que posso confiar estas palavras? Não consigo dizer essas coisas para mais ninguém! — ela disse enquanto as lágrimas nasciam em seus olhos, corriam por sobre a face e morriam em seu queixo.
Seu olhar me penalizou profundamente, com aquelas lágrimas que não precisavam estar ali apertando o meu coração.
— Por favor, não chore — supliquei.
Na desesperança de seus olhos úmidos, havia ódio por aquele que havia quebrado sua confiança... Mais de uma vez.
—Pra que tentar, se é tão ruim?
Ela me olhou e não tinha respostas; então encaminhou seus olhos pra baixo, fechando-os enquanto pude ver lentamente uma lágrima caindo até o chão.
Ela pegou uma almofada e se aninhou no encosto do sofá. Ela olhava para mim, mas seus olhos estavam pesados demais, então os fechou; de repente, se fez silencio e sua respiração se tornou mais leve. Eu não ousei interromper.O corpo dela estava menos rígido, e os músculos relaxados. Ela dormiu tão rápido, que devia estar muito cansada.
— Eu não vou mais entregar os meus sonhos a ninguém... — resmungou.
Não sabia se ela falava comigo ou se estava apenas sonhando. De repente, ela se arrastou e aconchegou-se em meu peito; fiquei sem reação e imóvel, com medo de poder acordá-la. Parecia estar tão serena depois de tanto desarranjo.
Eu queria deixá-la ali. Novamente aquele pareceu se tornar o melhor lugar do mundo, e eu queria envolvê-la com meus braços, mas não podia demonstrar tanta ternura; precisava afastar esses pensamentos até de mim.
Com muito escrúpulo, me espremi no sofá e fui deslizando para fora dele. Conforme ela caia devagar no estofado, resmungava baixinho; e com uma mão, inconscientemente agarrou a minha camiseta. Suspendi o corpo no ar, praticamente inteiro fora do sofá; e com ainda mais cautela, fui desatando um por um de seus dedos delicados e muito aplicados.
Finalmente liberto da afeição que procedia inconsciente por mim, levantei-me e fiquei com alguns segundos olhando aquele pequeno e delicado corpo encolhido no sofá; e então os pensamentos começaram a voltar. Chacoalhei a cabeça e fui até a cozinha; me debrucei na pia, meu corpo parecia fervilhar, os pensamentos indo e voltando, tudo o que eu conseguia pensar era voltar lá, acordá-la e dizer "Hey! Estou aqui pra você, me deixa te fazer feliz!". O que ela pensaria? Qual seria sua resposta? Não conseguia expulsar isso da minha cabeça! Estava me enlouquecendo!
Então escutei um leve ruído vindo da sala; olhei e ela tinha acordado, agora estava sentada.
Da cozinha, demorei os olhos nela; tinha medo de ir até lá e fazer o que não podia. Até que ela olhou confusa para os lados.
Andei calmamente de volta ao sofá, como se nada tivesse acontecido.
— Está tudo bem? — perguntei.
— Hmm... não sei... — ela murmurou sonolenta.
— Não parece estar bem — falei, analisando sua expressão nauseada.
— Só estou... um pouco enjoada... Vai passar — ela disse. E seus olhos fecharam devagar.
— Dakota? — Coloquei uma mão em seu ombro, e ela nem se moveu. Havia dormido novamente. Ela quase caiu para o lado, mas a segurei a tempo. Cômico se não fosse infeliz. 
Ela já estava em meus braços, então pegá-la no colo não faria tanta diferença, até por que eu tinha certeza de que ela não acordaria nem se a casa fosse atingida por um tornado. Levei até o meu quarto e a deitei em minha cama.
Roy não estava em nosso quarto; devia estar no quarto de Chance e Matt. O quarto estava escuro, só com o reflexo da lua que passava pela fresta da cortina.
Ela se aconchegou e reflexivamente segurou firme uma de minhas mãos. Franzi o cenho, tentei soltar, mas seus dedos estavam aplicados em não desatar. Eu estava em pé e não poderia ficar ali até seus dedos cansarem, então sentei-me meio deitado desajeitado ao seu lado, encostando metade das costas na cabeceira da cama.
Eu queria tantas coisas. Queria seguir seus passos; caminhar junto a ela; desvendar suas incógnitas. — O que eu era? Um tremendo covarde com medo de saber o que ela realmente pensava? Ou eu a respeitava tanto, sendo assim, respeitando sua intimidade?
Mas havia uma coisa que eu queria saber mais que tudo. O meu mais profundo e incontrolável desejo de desvendar. Saber se ela me amou.... nem que fosse apenas por um segundo.
