43. De volta ao lar

129 13 0
                                    

Talvez tudo mesmo tenha seu preço, e eu estava pagando por querer viver como minha família. Robert continuava a procurar outra saída, mas eu sabia que só existia uma única saída, e eu não queria abrir espaço e deixar que o monstro que havia dentro de mim terminasse de entrar. Rob não disse exatamente com essas mesmas palavras, mas era isso. Eu estava no controle, porém até quando?
Eu queria acreditar que poderíamos melhorar isso. Queria acreditar tanto quanto Robert acreditava, mas deixar pra lá cansara menos. Estaríamos juntos andando em círculos, afinal, nem sempre temos as respostas que queremos ouvir.
Por várias vezes me peguei pensando em ceder, era uma luta contínua contra mim mesmo. Eu estava em abstinência sobre algo que provei apenas uma vez há anos, depois de tanto tempo... Minha garganta estava em constante ardência, de vez em quando sentia calafrios e a sede só aumentava, meus olhos declaravam o fim de minha paz. Minha família começara a se assustar comigo, mas eu... eu era quem mais estava assustado.
Megan insistia em "me ajudar"; inocência pura, mal sabia que estaria me levando ao abismo em chamas. Dizia poder me ajudar sem que eu precisasse matar ninguém, e eu sempre fazia com que ela parasse de falar, afinal, a questão não estava apenas em matar, mas também em o que eu me tornaria depois de beber o sangue de um humano.

— Garotos... — disse Robert, pendurando o casaco no cabide ao lado da porta. — Suponho que não irão para faculdade amanhã.
— Por quê? — perguntei, confuso.
— Colocaram fogo na diretoria e em toda a secretaria.
Arregalei os olhos. Eu e Roy trocamos olhares expressivos.
— O prejuízo deve ter sido grande — comentou Robert.
— Faz muito tempo? — perguntei.
— Creio que não. Quando passei em frente, os bombeiros haviam acabado de chegar.
Robert começou a procurar algo nas gavetas da estante.
— Viram minha pasta de documentos? — perguntou. — Não estou achando... Devem estar em meu quarto. — Ele correu para cima.
— Está pensando o que estou pensando? — sussurrou Roy.
— Acha que Ben está envolvido? — sussurrei tambem.
— Tudo indica que sim.
Franzi o cenho.
Uma exclamação forte e sonora exprimindo dor desceu do segundo andar.
Eu e Roy trocamos olhares arregalados e partimos apressadamente para o quarto de Liz.
Robert já estava parado ao lado da cama de Liz. Ela gritava e se contorcia como antes. — Parecia nunca acabar.
O próximo grito veio junto de um suspiro fundo, levantando-se repentinamente, assustada.
Não precisávamos perguntar, a resposta era óbvia. Ela estava de olhos arregalados, me encarando.
— O mesmo — ela sussurrou, com a voz trêmula.
— O mesmo? — perguntou Rob, confuso.
— Idêntico ao anterior — sussurrou baixinho, quase inaudível. — Vi James morrendo, novamente.
Pestanejei. Já eram três visões; minha morte estava mesmo de hora marcada.
— Não se lembra de nada? — perguntou Rob.
— Não. — Ela afundou o rosto em suas mãos pequenas e delicadas, sentindo-se culpada.
— De que iria adiantar se ela lembrasse, pai? — perguntei. — Em todo o caso, não podemos mudar o que já está escrito.
Ele franziu o cenho ao ouvir a verdade.
— Talvez o que está escrito, somos nós impedindo a sua morte — disse ele.
— Não sejamos céticos. Não vamos criar subterfúgios só para fingir que não vou mesmo morrer; para aliviar a aflição de todos; só para... me confortar...
Olhares tristes me acertaram em cheio.
— Parem de me olhar assim — pedi. — Por enquanto estou vivo — Sorri de leve, sem humor.
— Tive uma ideia! — Roy quase gritou. — Talvez podemos solucionar esse mistério! Vamos fazer com que a Liz tenha os mesmos pesadelos, para o James tentar ver as imagens dela.
— O que? Não! Eu nunca conseguiria, e não quero obrigá-la a passar por isso de novo!
— Talvez seja falta de prática, James. Você nunca tentou ler intencionalmente a mente de alguém.
— E não será agora que vou tentar! Os pesadelos de Liz são vívidos demais, seria tortura!
— Roy tem razão, James — disse Robert. — É uma teoria, mas pode dar certo.