Dakota era curiosamente indecifrável, e eu não conseguia arrancar nada, nem uma palavra, nem um segredo, nem um fiozinho de sentimento. Era tudo tão endurecido, tão petrificado, que de tanto insistir no mesmo ponto acabei ralando os dedos. — Fui idiota o bastante para estragar tudo. Idiota o suficiente para não tentar usar a única arma que me daria todas as respostas que insistiam em me cortar por dentro. — O único sentimento que ela às vezes parecia fazer questão em me mostrar, era por Alex. Justo por ele.
Eu me sentia estranhamente inseguro, indeciso demais; eu odiava me sentir assim, e odiava ainda mais esse jogo de perguntas sem respostas. Eu tinha tanto a perguntar, tanto a dizer, e eu só precisava de um incentivo. Tanta coisa mal resolvida, tanta coisa que foi deixada para lá.
Abri os olhos e arregalei, assustado. A claridade da manhã batia diretamente em minha janela. Então percebi eu não estava mais na posição de antes e que Dakota estava confortavelmente dormindo em meus braços; fiquei com medo de me mexer e acordá-la, mas aquilo era estranho, muito estranho. Inclinei-me para olhar no relógio ao lado da cama, era 9:00 am.
Eu não estava entendendo mais nada. Dormi? Impossível. Eu devia ter fechado os olhos e não percebi o tempo passar. Que loucura.
Me dei conta que eu segurava sua mão; eu não podia ver seu rosto, afinal, estava virada contra mim, enquanto eu a envolvia com meu braço.
Cautelosamente soltei sua mão e tentei afastar, torcendo para que ela não acordasse e se sentisse constrangida ou desonrada. Provavelmente não se lembraria da noite anterior.
Eu podia jurar que vi sua bochecha se mexer enquanto eu afastava minha mão, estaria sorrindo? Improvável.
Ainda mais meticulosamente, tentei me levantar sem que ela sentisse. Consegui me sentar na cama, antes que ela se virasse e parasse os olhos em minhas costas. Virei-me para ela, e ela me encarava. Esperei que dissesse algo, pra ter certeza de que não tinha percebido eu a envolvendo enquanto dormia, que aliás, nem eu mesmo havia percebido antes.
— Bom dia — falei sem jeito, quando vi que ela demorava em dizer algo.
Ela deu um meio sorriso bobo e cobriu o rosto com as duas mãos.
— Estou morrendo de envergonha — confessou.
Eu ri.
— Não sinta... Todos tem seus momentos de... — me interrompi antes de terminar.
— Fraqueza?
— Hum... é — admiti.
Ela riu, tirando as mãos do rosto e desviando os olhos, olhando para o teto.
— Pois é...
— Dormiu bem...? — tentei arrancar algo dela.
— Sua cama parece ser feita de nuvens!
Estreitei os olhos. Eu não iria conseguir arrancar nada dela sem que parecesse suficientemente estranho. Então deixei como estava; se ela havia percebido, um dia eu iria descobrir.

Minutos mais tarde, Veronika veio buscar Dakota. Com certeza teria uma longa conversa com Kate, mas enfim, eu não podia entregá-la bêbada.
— Ah, se eu fosse você... — começou Roy, ao me ver olhando Dakota ir embora.
— Mas você não é — interrompi. — Tenho namorada! — rumorejei.  
— E isso importa? — rebateu ele. Olhei incrédulo.
— É claro que importa! Não sou como o Alex... E você também não costumava ser.
— Essa é uma situação diferente. Jenny entenderia se você explicasse direito.
Revirei os olhos.  
— Só acho que você é lerdo demais.
— É melhor não dizer mais nada, Roy. Ou quer que os recentes saibam da sua moleza com Veronika?
— Moleza com Veronika? — perguntou Chance, chegando atrás de mim. — Essa eu quero saber.
Roy me fuzilou com os olhos. Ergui as sobrancelhas; era pra ser só uma ameaça.
— Conta aí, James — insistiu Chance.
— Ele só demorou um pouco para beijá-la. Só isso — dei de ombros.
— Essa é toda a verdade? — Chance ergueu uma sobrancelha.
— Exceto que ele deu várias desculpas para não ir; ficou com medo na hora H, parecia um cãozinho com o rabo entre as pernas quando ela chegava perto; e que ele ainda foge dela algumas vezes.
Chance caiu na gargalhada.
— Valeu, James — disse, Roy batendo em meu ombro.
— Desculpe — eu disse.
— Chance, o que conversamos sobre usar dons em casa? — perguntou Robert da cozinha.