— Vocês não vêem como ela chora e se debate? — perguntei incrédulo. — Não quero fazer parte de fato dessa tortura!
— Por um bem maior — acrescentou Robert.
— Eu não me importo. Se isso vai ajudar, é claro que eu aceito — disse Liz.
— Se minha hora tiver que chegar, vai chegar. Saber sobre um pesadelo não mudará isso.
— Reunião sem mim? — perguntou Ben, chegando ao quarto.
Perdemos o foco da conversa e todos os olhos viraram-se a ele.
— Onde esteve, Ben? — perguntou Rob, desconfiado.
— Só estava dando uma volta — Ben disse com um meio sorriso. — O que houve?
— Enquanto você estava dando uma "volta", Liz estava tendo pesadelos — disse Roy, num tom de censura.
— Pesadelos? — Ben correu para o lado de Liz. — Que tipo de pesadelos, Liz?
— O mesmo anterior — sussurrou ela.
Ele a puxou num abraço.
— Talvez queira voltar a dormir, querida — propôs Robert.
— Não acho que eu conseguiria — ela disse baixinho.
— Ao menos descanse. — Robert afagou o braço de Liz e saiu do quarto.
— Soube do acontecido, Ben? — perguntou Roy, desafiando-o.
— Não... Que acontecido?
— Engraçado... Eu poderia jurar que você foi um dos primeiros a saber.
— Aonde quer chegar? — perguntou Ben.
— O fogo que você e seus "amiguinhos" colocaram na universidade, arruinando todos os nossos documentos.
— Que história é essa, Ben? — perguntou Liz.
— Eu não fiz isso — defendeu-se Ben.
— Tudo indica que fez sim — rebateu Roy.
— Seus sinais são falsos, Roy — defendeu-se Ben, mais uma vez.
— A policia vai descobrir que foi. E se a policia não descobrir, eu descubro.
— Por que se importa tanto, Roy? O que você tem a ver com isso?
— Os meus documentos têm a ver! E agora eles viraram pó. Sabe o quanto foi difícil pra falsificar esses documentos?
Ben virou o rosto e não respondeu.
— O que me faz pensar que você confessaria, né? Nunca teve essa coragem mesmo — disse Roy, e saiu do quarto.
Liz olhava confusa, não sabia em quem acreditar. O clima ficou estranho, então sai também, alcançando Roy. Antes mesmo de descer as escadas ouvi Liz questionando Ben e ele negando tudo.
Ao chegar à sala, Robert estava com uma expressão pesada, com certeza não escutara nossa conversa no segundo andar, ao que tudo indicava, havia algo lá fora, e era nisso em que prestara atenção.
Fitamos Robert rígido demais, por alguns segundos. Até que ele caminhou calado ao jardim, deixando a porta aberta, como nunca fizera antes. O vento assoviava circulando pela sala toda. Troquei olhares expressivos com Roy, algo estava de fato acontecendo sem que soubéssemos o que era. Seguimos-o e paramos um ao seu lado; ele não pronunciava uma palavra, os olhos fixos no breu da floresta eram tensos e pesarosos.
— Esse cheiro... é familiar... — de repente, até Roy ficou expressivo.
Ben e Liz desceram como vultos, formávamos um meio círculo do lado de fora.
— Familiar — repetiu Ben, refletindo com os olhos arregalados e a postura rígida.
Robert estava tão concentrado que eu podia jurar que não escutou o que os outros diziam.
Esperávamos impacientemente e pesarosamente; dava a impressão de que os demais sabiam exatamente quem estava vindo, e eu estava perdendo algo.
Todos os olhares se estreitaram quando as formas de dois garotos apareceram no meio da neblina na escuridão. Suas expressões eram sérias e pesadas, principalmente a do garoto de cabelo caindo nos olhos. Seus olhos se arregalavam levemente, conforme andavam. — Quem eram eles?
Ben endireitou a postura. Todos os outros relaxaram; menos Robert, que por sinal, ficou ainda mais rígido.
O garoto de cabelos caindo aos olhos era aproximadamente do tamanho de Ben; estava com uma blusa grossa e cinza, com o capuz tampando sua testa. Ele andava rígido, com as feições preocupadas. O outro era aproximadamente de meu tamanho; andava mais relaxado, com o capuz de sua blusa preta tampando quase todo o rosto.
Gotas finas de água, caíam rapidamente do céu. As gotas de orvalho pairavam sobre a floresta e as nossas cabeças.
Os dois pararam ao mesmo tempo, a um metro e meio de distancia de nós. O garoto de blusa cinza deixou o capuz cair, revelando seu rosto. Seu olhar era profundo, fitando indiscretamente Robert.
Foram dois minutos inteiros de silêncio.
— Pensei que estivesse morto — disse Robert, quebrando o silêncio, mas suas expressões ainda eram amarguradas.
O garoto não respondeu, agora tinha receio de encarar Robert.
— Chance, seu pentelho! Me excluiu da diversão!? — O sorriso de Roy tomava espaço de quase todo seu rosto. Era felicidade evidente; correu para abraçá-lo, e enquanto trocavam abraços apertados, Chance respondeu com outro sorriso.
Agora tudo fazia sentido. Chance, o filho biológico de Robert, que havia deixado a família para vingar a morte de sua mãe. Entendi o motivo da tensão de Robert e de Ben, — que estava ao lado de Roy —, com a expressão séria. Lembrei-me de quando Roy me disse que os dois tivera uma discussão feia antes de partir. Ele olhou com receio para Ben e estendeu a mão para cumprimentá-lo, mas Ben passou direto por sua mão e entrou para dentro da casa sem dizer uma palavra. Os olhos de Chance o seguiram até que Ben sumisse lá dentro, entretanto antes que pudesse desviar os olhos, foi pego pelo abraço de Liz.
— Pequena Lizzie! — disse alegremente, e a ergueu num abraço.
— Se sumir mais uma vez eu te mato — sussurrou ela.
Ele riu, colocando-a no chão. Olhou para baixo e disfarçadamente olhou para Robert, que fitava a floresta úmida.
— Pai... — murmurou ele. — Se me permite ainda chamá-lo assim...
Robert virou-se e o encarou. Chance esperou tenso por uma resposta, mas Rob não dizia nada, embora passasse um turbilhão de coisas em sua cabeça, eu podia ouvir.
Não era pra menos, há mais de duas décadas Chance nunca dera notícias de seu paradeiro, nem um sinal de vida.
— Apesar dos pesares, você nunca deixou de ser o meu filho – Robert quebrou o silêncio intimidador.
Chance sorriu, claramente emocionado. Robert, não diferente de Chance, o abraçou e beijou sua cabeça.
Passado aquele momento de reencontro entre pai e filho, entramos em casa e sentamos no sofá da sala. Ben não estava lá; devia estar em seu quarto.
Chance olhou confuso para mim, afinal, eu era o estranho.
— James é o "novo" membro da família — explicou Roy. — Já faz um tempo que está conosco.
— É um prazer — disse Chance.
— O prazer é todo meu — respondi.
— E ele? – Roy apontou para o garoto de capuz, que agora estava encostado na parede, ao lado de Chance. – Quem é?
— Quero aproveitar para apresentar o meu amigo, pai.
— Como você se chama, garoto? — O tom de voz de Robert era amigável.
O garoto abaixou o capuz, e nos mostrou sua face inolvidável; — foi quando percebi o porquê de esconder tanto seu rosto. — Havia uma marca perto de seu olho esquerdo; um risco grande e grosso que jamais se passava despercebido, — a não ser, é claro, que estivesse às escuras sob um capuz preto. — Sua cicatriz começava acima da sobrancelha e terminava na maça do rosto; o tornava marcante, distinto.
— Matthew Caldwell — respondeu num sotaque britânico.
— Prazer; Robert Melton.
— Mostre-me seus dentes — brincou Roy.
— Sou Livoul — Matthew disse num tom firme.
— Sem mais — Roy murmurou, sem graça.
— Matt foi o meu guia; devo muito a ele — disse Chance.
— Onde está sua família? — perguntou Rob.
— Não tenho. – O garoto era bem curto em suas respostas.
— Você é de onde?
— Inglaterra.
— Viveu muito tempo por lá?
— Praticamente desde que nasci.
— E faz quanto tempo desde que nasceu?
— 54 anos. Mas... fui transformado aos 20.
— Quem foi o acusado?
— Não sei. Não vi o rosto; pois ele ou ela me mordeu e correu.
— Aonde aconteceu?
Ele enrijeceu ao escutar a pergunta.
— No... — ele hesitou e olhou ligeiramente para o Chance ao seu lado. Chance assentiu uma vez, lhe encorajando. — Asilo para órfãos — terminou com a voz mais firme.