— Desculpe, pai — disse Chance, aos risos. — Dessa vez não pude evitar.
— Está rindo tanto, Chance — começou Roy. — Então por que você não conta a ele, sobre o dia em que você vestiu uma fantasia de sapo para uma festa, por que a garota adorava sapinhos de pelúcia, e ainda assim, no final da noite ela beijou outro cara e te achou ridículo?
Chance parou de rir e de repente mudou sua expressão para sério.
— Está rindo de mim — defendeu-se Roy. — Há muitas coisas para rir de você.
— Mas posso descobrir muito mais sobre você, além do que já sei.
— Bom... a conversa está boa, mas acho que vou subir. — Tentei me esquivar daquela disputa.
— Você fica — disse os dois ao mesmo tempo, cada um segurando um braço meu.
— Socorro — rumorejei.
— Entrou nessa sozinho, saia dessa sozinho — disse Rob, divertindo-se junto.
— Traidor — bafejei.
Ele riu.
— James, fale mais do que sabe sobre Roy — disse Chance.
— Chance... — Robert olhou de canto, reprovando.
— Ele sabe mais sobre mim — disse Chance. — Não é justo.
— Você é mais manipulador do que o Ben — disse Roy.
— É por que ele não sabe manipular direito. Já pode começar a contar, James.
Minha boca abriu contra minha vontade.
— Espera, espera! — disse Roy. Chance olhou para mim, e consegui engolir as palavras. — Se ele falar, não só você, mas todos aqui nesta casa estão sujeitos a saber.
— Está recuando, Roy? Você sabe tantas coisas sobre mim; James deve saber algo muito grande, pra você levantar a bandeirinha branca.
— Não estou levantando nada. Só acho que usar seu dom para isso é jogar sujo, mas usar sem importar com quem vai escutar é jogar sujo demais.
— Aposto que você já usou seu dom comigo. Saber tão poucas coisas sobre você, é estranho.
— Não. Eu usei meus dons tão poucas vezes, que posso contar nos dedos de uma mão. Você sabe poucas coisas sobre mim por que sei que você joga sujo desde o momento em que te conheci.
— Vou encarar isso como um elogio. Pode começar, James.
Minha boca se abriu de novo. O pior de tudo era que eu era uma marionete naquele jogo; e ainda assim, eu não sabia o que ia sair de minha boca.
— Pare, Chance! Você não se importa mesmo, não é? — perguntou Roy.
Chance olhou para mim, e a minha boca se fechou novamente. Quando aquele abre e fecha ia acabar?
— Não, eu não me importo. Estou muito curioso. Só estou deixando que James ainda não fale nada por que eu adoro um suspense!
— Pai, faça ele parar — pediu Roy. — Sabe do que estou falando.
Robert olhou para nós três e caminhou até nós. Senti um alívio quando isso aconteceu, pois embora eu fosse um fantoche ali, com a tensão que Roy estava no corpo, pude saber que ele não iria me perdoar depois. E eu ainda não conseguia descobrir o que eu iria falar de tão importante que Chance não podia saber.
— Tudo bem; vamos parar com essa brincadeira — disse Robert, me soltando daqueles dois loucos.
— Por que parar? Agora que está ficando divertido!
— Chega de entrar na intimidade dos outros, Chance — disse Rob.  
—O que eu não posso saber? Até agora pouco, o senhor não estava se importando com nós, mas só foi o Roy dizer que o senhor sabe do que ele estava falando, e agora temos que parar.
— A regra é não usar os dons aqui dentro.
— Então vamos para fora.
— Não se trata disso. Quando digo aqui dentro, quero dizer não usar uns aos outros. Você prometeu mudar, Chance.
— O que James sabe que eu não posso saber?
— Qualquer coisa que ele saiba e que Roy não quer que ele diga, não é para ser dito e não é problema seu.
— É só uma brincadeira, pai.
— Uma brincadeira que está indo longe demais. Chega; e eu não vou repetir — disse e voltou para a cozinha.
— Ouviu — disse Roy, e caminhou até a sala.  
— James, venha me dizer o que acha desta entrada. —Foi a maneira de Rob me chamar até a cozinha; eu era o único que ainda rejeitava comidas, mas Chance não percebeu o trocadilho.
— Quero sigilo sobre Centoph — cochichou ele. — Chance não deve saber. Roy não se sente à vontade com o assunto, e além disso como já sabemos é uma fruta perigosa, Chance ainda não sabe sobre a existência dela; já carbonizei a árvore, mas todo cuidado é pouco.


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