Robert ergueu as sobrancelhas, um pouco surpreso. Todos nós tentávamos disfarçar a surpresa. Roy pigarreou baixinho e quase se engasgou. Revirei os olhos.
— Viveu sozinho esse tempo todo?
— Chance foi a minha família de 19 anos para cá.
Robert ergueu uma sobrancelha, orgulhoso que seu filho não perdeu totalmente os costumes que ele havia lhe ensinado.
— Eu gostaria de conversar com o senhor... em particular – disse Chance.
— Agora que você voltou, eu pretendo não esconder mais a verdade. Se é sobre ela que quer falar, pode começar dizendo diante a todos.
— Tudo bem. Olhe, só para esclarecer, eu não vim pedir para ficar, e nem espero que me perdoe por o que eu fiz e por ter ficado longe por tanto tempo, apenas peço que me compreenda.
— Chance, também só para esclarecer; se você voltou, eu espero mesmo que fique. Como podemos ver, não posso te obrigar, mas se quer mesmo o meu perdão, você pode começar ficando conosco.
Chance não sabia se sorria ou se fazia alguma careta; afinal, aquele era uma maneira indireta de Robert intimidar seu filho.
— Não achei que fosse me querer de volta.
— O seu lugar é ao nosso lado, sempre foi.
Chance pestanejou, constrangido e culpado.
— Fique – Robert acrescentou.
Chance, sem palavras, assentiu com a cabeça. Robert sorriu satisfeito.
— Olha, não pense que é por que está amolecendo meu coração ou por que eu queria isso ha muito tempo... Mas devo isso a vocês... E a mim. – Ele olhou para baixo, ainda constrangido com um sorriso bobo. – Enfim! Vamos parar com essa melação e ir ao que interessa. Eu nunca planejei ficar tanto tempo distante, pai... Pensei que fosse fácil encontrar e matar a desgraçada!
— Eu tentei te avisar, mas você não me deu ouvidos.
— Mas o que importa é que eu a encontrei.
Robert mostrou-se surpreso.
— Missão cumprida, então?
— Como eu disse antes; não é tão fácil... Mas eu ainda pretendo matá-la; nem que seja a ultima coisa que eu faça.
— Você quer mesmo começar uma guerra, não é?
— Esse é a questão, pai. Se eu matar ela, outros vampiros virão atrás de mim; mas por que quando ela matou a mamãe, ninguém quis arriscar? Eu fui a primeira pedra a ser jogada.
— Chance você não sabe aonde está entrando; está assinando seu atestado de óbito! Não posso permitir que isso aconteça.
— Ela me tirou a coisa mais preciosa que eu tinha. — Chance tinha um aspecto angustiado.
— Ela não era preciosa só para você. Marie era especial para todos nós.
— Pai... – Agora a expressão de Chance era reveladora. – Morgan está voltando.
Em minha mente, tive a impressão de que a minha "vida" inteira regressou e parou exatamente quando a linda mulher fatal projetou a minha morte. Morgan; poderia ser a mesma? Quantas vampiras más chamadas Morgan poderiam existir? Não era coincidência. Mas fiquei na minha; pelo canto dos olhos vi Robert parar o olhar em mim e depois disfarçar. Sim, ele poderia ter contado, mas não o fez; também não o culpo por isso, o fato agora era que as coisas começavam a se encaixar.
— Como você sabe que ela está vindo para cá? — perguntou Ben, desconfiado do topo da escada. Foi quando o percebi ali, devia ter vindo para escutar a revelação de Chance.
Chance hesitou antes de começar, olhando cuidadosamente alguns rostos na sala.
— É só uma curiosidade. — Ben deu de ombros, mas estava testando Chance.
— A rastreamos até o Brasil; ela estava na Amazônia. Mas ela é ligeira, não estava mais lá quando chegamos, porém consegui arrancar uma verdade de um vampiro com quem ela se encontrou.
— Com seu dom? – perguntou Robert.
— Sim... com meu dom.
— O que arrancou dele?
— Que ela viria até aqui, e terminaria o que começou. Era tudo o que ele sabia.
— Há vários sentidos nisso — murmurou Rob.
— É claro que ela mudou de planos quando o vampiro contou a verdade — disse Ben.
— Esse é o obvio. Mas talvez seja isso mesmo o que ela quer que eu pense — disse Chance.
— Ou ela quer que você pense que os planos continuam o mesmo, independente de quem saiba.
— É mais fácil não arriscar — disse Chance.

Entre Nossas DiferençasOnde histórias criam vida. Descubra agora